sábado, 4 de abril de 2009

Um Filme Que Enternece, Com Pudor e Tato, Sem Perder a Forte Dureza



“Diários de Motocicleta” (2004) de Walter Salles é um filme caloroso que nos mostra os impulsos generosos e de aventura do jovem Ernesto Guevara, um médico argentino recém formado que percorre de motocicleta junto a um amigo, Alberto Granado, a América Latina do seu Sul ao Norte, descobrindo suas paisagens físicas e humanas inusitadas, as mazelas e crônicas injustiças sociais, as carências abissais de cuidados. Não é nada difícil a adesão do público (e do cineasta) ao protagonista, ainda mais quando nos damos conta de que muito do que Guevara e o amigo viram nos anos 50 parece que está congelado no tempo e representa a América Latina de ainda hoje. Em suma, se percorrermos hoje a trajetória dos dois vamos nos deparar com um cenário de iniqüidades gritantes e disparidades de rendas, muito próximo ao que os personagens vivenciam. O jovem Guevara não é ainda Che e sua generosidade e entrega é contagiante e não nos provocam incômodo ao nos identificarmos com ele. 

Já “Che- O Argentino” (EUA/França/Espanha/2008), primeira parte de um díptico realizado por Steven Soderbergh nos é mostrado com razoável distanciamento quase que documental e como veremos isto foi mais do que necessário. Não estamos diante de um filme frio. A neutralidade não existe. Mas Soderbergh na composição dos planos e descrição das ações, seja nas florestas de Sierra Maestra, nas lutas nas cidades e no campo, nas entrevistas de Che nos EUA e discurso na ONU, procura manter-se um tanto distanciado, ainda que as atuações dos atores seja calorosa. Não se pode deixar de admirar a beleza do conjunto com Raul Castro (hoje comandante de Cuba), vivido com garra e talento por Rodrigo Santoro, Fidel (Demián Bichir), Aleida Guevara ( Catarina Sandino Moreno), demais coadjuvantes  e principalmente Benício Del Toro, também produtor do filme, como Che, numa interpretação impecável, que engrandece uma ótima trajetória, captando toda a dureza e ternura de que é feita a alma do revolucionário Che, uma interpretação de uma segurança e credibilidade incrível, premiada no Festival de Cannes 2008 mas que, assim como o filme, passou batida no circuito americano. O que é uma grande injustiça, pois tanto o filme como o ator deveriam ter sido lembrados nas indicações às premiações (e reparem que ainda nem vi a segunda parte, “Che- A Guerrilha”, sobre sua campanha na Bolívia, aquela onde a dramaticidade vai atingir patamares mais elevados até chegar à morte do líder em 1967). 

Che é um personagem muito controvertido, despertando grandes paixões a favor ou contra. Particularmente entendo e admiro todo seu movimento em direção a uma revolução armada para derrubar o governo ditatorial de Fulgêncio Batista que se instalou através de um golpe militar apoiado pelos EUA, mas me sinto muito mal com a idéia de fuzilar os vencidos; estes deveriam ser presos, julgados e muitos deles até anistiados, pois eram pobres-coitados que estavam recebendo ordens superiores para lutar contra a desestabilização da ditadura. Muito importante a distinção que Che faz: não estão dando um golpe militar, mas fazendo uma revolução. Nos EUA em 1964 através de inserções em preto e branco belíssimo, ouvimos Che declarar sem dó nem piedade que fuzilou sim várias pessoas e continuaria fazendo isto. 

Assim ao procurar mostrar os acontecimentos históricos e a personalidade que constitui Che, o distanciamento do diretor é mais do que necessário, pois ao deixar de fazer um filme exaltação (como é o maravilhoso “Soy Cuba”( 1964) de Mikhail Kalatozov, num outro contexto, em que isto faz sentido) faz-se a necessária diferença entre a visão de Che e a do diretor que não é necessariamente caudatário de todas as ações e falas do revolucionário. 

Uma seqüência simples e extraordinária resume o que é viver na ditadura de Fulgêncio Batista: trabalhando com o médico que é, ainda não nomeado comandante por Fidel, Che cuida de pessoas doentes e uma mulher aparece. Perguntando o que ela sentia, esta afirma que nada sente. Quando Che lhe pergunta então por que ela veio até ele, a mulher  responde algo deste teor: “Eu queria muito ver um médico. Nunca tinha visto um médico na minha vida antes”. 

Um dos grandes acertos do filme é colocar o espanhol com língua predominante, sendo que só ouvimos inglês quando Che está sendo entrevistado nos EUA. A captação da ambiência onde os fatos históricos se deram, seja no campo, florestas e cidades (com direito a potentes e convincentes descarrilamentos de trens) é excelente. Em matéria de olhar estrangeiro para uma realidade latino-americana estamos longe do fiasco de Billie August em “A Casa dos Espíritos” e Mike Newell em “ O Amor nos Tempos do Cólera”. 

O filme se desenvolve de uma forma fragmentada intercalando imagens de Cuba na época de Fulgêncio Batista, um encontro no México em 1954 para preparo da luta revolucionária, entrevista com Che nos EUA e ida à ONU em 1964, treinamento e lutas em Sierra Maestra e as investidas mais fortes nas cidades, onde soldados que serviam à Batista acabam se rendendo à força dos revolucionários, culminando com a tomada do poder em 1959, quando Batista refugiou-se em São Domingos. 

Steven Soderbergh com sua postura serena enquanto diretor corre o risco de desagradar tanto os fãs ardorosos de Che como aqueles que o odeiam.  No que me diz respeito, ainda mais agora que as crises do capitalismo estão se tornando cada vez mais agudas e algumas idéias de Che passam a ganhar mais sentido e atualidade, mesmo consciente que não se trata de um clássico do cinema político como “Queimada” e “A Batalha de Argel” de Gillo Pontecorvo, gosto muito do filme. 

Baseado em “Reminiscências da Guerra Revolucionária Cubana” escrito por Che Guevara, “Che- O Argentino” é uma peça fundamental para entendermos melhor os impasses tortuosos que a América Latina viveu e ainda vivencia. Quem se despir de preconceitos ferozes ou de idolatrias extremadas, tem diante de si um filme muito bom, um passaporte para outro universo, outra era, onde não havia o reinado de conformismo que nos paralisa e contamina, com poucas exceções. 

Nelson Rodrigues de Souza

links das imagens:

http://lh5.ggpht.com/filipegamer/SPpB517n8AI/AAAAAAAAE9g/qJ77c4vxSas/cheposter[1].jpg

http://wishreport.ig.com.br/wp-content/uploads/6201602.jpg


Um comentário:

  1. Che Guevara sempre me emocionou muito. "Che-O Argentino", ao contrário, não conseguiu me emocionar nem um pouco. Fiquei decepcionada! Que o filme tem méritos é inegável, mas eu ainda sonho ver um filme sobre Che dirigido por competentes mãos latino-americanas. Faltou sangue nas veias, ideal brilhando nos olhos.
    Gina

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