sexta-feira, 10 de abril de 2009

"No Limiar da Corrupção" – Um Conto



No Limiar da Corrupção 

Tão logo o diretor da Autarquia entrou na sala de reuniões, os chefes de departamento silenciaram imediatamente e acompanharam-no com seus olhares receosos. Tinham já conjecturado sobre a razão desta reunião extraordinária, mas nenhum deles possuía um indício sequer realmente palpável. “Quando falta informação, a imaginação coloca-se a trabalhar” – já filosofou antes várias vezes o inefável e imprevisível diretor. E era justamente desse mal que padeciam os intrigados funcionários. 

Dr. Mendonça sentou-se na cabeceira da mesa, tomou pausadamente o seu cafezinho enquanto calculava as palavras a ser proferidas, o que deixou alguns dos chefes mais impacientes, irritados, ainda que não permitissem que essa irritação transparecesse, penalizando então os pobres lábios que se viam furtivamente mordidos. 

“Senhores, o momento que nossa Autarquia atravessa é muito grave!” – enfatizou Dr. Mendonça, como um dentista que depois de uma longa “mise-en-cene” toca uma cárie exposta. “Nós todos aqui sabemos da excelência dos trabalhos realizados, temos consciência de que temos sempre procurado fazer o melhor para o desenvolvimento de nosso setor, mas o nosso Ministro não anda sendo bem informado a respeito da  necessidade vital de permanência da nossa Autarquia. Senhores, eu sei que ficarão estarrecidos como eu fiquei, mas cumpro o doloroso dever de lhes informar que se cogita em Brasília de acabar com o nosso órgão, depois de tantos anos de bons serviços prestados! E isto nem é um segredo. Outros órgãos também tem problemas neste sentido.Vocês vão ler isto nos jornais. Uma lástima!” 

Os chefes que até então ouviram tudo com calculada calma puseram-se a falar compulsivamente, formando uma sinfonia perturbadora e dissonante com insólitos elementos tais como “Isso não é possível!”, “É uma injustiça!”, “Essa nova presidência da República!”, “Era só o que faltava!”, “Esse Ministro!” e outras ladainhas análogas. O diretor-maestro deixou-a inacabada, interrompendo, incisivo, o estrépito dos instrumentos e retomando a palavra: “Senhores, eu sei que o momento é difícil, compreendo as suas apreensões, mas nenhuma decisão concreta ainda foi tomada. Estamos apenas no terreno das especulações. O ministro irá refletir melhor, tenho certeza. Temos as mais fortes razões para nos preocuparmos, mas não podemos permitir que uma fração sequer de desespero nos esmoreça. Temos muitos trabalhos já engatilhados e o que de melhor temos a fazer é redobrar esforços. Muito! Multiplicar o afinco com o qual devemos nos debruçar diante das tarefas. As atenções deles diante dos nossos trabalhos serão intensificadas. Nós agigantaremos a qualidade e presteza dos nossas obras com maior garra ainda. Para isso, eu tenho umas reformas para lhes comunicar. Os senhores devem  abandonar os seus postos de chefia hoje mesmo!” 

A audiência que tinha adquirido uma coloração de maior tranqüilidade voltou a apresentar o estupor, a insegurança do choque inicial. A voz reverberante do diretor novamente veio em socorro dos fiéis: “Senhores, está sendo criada hoje uma Assessoria Técnica e Administrativa da Presidência e eu conto com a colaboração de todos vocês. Os Chefes de Departamento serão de agora em diante Assessores. A nossa máquina política e administrativa estará assim muito mais azeitada. Eu poderia tomar-lhes ainda mais o tempo  para explicar-lhes o porquê de tal decisão, mas acredito que o melhor que temos a fazer é dar início  ao processo. Mãos à obra! Precisamos decidir agora sem titubeios quem serão os novos chefes mais adequados para os departamentos. Eu quero que cada chefe aqui indique o seu sucessor e o submeta à aprovação dos demais!” 

Cada chefe escolheu então o substituto, com o referendum dos demais, de acordo com um critério quando não de antiguidade, baseado no currículo e nos trabalhos desenvolvidos. Jair ao escolher Luiz Carlos, entretanto, quebrou a harmonia da seleção que reinou até então. Homero levantou as mais fortes objeções, desafiando o coro dos contentes: “Luiz Carlos me parece ter habilidade, mas nem se compara a Renato que você tem subaproveitado. Renato é mais antigo na Autarquia, tem maior experiência e um currículo muito melhor, com cursos de grande prestígio. Por que não escolhê-lo?” Jair irritou-se com a intervenção: “O senhor se mostra bem informado demais a respeito dos meus funcionários, senhor Homero. Parece até que tem relações particulares com eles. Consegue até comparar as competências. Só que o senhor deve saber muito bem também como todos nós aqui, pois já comentamos isso e muito em reuniões, que este funcionário é um homossexual e creio que não ficaria bem para uma Autarquia que necessita provar as suas melhores qualidades ter um chefe com tal predicado.” A solidariedade para com Jair foi imediata. Homero sentiu-se em incontrolável inferioridade e tentou ainda argumentar: “Eu não creio que num momento como esse em que temos de concentrar o melhor dos nossos esforços, a vida particular e afetiva de um funcionário tenha maior peso do que a sua comprovada competência. É transparente a diferença qualitativa entre os dois. Eu acho que isso vai “pegar muito mal” tanto dentro do departamento de vocês como fora. Isto pode ser fator de desestímulo, principalmente, diante de nossas funcionárias mulheres que vão se projetar no funcionário preterido. E olha que a contribuição delas tem sido decisiva!” 

 O diretor encarou Homero e Jair com energia e deu o seu parecer, após uma minuciosa e requintada baforada em seu cachimbo: “Dr. Homero tem razão! Não podemos nos descartar do funcionário Renato dessa maneira. Se ele é visivelmente o mais adequado, ele deve ser escolhido! Vamos dar-lhe um voto de confiança!”. Até mesmo Homero surpreendeu-se com a decisão do Dr. Mendonça. Mas como, segundo um slogan predominante na audiência, “chefe é chefe e decisão de chefe não se discute”, aquietaram-se todos. 

De fato, todos os presentes não mais ignoravam que Renato era homossexual. Naquela mesma sala o assunto já tinha sido alvo dos mais desabonadores e jocosos comentários. Se na época, Homero esforçou-se por ficar quieto, desta vez lembrou-se da auto-admoestação que impingiu a si com muita força e não mais se conteve, defendendo o funcionário com argumentos que resultaram um tanto ambíguos e certamente lhe provocariam algum desgaste perante os demais assessores, levantando até suspeitas pela razão de sua solidariedade, o que poderia desmontar álibis bem criados com casamento, mulher e filhos. Mas correr este risco lhe assomou como algo totalmente imperioso. 

Poucos anos atrás, quando tinham passado mais uma vez o telefone a Renato em sua sala com um sarcástico “É aquela voz”, ele atendeu como de hábito, constrangido, à chamada. Ao ver seus comentários lacônicos serem arremedados por alguns colegas num nível de deboche já agudo, interrompeu a fala alegando que depois a retomava e explodiu: “Vocês estão doidos para saber de quem é essa voz masculina que tanto liga pra cá? Não é? Pois é meu amante entenderam, é isso mesmo! Agora que vocês já estão saciados eu quero que vocês acabem com esse chá diário de mediocridade e cuidem das suas vidas e do trabalho!...” 

Renato sentiu vontade de mandá-los todos a certo lugar comum, mas lembrou-se do chefe Jair ao lado, próximo à mesinha do telefone e calou-se. Quando Renato saiu da sala, os colegas entreolharam-se em transe num coro de frases feitas, destacando-se: “Ele nunca me enganou!”, “Ele está com problemas com o macho dele e a gente é que paga o pato!” Jair  limitou-se a sacudir a cabeça e emitir  um “É...”. Na próxima reunião com os chefes de então, o assunto veio à tona. Houve até quem perguntasse a Jair se o seu funcionário era pelo menos ativo. “Essa coisa de ativo e passivo da Autarquia é com o departamento do Homero!”- disse Jair rindo. Até mesmo Dr. Mendonça abandonou a fleugma habitual e aderiu às sonoras gargalhadas. Homero cuidou-se de início, mas logo se juntou aos demais. Mais tarde envergonhou-se da concessão feita ao clima dominante. 

Informado pelo Dr. Mendonça numa reunião com os prováveis novos chefes, de que seria o chefe de seu departamento, Renato pediu um dia para dar a resposta. A indecisão do momento dado que os demais aceitaram prontamente os cargos, incomodou o diretor. Sentiu vontade de aturdir o funcionário para fazê-lo ver a grande oportunidade que lhe concedia, mas logo cedeu à idéia do tempo para assimilação da novidade, com a ressalva de que no dia seguinte, pela manhã, impreterivelmente, queria uma resposta. 

À noite Paulo e Renato levantaram todos os prós e contras da oferta da tarde e se sentiram num emaranhado novelo. “Eu sei que o aumento de salário vai ser interessante para nós dois – argumentou Paulo preocupado –, mas eu me pergunto se a gente vai ganhar tranqüilidade com o enorme aumento das suas responsabilidades. A impressão que me passa pelo mau-humor com que você tem voltado do trabalho é que as picuinhas do ambiente lhe violenta bastante. A idéia que eu faço da Autarquia é que é um buraco negro da economia, um intrincado cabide de empregos. Eu sei que este é o emprego “que se lhe ofereceram”, mas tenho meus receios. Eu sei que sou um privilegiado, pois tenho os aluguéis que recebi de herança e posso me dar ao luxo de me acomodar nos nossos trinta e tantos anos, estudando e fazendo o que bem entendo, com meus quadros que pouco vendo, sem me preocupar com esses lugares públicos e privados sórdidos. Do jeito que estão as coisas eu não sei qual deles é pior, se o marasmo do funcionalismo parasita mesclado com os vários momentos de grande sufoco( alguns tem de carregar os departamentos nas costas) ou a neurose compulsiva de lucros da iniciativa privada, sem freios.O que eu pergunto a você é se acredita mesmo que a Autarquia seja imprescindível para o país. Caso contrário não seria melhor você continuar na sua, sem se envolver demais com aquelas jararacas deste serpentário, com poucas exceções? 

Renato desconcertou-se com a objetividade do amigo. Respirou de modo ofegante, encarou-o, denunciando um ar de cansaço e enfado nos olhos e posicionou-se: “Eu cotidianamente vejo uma porção de expedientes mesquinhos ao meu redor. Pouco pude fazer até agora para mudar esse estado de coisas. Aliás, fiquei um tempo na geladeira sem me darem trabalho. Agora tenho a oportunidade de trabalhar para ver, pelo menos no meu departamento, as coisas mudarem. Olha, eu acredito que se a  Autarquia for encarada realmente com seriedade por todos, ela pode vir a ocupar seu espaço que é legitimo, necessário, da melhor maneira possível. Eu vou aceitar! Lavar as mãos será pior!”. 

Na primeira reunião que Renato realizou com seus agora subordinados ficou patente o visível mal-estar que acometeu Luiz Carlos principalmente. Se alguns olhares mostravam-se solidários, outros desconfiados, indecisos, o rosto de Luiz não disfarçava nada o desgosto por estar ali recebendo aquelas instruções todas como um funcionário como os outros, algo que o abominava. Durante a chefia de Jair fora privilegiado com os trabalhos mais interessantes, comungou com as maiores inquietações profissionais do chefe e agora sentia uma barreira nítida diante de si. Viu-se apenas como mais uma pecinha da engrenagem como tantas. 

Conforme esperava, num rápido seminário sobre os trabalhos em evolução, correspondentes a cada funcionário, que realizou entre seus subordinados, Renato deparou-se com um problema inquietante: realmente, de todos eles, dado a intimidade com o chefe anterior, Luiz Carlos era quem tinha uma visão mais abrangente dos trabalhos realizados nos últimos anos. Durante o início de sua chefia teria de contar com uma maior boa vontade desse funcionário, pelo menos até que pudesse difundir mais suas novas diretrizes perante os demais. Algo que lhe exigiria um bom tempo de ensino e muita paciência. 

Ao interessar-se por um trabalho recente que sabia ter sido feito por Jair e Luiz Carlos, o novo chefe sentiu as primeiras dificuldades. Tinha necessidade de inteirar-se do balanço feito das atividades do ano anterior em sua área. Solicitando as cópias a Luiz Carlos este alegou desconhecer o paradeiro: ”Quem sabe os originais estejam com o diretor e umas cópias com o Jair. Eu não tenho certeza” – argumentou Luiz Carlos com nítida má-vontade. Ciente da necessidade do chefe, a sempre solícita Sílvia lembrou-se da região do arquivo onde uma vaga lembrança a fazia supor que Jair tivesse guardado os documentos. Investigando o conteúdo das pastas achou o pequeno dossiê esperado. Como Renato aquela tarde extrapolou o seu horário habitual com todos, Luiz Carlos mordicou-se, mas não viu abertura para criticar a parceria. Encarou-a apenas com ferocidade lançando-lhe telepáticos palavrões. 

Na manhã seguinte Luiz Carlos enquanto o chefe não chegava recriminou Sílvia: “Qual a razão de você se adiantar e entregar os documentos para ele? Está querendo fazer boa imagem? Não adianta essa badalação para cima dele porque você sabe que ele é uma bichona! Não vai ceder aos seus apelos!... Era só o que nos faltava acontecer: a gente ficar sob o comando desse veado!”. O funcionário inflamou-se tanto que não percebeu a entrada de Renato. Silvia permaneceu impassível, não lhe fez nenhum sinal. As lamentações continuaram: “Sabe, é uma humilhação para todos nós ficarmos dependentes da vontade desse bicha! Apesar de gostar do trabalho daqui, eu vou arrumar uma transferência para a sala do Jurandir mesmo que seja uma área que me desagrada.” Pensou ainda em dizer: “Além do mais eu não estou a fim de me contagiar com Aids. Trabalhar aqui também está ficando é perigoso!” Mas imaginou Sílvia o enfrentando, esmerando-se em sarcasmo: “Está com medo de ter vontade de transar com o chefe é, pois só assim pode haver algum risco. ...E afinal quem disse que ele é soropositivo?” Luiz calou-se então neste quesito.Respirou fundo e preparou-se para mais investidas contundentes, mas percebeu finalmente a presença de Renato que os encarava, trêmulo de raiva. Por alguns instantes prevaleceu um silêncio pesado, o chefe se recompôs afinal e abrandou a intervenção desejada: “Luiz Carlos, o senhor pode ir para onde quiser. O que eu não vou permitir é que continue levantando intrigas sobre questões pessoais. Faça-me o favor de limitar-se às suas tarefas.” Luiz acomodou-se em sua mesa, furibundo, contorcendo-se com a raiva reprimida. 

Na reunião na diretoria à tarde, Renato procurou mostrar ao Dr. Mendonça as conclusões que tirou da leitura do dossiê. “Sr. Diretor há vários valores aqui superestimados. As reformas feitas não foram necessárias.Eu lamento ter de lhe comunicar isso mas o Sr. Jair exorbitou de suas funções, favorecendo sem o embasamento suficiente determinados índices. Veja... “ 

O Diretor o interrompeu: “Eu sei muito bem o que o senhor quer me mostrar. Afinal eu li também este dossiê. A questão é que o senhor ainda não sabe como é o mecanismo de dotação de recursos para a Autarquia. Nós fomos contemplados com certo orçamento para o ano passado, fizemos projetos a menos do que esperávamos. Sobrou-nos uma parcela. Nós entendemos então que essa verba teria de ser aplicada em melhorias para o nosso trabalho, como um banheiro mais moderno e outros investimentos...” “Mas diretor – interrompeu Renato estupefato –, há pouco tempo já haviam sido feitas obras no banheiro e aconteceram também compras desnecessárias, máquinas supérfluas!” Dr. Mendonça impacientou-se: “Sr. Renato, o senhor está se mostrando sem visão adequada. O Sr. pode garantir que não mais expandiremos o nosso quadro funcional? Há a lei agora que nos amarra! Mas e depois? Tudo isso que foi comprado será utilizado! Além do mais nós não poderíamos de modo algum ter devolvido a verba porque se assim tivéssemos procedido nossos orçamentos futuros estariam comprometidos. Eles não encarariam como deveriam, as nossas necessidades. Receberíamos bem menos do que nós tivéssemos pedido, pois estariam crentes que trabalharíamos com menos...Mas não vamos mais falar dessa história Sr. Renato! Isto é coisa do ano que passou! O importante é nos concentrarmos no trabalho do atual exercício. Existe um seminário urgente no qual o senhor irá nos representar, por estar melhor preparado no tema principal, em Recife, daqui a três dias.Agora tenho de ir discuti-lo junto à Assessoria, antes de lhe passar as coordenadas.” 

As novas preocupações incutidas na cabeça de Renato foram tão fortes que em alguns momentos pensou até em desistir do cargo. Sua cabeça estava tão confusa que não sabia ao certo o que mais o incomodava: se a postura do diretor diante do dossiê ou as novas tarefas recebidas de supetão. Ao aceitar o cargo já imaginava certa resistência de Luiz, mas não esperava que ela fosse tão ostensiva, o que aumentava ainda mais suas preocupações. Acalmando-se, sentou-se na escrivaninha de casa para esboçar os tópicos a serem abordados na palestra. Vendo-o tão preocupado, Paulo fez questão de acompanhá-lo até Recife. 

Após uma breve exposição dos trabalhos realizados pela Autarquia, um dos convidados perguntou a Renato sobre um problema de Olinda que não foi abordado em nenhum trabalho. O expositor simplesmente admitiu que não tinha nenhuma notícia desse trabalho. O convidado insistiu que Jair no seminário anterior havia prometido uma solução e que um ofício a respeito do tema havia sido enviado à Autarquia. A Renato só restou acrescentar que iria averiguar o que realmente aconteceu. Outro representante ousou perguntar como a Autarquia reagia à idéia ventilada de extinção. “Nós temos nos esforçado no nosso órgão no que diz respeito ao nosso desempenho em todas as áreas para que em Brasília se conscientizem da real necessidade de nosso trabalho” – respondeu Renato com mal dissimulada vergonha das próprias palavras proferidas. A lembrança da palavra “nós” pronunciada provocou-lhe um rubor na face que se tornava visível para alguns espectadores mais à frente. Outro representante ainda mais audacioso atreveu-se a perguntar se a  Autarquia não estaria com excesso de funcionários. Renato titubeou, mas acabou admitindo que acreditava mesmo que ela tinha esse problema. Perguntado sobre que medidas seriam tomadas ele alegou desconhecer os planos da diretoria nesse sentido. Terminada a fase de debates, antes da próxima exposição, seguiu-se o cafezinho no salão nobre. Rodeado por curiosos, Renato teve ainda de responder com mais detalhes a alguns que tocavam na mesma tecla do fechamento. Um pouco mais descontraído na conversa informal ele pode expor melhor o que realmente pensava a respeito. “Por que não veio com a sua mulher?” – perguntaram ao chefe debutante que ficou com o rosto enérgico, crispado. “Ela não estava passando bem e ficou no Hotel” – respondeu Renato, mais uma vez vexado de si mesmo. 

Ao chegar ao hotel encontrou Paulo bastante aborrecido: “Puxa vida, você saiu de manhã e nem me acordou. Eu tinha a maior curiosidade em vê-lo palestrar, mas pelo jeito você ficou com vergonha de mim”. Renato justificou-se: “Eu não quis que você me acompanhasse porque eu não queria deixar nenhuma margem para especulações.” “Isso é paranóia de sua cabeça. – irritou-se Paulo – Deveria ter tanta gente lá... Quem é que iria saber que você é meu namorado? Bastava que não entrássemos juntos.” 

O novo chefe com os nervos à flor da pele perdeu a paciência com o parceiro: “Com tantas questões fervilhando na minha cabeça você vem me aporrinhar com essas frescuras!” Isto bastou para que fossem dormir cedo, amuados, sem se falarem. Como demorassem a pegar no sono, Paulo pulou sobre o amante no escuro, sussurrou-lhe ao ouvido que esquecesse as colocações que fizera e logo entrelaçavam os corpos com gestos precisos de proteção mútua. 

Os dois assistiram às exposições da manhã seguinte como dois estranhos e à tarde dirigiram-se ao aeroporto para a volta a São Paulo. No avião Paulo suspirou junto ao amigo: “Ufa! Ainda bem que nenhum daqueles chatos quis lhe acompanhar até o aeroporto, como em “Um Só Pecado” do Truffaut! Por pouco eu quase vejo esse filme de novo!” 

Apresentado um relatório de viagem, Renato concentrou-se num trabalho sobre S. Leopoldo que era urgente. Como Luiz era o único da sala que já tinha viajado para a localidade com o ex-chefe, foi solicitado a ele as informações recolhidas e os nomes e referências dos principais contactos. Luiz alegou não se lembrar muito bem desse caso em particular porque depois daquela viagem inúmeras outras foram feitas e sua memória não era tão bem dotada assim. O chefe percebeu pelo tom cínico da argumentação, pelo prazer quase sádico tenuamente estampado no rosto, que se em parte era verdade o que o subordinado dizia (não se lembrava de tudo com detalhes), muita coisa sabia e não estava nem levemente inclinado a fornecer essas informações. Sílvia e Aloísio foram chamados à sua mesa, o problema foi explicado e os dois passaram toda manhã e boa parte da tarde ligando para diversos órgãos de S. Leopoldo à cata de informações. Reunida a base de dados necessária os dois enfronharam-se no computador para variados cálculos e comparações com outras localidades já disponíveis em arquivo. 

Renato que até aquele ponto havia se mostrado sereno, apesar das provocações de Luiz, transtornou-se completamente quando o desafeto recusou-se a desvendar alguns contratempos computacionais que paralisavam o trabalho dos dois colegas. Foi só ouvir Luiz asseverar que já cansou de explicar aqueles macetes e que eles já não deveriam ter mais dúvidas, Renato exasperou-se: “Pois eu já estou farto de seu corpo mole. Ou você se toca de que com a mudança de hierarquia a necessidade de colaboração mútua é imperiosa, imprescindível, ou vou ser obrigado a me valer da minha posição. Essa é a ultima vez que eu suportarei sua displicência.” Os dois acomodaram-se quietos em suas mesas em meia hora de respirações ofegantes e manejo tenso das canetas, lapiseiras, calculadoras e teclados. Como Luiz continuou ignorando as dúvidas dos colegas, Renato viu-se compelido a ir ele próprio ajudá-los, interrompendo a escrita do texto do relatório que ia adiantando. Naquele dia não só o chefe como os dois subordinados saíram bem mais tarde do que o usual. Em casa Renato viu-se ainda na contingência de extrapolar a noite até alta madrugada para término do relatório final que precisava entregar pela manhã, dormindo pouco, o que lhe causava incontornável mau-humor. 

O primeiro assunto tratado com o Dr. Mendonça, após a entrega do trabalho, pela manhã,  foi a indolência de Luiz. Renato ponderou que se não contasse com a imediata colaboração do funcionário seria obrigado a pedir a sua dispensa e substituí-lo por alguém disposto realmente a trabalhar. Garantiu que só daria a ele uma oportunidade a mais. O diretor mostrou-se decepcionado e preocupado com o que considerou uma disputa: “Sr. Renato, é lamentável que em tão pouco tempo essa inimizade já tenha sido criada. O Luiz Carlos é um funcionário competentíssimo. Na gestão do Jair ele mostrou-se bastante produtivo. O senhor precisa aprender a ganhá-lo: tem de ser habilidoso. Aposto que o está tratando como se ele fosse igual a todos os outros ali e sabemos que ele não é. O senhor sabe que ele é filho do Dr. Noronha não sabe?” Renato respondeu que já ouvira falar e mostrou um semblante insubmisso o suficiente para que nele fosse dito um silencioso e patente “E daí?”. O diretor procurou uma máscara mais intimidadora: “Sr. Renato, o Dr. Noronha é um aliado nosso em Brasília, decisivo! Ele é intimo de vários assessores do Ministro. Numa época de tantos cortes e apreensões não podemos nos dar ao luxo de criar problemas com o nosso ilustre e essencial simpatizante. Eu gostaria que o senhor lidasse com o filho dele de modo bastante diplomático, entendeu? Fui suficientemente claro?” Renato sentiu os olhos turvarem, sentou-se e tomou um cafezinho demoradamente. 

O diretor continuou: “Outra coisa Sr. Renato, fiquei sabendo que o senhor em Recife teve a audácia de declarar que nós estamos com excesso de funcionários! Com base em que o senhor se atreveu a esse disparate? Nós temos tantas áreas a serem atacadas que em breve nos faltarão funcionários. Essa lei que nos restringe as contratações logo nos trará problemas!” Renato com voz ligeiramente trêmula conseguiu contra-argumentar: “Tudo bem. Se forem feitas mudanças estruturais fortes e nas linhas de ações, no futuro poderemos vir até a precisar de novos funcionários. Mas atualmente é patente a ociosidade. Basta passear pelos corredores, entrar nas salas!” Dr. Mendonça reagiu com pronta  rispidez: “ Vamos admitir que isso seja verdade, Sr. Renato. Mas  isso é coisa que se diga num seminário aberto ao público? O senhor teve sorte porque esse era um seminário regional de menor importância. Nem a imprensa local noticiou nada, o que foi uma sorte. Mas e se fosse aqui em São Paulo como vai ter em setembro? Teria sido um desastre! O senhor precisa ter mais faro político Sr. Renato!... Mais um detalhe que eu estava me esquecendo: o nome do seu... (como dizer?...) amigo constou na lista de presença. Eu acho que não preciso lhe explicar que foi uma perniciosa “bandeira” da sua parte!... Medite bem em tudo isso! Eu agora tenho um compromisso, com licença! Aguardo-o na reunião à tarde sobre as conclusões com relação a S. Leopoldo com os assessores.” 

Por mais que Renato se esforçasse, o almoço não lhe descia ao estômago, os talheres balançavam trêmulos sobre os pratos. Abandonou então a mesa e restringiu-se a um suco da lanchonete. À tarde expôs a situação de S. Leopoldo com tropeços, sem a fluência com que enfrentou o público no seminário. Chegou ao fim de sua explanação esclarecendo todos os pontos que pretendia, muitas vezes mostrando-se chato até, reiterando diversos pontos. A falta de tranqüilidade, o nervosismo, entretanto, eram indisfarçáveis. As mãos gesticulavam de forma abusiva. Após tirar algumas dúvidas dos assessores com correção e presteza, mas com a voz titubeante, lembrou-se de perguntar a Jair sobre o trabalho de Olinda. O ex-chefe serenamente afirmou que não sabia de pedido algum nesse sentido. Renato perturbou-se com a postura inabalável do interlocutor e o pressionou, com crescente indignação: “Mas como não se lembra se o representante de lá mandou até um ofício?!” Jair olhou para o diretor, denunciando com o olhar a suposta deselegância de que era alvo e respondeu decidido, sem hesitação: ”Ah! Sim! Agora me lembro! Foi um chato sem a menor importância da Secretaria de Obras de Olinda que me abordou após minha palestra, para me pedir um parecer para resolver um problema dele... Ele mandou mesmo o ofício é? Eu pensei que ele quisesse apenas aparecer. O trabalho me pareceu tão banal...” 

 Homero que em todo esse tempo folheava relatórios antigos pediu um esclarecimento: “Comparando aqui os investimentos previstos na área num trabalho do ano retrasado, com o que você nos apresenta hoje, houve uma redução drástica. Você poderia nos explicar o porquê?” 

Renato fez uma pausa para meditação e respondeu, ora com firmeza, ora com calma aparente, ora com uma fúria que lhe escapava por entre os lábios: “Esse trabalho foi realizado durante a chefia anterior sem a minha participação. Eu não lhe posso responder de imediato sobre o que foi feito anteriormente. Eu não sei se foram tomados os cuidados que tive agora. Se quiser poderemos depois fazer uma análise mais detalhada!” Jair olhou novamente para o diretor e este lhe fez um sinal com os olhos e cabeça para que se contivesse. “A sua colaboração foi preciosa Sr. Renato. – interveio Dr. Mendonça – O senhor está dispensado! Depois da reunião particular com os assessores o senhor no fim da tarde me procura sim?” 

Renato molhou os pulsos na água gelada do bebedouro, entrou na sua sala, chamou Luiz e pediu-lhe o relatório antigo de S. Leopoldo. Luiz alegou ignorar o paradeiro do trabalho, observou que talvez a biblioteca tivesse uma cópia. O chefe ficou fora de si: “A cópia da biblioteca está com o Sr. Homero! Você sempre foi unha e carne do Jair! Eu tenho certeza que você sabe em que lugar desses armários está o relatório! Eu o quero imediatamente entendeu?” A voz gritada de Renato ecoou nas outras salas, chegando um tanto abafada até mesmo à sala de reunião dos Assessores. Luiz assustou-se e após uma demorada procura localizou o relatório. O chefe sentou-se para lê-lo, mas os olhos não se concentravam nas linhas. 

Na conversa com Dr. Mendonça no fim da tarde, Renato estava atento, mas simultaneamente totalmente indiferente, abúlico, sem mostrar sofrimento nem se exaltar. O Diretor pediu-lhe que se sentasse e iniciou sua preleção: “Quando os assessores quiseram vetar o seu nome com o pretexto de que o senhor era um homossexual, eu me opus. Resolvi dar o meu crédito. Vejo agora que me enganei. Vocês homossexuais são muito perturbados, instáveis, sujeitos por qualquer motivo a extravasarem as emoções. Este tipo de passsionalismo da personalidade é incompatível com quem almeja uma liderança. Na reunião de hoje o senhor mostrou-se extremamente inseguro. Em Recife teve seus maus momentos. Em reuniões importantes que muitas vezes temos em Brasília, eles em sua maioria não entendem patavina do que falamos. O que muitas vezes é bom.... Mas eles são muito sensíveis quanto ao fato de lhe passarmos credibilidade ou não. A postura é muito importante! Muito mais do que o conteúdo. Não adianta entrar em minúcias importantes e titubear... O senhor ainda é jovem e poderá aprender bastante ainda. Eu tenho a acrescentar agora que somos obrigados a destituí-lo da chefia, para fortificação da nossa Autarquia, principalmente numa fase que nos é tão crítica nestes tempos de grande crise econômica. O senhor está em regime de CLT, mas eu não vou despedi-lo da Autarquia. O senhor poderá, se desejar, continuar trabalhando na mesma sala, mas com a chefia do Luiz Carlos. Eu, apenas, se estivesse no seu lugar me sentiria muito mal trabalhando como subalterno num espaço aonde eu já fui chefe... O senhor está dispensado. Tem alguma coisa a dizer?” Renato como que acordou de um transe e disse que queria dizer algo sim: “O senhor só tem razão num ponto... Quando disse que eu sou perturbado. Só que perturbado pelos outros! Pelo sistema! Eu não sou tímido. Sou intimidado!” 

A indignação de Paulo com os acontecimentos era bem maior do que a do amante. Renato sentia-se quase que leve, ainda que não relevasse a amargura. Perguntado sobre o que iria fazer, disse que não sabia ainda. A questão era que Renato não conseguia sentir ódio de ninguém lá da Autarquia. Já os conhecia há um bom tempo. Sua ira voltava-se inteiramente contra si: ”Eu me deixei encantar pelo fascínio de ser chefe daquela arapuca deixando de ver várias coisas que eram gritantes. Se ao menos eu tivesse tido a coragem  de enfrentá-los logo no primeiro atrito! Eu deveria ter pego os documentos em que os gastos inúteis eram nítidos e tê-los endereçado à imprensa. Era o que eles mereciam, merecem! Agora se eu fizer isso, essa imprensa canibalesca é bem capaz de dizer que eu sou um mafioso traído pelo bando, que agora se vinga!...” Renato comentou a pena que sentia em saber que Sílvia  estava também naquele ambiente. 

“Você ainda pode estar de mãos atadas, pode ser chato para você, um bumerangue que pode feri-lo! Mas a mim não! Minha vida tem sido um tédio ultimamente apesar das facilidades que tenho. Eu sei como não comprometê-lo! Eu estou precisando de novas emoções!” – arrematou Paulo com um ódio amaciado, calculado, misterioso e uma lucidez que se avizinhava da loucura.

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Nelson Rodrigues de Souza

 

Um comentário:

  1. Quantos Renatos discriminados,oprimidos pelo descaso e preconceitos vemos diáriamente.
    Conheço bem esse Universo frio, calculista...
    Sei o quanto doi a discriminação, principalmente, àqueles que não se enquadram nos sistemas.
    Sei o quanto pesa ser competente e ser jogado de lado por não participar de conjecturas nada aceitaveis pelo " forum intimo"
    Pobre Renato...sofrido personagem ,mas nesse conto parece real pois, cada um de nós, certamente, conhece um Renato,não é mesmo???Como é duro ter que se subordinar a um chefe incompetente ou condencendente...
    Como é cruel ser subordinado aos filhos dos fulanos que ocupam cargos sem o menor preparo.
    Como as pessoas não respeitam a privacidade das pessoas tentando torna-las obstáculos ...
    Acho graça porque discriminar alguém pela escolha de seus afetos,quando se acha normal as promiscuidades que muitas vezes acontecem para se chegar a altos cargos...
    Nooosssa...já vi tanta coisa!!!!!
    Parabéns,ótimo texto!

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