quinta-feira, 2 de abril de 2009

Os Olhos Não Mentem- Um conto


Os Olhos Não Mentem

 

“De tanto não poder dizer

meus olhos deram de falar,

só falta você ouvir.”

Itamar Assunção/Alice Ruiz               

A rigor Ricardo desconhecia a razão de sua viagem. Sabia apenas que o movia a vontade de rever lugares por onde perambulara quando criança. Como tinha pesarosas recordações que se revezavam com as imagens mais cálidas, temia pelo balanço de perdas e danos que poderia fazer na volta. O certo é que já estava a sete horas viajando de ônibus e logo divisaria Piedade, uma pequena província intimidada, ofuscada pelas concorrentes bolinhas negras mais robustas do mapa. Os óculos escuros, a barba espessa e negra tornavam-no irreconhecível. Somente um fã mais radical, detalhista, descobriria naquele circunspeto cavalheiro, o famoso ator televisivo Ricardo Fernandes, que depois de uma trepidante e estressante fase de gravações finais de uma novela, viajava oculto para a cidade natal, sem objetivos mais palpáveis além de esquecer o burburinho da cidade grande, dado que os pais moravam agora em S. Paulo com os irmãos e os tios realmente chegados e queridos já faleceram. 

As saudades de Clóvis que ganhara uma bolsa e estudava temporariamente na Alemanha eram imensas. Por isso espantava-se com o fato de não ter viajado logo à Europa e preferido antes uma visita à sua pequenina Piedade. A certeza que tinha era que por um bom tempo não queria saber do Rio de Janeiro: tanto a paisagem urbana como as formas humanas haviam-no saturado. Os mesmos bares, as mesmas boates, os mesmos comentários ligeiros tais como “Você viu tal peça? Você viu tal filme? Você viu tal show?” provocavam-no engulhos. Só de lembrar-se que além da neurose de memorização de caudalosos textos teve que posar mais uma vez para certa imprensa “marron chic”, com parceira fictícia e casa emprestada por amigos, arrepiou-se. Os ossos do ofício estavam se tornando cada vez mais difíceis de roer... 

As incômodas lembranças recentes perderam o privilégio de ocupar-lhe a mente quando o ônibus ao percorrer sua última curva, tornou bem visível Piedade e suas extensas camadas de casas e os reduzidos edifícios que não arranhavam, simplesmente roçavam os céus. Ricardo acanhou-se com a enorme emoção que essa visão ainda lhe trazia. Envergonhou-se por se sentir ainda infantil, temeroso de enfrentar sozinho a apavorante imensidão da restrita cidadezinha. Ao pisar na cidade natal o primeiro impulso foi percorrer a rua principal que conduzia aos cinemas locais. Ao deparar-se com o templo evangélico onde outrora reinava o grande cinema Vera Cruz pensou ter-se equivocado. Não. Era ali mesmo em que se refugiava do mundo na adolescência. A saliva adquiriu sabores indesejáveis. O coração que batia já a trinta e sete anos intensificou as pulsações. Será que o Cine Ubirajara também estaria irremediavelmente banido da província? Não. Logo se aliviou ao vê-lo são e salvo, intocado. Tão satisfeito ficou em saber que o Ubirajara ainda respirava que não se incomodou com a hegemonia de filmes pornôs nos cartazes. 

Ao instalar-se no quarto do pequeno hotel, deitou-se e adormeceu sem descer para o café da manhã. Dormiu até que o sol do meio dia irrompeu no quarto por uma janela generosa e atingiu-lhe diretamente os olhos, abrindo-os prematuramente. Por um momento estranhou o ambiente, não atinou com a aventura que o trouxe até ali. Afinal decidira tudo num rompante tão rápido no dia anterior que ainda tinha a sensação de estar em casa, no Rio. Agora já estava em Piedade e como tinha de dar algum sentido à viagem, levantou-se. Após o almoço visitou a casa onde nasceu e tais foram as reformas nela efetuadas pelo novo proprietário que já estava irreconhecível. No fundo do quintal nem sinal da goiabeira em que no alto brincava sozinho inventando histórias de suspense com ganchos a serem esclarecidos no dia seguinte. Essa terna lembrança logo se dissipou quando contemplou a vizinhança. 

 Que teria sido feito daqueles garotos que tanto o atazanaram, o hostilizaram na infância? Aquele fim de tarde em que se viu envolvido numa primeira e suis-generis briga era uma lembrança ainda bastante recorrente. Naquele momento era como se ele estivesse vivendo novamente o conflito. Perturbado pelas insistentes e reiteradas insinuações de uma  trinca das redondezas que faziam da chacota o brinquedo predileto, Ricardinho nos seus dez anos surpreendentemente enfezou-se e investiu sobre os garotos com insuspeitada, inimaginável energia. Atuava-lhe no corpo uma força descomunal. Pelas veias não havia mais sangue. Só adrenalina. Os meninos espantaram-se em sentir como o outrora tão pacato, passivo alvo, agora se convertia em arma perigosa e tentaram intimidá-lo pela união. No auge da possessão o improvisado e precoce cão de palha desferiu seus golpes com mais garra e segurando um dos garotos pelos braços, girou-o e com os pés deste, em golpes certeiros, incrementou o infortúnio dos adversários até fazê-los correr. Boquiaberto, espantado com a coragem repentina que o tomou, afrouxou as mãos, permitiu que o prisioneiro se desvencilhasse e fosse se juntar aos parceiros fugitivos e ingratos. 

Alguns homens passavam por ali de volta ao trabalho, após a refeição e Ricardo olhou-os discretamente. Nos semblantes marcados, de rugas e dobras prematuras, tentou decifrar algum rosto conhecido. Em vão, pois não tinha a mais remota idéia de que pessoas se tratavam. Só se perguntasse. Mas se vencesse a timidez e os inquirisse alguém se lembraria de alguma coisa se já há dezenove anos aquela calçada não sentia o tremor de suas pernas? “Duílio sim deve lembrar-se de mim!” – pensou satisfeito, como se apenas agora esse nome lhe ocorresse. Duílio era outra imagem de sua vida, sempre recorrente, muito estimada, às vezes odiada, mas sempre reprimida. Na viagem mesmo lembrou-se de que poderia visitar o antigo amigo, mas achou a idéia ridícula. Juvenil. Mas agora em que se sentia um extraterrestre naquela cidade, o sentimento de solidão aguçou-se e não teve mais dúvidas de que deveria visitar o ex-colega de escola ainda que pressentisse perigo nestas recordações recorrentes que se confrontariam com uma prática imprevisível. 

Na viagem ao afeto de Duílio deparou-se com o jardim central da cidade todo fechado, cheio de grades. Tão satisfeito estava com a iminência de reencontrar o amigo que não quis meditar sobre as árvores e flores distantes, inacessíveis. O importante era que conforme notícias fornecidas pela mãe em S.Paulo, o amigo montara uma tabacaria na frente da casa e poderia ser visto àquela hora a não ser que estivesse à procura de algum cliente. 

Quando Duílio levantou os olhos escondidos por detrás das lentes espessas, abandonou imediatamente no chão as caixas que empilhava e dirigiu-se surpreso ao estranho que lhe parecia extremamente familiar e que lhe transmitia um caloroso e inquietante “Como vai Duílio? Não se lembra de mim?”. Ao retirar os óculos escuros o rosto do visitante abriu-se num sorriso que não mais deixou dúvidas. Os dois homenzarrões reconheceram-se como os adolescentes que foram e abraçaram-se, de início um tanto acanhados, mas logo o brilho satisfeito dos olhos colaborou para que os abraços se tornassem calorosos. “Vamos lá para casa! Já são três horas e hoje é sexta-feira. Eu posso fechar mais cedo!” Ricardo foi apresentado a Dulce e disfarçou como pode o dissabor de ser reconhecido como Ricardo Fernandes das novelas depois de algumas bem sucedidas horas de anonimato. Ainda que a mulher do amigo tenha se enfurnado na cozinha para o preparo de um café, os seus ouvidos permaneceram atentos a todas as novidades que os dois trocavam. 

 Ricardo discorreu sobre a dificuldade de arrumar trabalho logo que foi para o Rio de Janeiro após terminar a Escola de Arte Dramática da USP. Através de um amigo de um diretor administrativo de uma importante emissora conseguiu a chance de um teste e foi aceito para pequenas pontas. Duílio preparou-se para ouvir maiores detalhes sobre a trajetória profissional do amigo, mas logo se viu solicitado a falar de si. “Vamos falar de vocês! Eu estou aqui de volta a Piedade para esquecer-me um pouco do que ouço/leio sobre mim. O que você tem feito da vida? Vocês têm filhos?” – perguntou Ricardo um tanto nervoso, amplificando a sua curiosidade para não precisar falar de si. Ricardo disfarçou a decepção e enfado ao ouvir do amigo como montara com um sócio a distribuidora de cigarros após concluir o curso de administração. Ao inteirar-se que Sérgio, um rapaz já com seus dezesseis anos voltaria ao cair da tarde do colégio, o espírito do visitante viu-se tocado e excitado pela novidade. 

 Enquanto a máscara facial de Ricardo era pródiga em amabilidades com a atenção que lhes dispensavam, ele sorveu o café ansioso e trincou as bolachas com indelicado estrépito como sinais denunciadores do estado de ebulição em que se encontrava. O casal comentava cenas da última novela, mas Ricardo viajava num profundo alheamento. O ator representava para não incomodar os anfitriões com o fato de não se conformar com a “vida besta” ali encontrada. Em sua mente umas perguntas fixas agitavam-se como símios na jaula: “Esse é o meu amigo Duílio que estudou para tantas provas comigo, que quase sempre olhou para mim carinhosamente, acanhado e que apenas por um triz não quebrou o invólucro repressor que tornava nossa relação apenas platônica, apenas feitas de gestos, vontades encobertas, olhares esquivos e cuidados sutis? Duílio por que você permitiu que lhe transformassem nessa pessoa obesa, de olhos mal dormidos e escuros, “fútil cotidiano, tributável”? Duílio você era tão bonito, eu mais olhava nas aulas para você do que para a lousa...Por que Duílio essa capitulação? Se ao menos soubesse que era essa mesma a sua vontade... que não lhe empurraram conforme quiseram fazer comigo... Mas Duílio por quê? Você era muito mais talentoso do que eu. Eu sempre lhe invejei. Aprendi tanto com você...Como é que isso aconteceu?... Eu não me conformo Duílio! E você me olha assim apalermado e essa sua mulher me contempla fascinada porque assim como você deve desprezá-la por ter permitido que você a transformasse nessa desgrenhada, amarfanhada motorista de fogão, ela deve entediar-se com a sua aspereza, com o seu ar de brutamontes. Mas Duílio que peça é essa que lhe destinaram? Você merecia um papel mais gratificante Duílio! Você merecia! Nós merecíamos, Duílio! Por que nos faltou a coragem Duílio? Duílio eu me sinto culpado!... Eu fiquei preocupado tanto em fugir da arapuca em que queriam me meter que mal me despedi de você e fugi para São Paulo!... Você  sempre foi mais forte, determinado, do que eu... O que aconteceu Duílio?” 

Duílio, intuindo que as observações da mulher aborrecia o visitante, como que atendendo ao telepático chamado, convidou o amigo para abandonar o hotel e ficar no quarto de hóspedes. O ator hesitou, mas acabou aceitando. Terminado o lanche o ator manifestou interesse em visitar a escola em que estudou. Pretendia observá-la por dentro, antes de fecharem-na. A chegada do sócio de Duílio para discutirem a oportunidade de um alarme contra-roubos nas kombis deixou Ricardo aliviado,  pois poderia espairecer sozinho pelas estreitas ruas da região. Dado a proximidade da escola caminhou muito bem a pé, surpreendendo-se com a profusão de paralelepípedos onde outrora reinavam os mais desconcertantes lodaçais ou a mais deletéria dança das poeiras. Ao explicar-se com o porteiro que era ex-aluno do Instituto Wasghinton Luís, nostálgico, este velho senhor de proeminentes bochechas e olhares desconfiados, acabou assentindo que o estranho entrasse pátio adentro, sem que este precisasse se valer do álibi da celebridade. Ricardo envergonhou-se ao descobrir-se decepcionado por não ter sido reconhecido. “Mas como? O filho pródigo retorna e ninguém toma conhecimento?” – observou com seus botões, sorridente. 

 Já era quinze para as cinco e logo as crianças e os rapazes desabariam pelos corredores como uma manada incontrolável e ainda que já tivesse percorrido todas as ramificações da escola, resolveu sentar num banquinho para não perder o espetáculo das cinco. “Essas crianças são sempre danadas!” – pensava o ator numa pose digna de Hamlet.  “No meu tempo de escola elas já sentiam que eu tinha uma aura diferente e me chamavam de Terezinha sem que eu tivesse dado nenhum motivo palpável...” Ricardo lembrou-se das inumeráveis vezes em que reagiu com impropérios: “Terezinha é a mãe!”. Mas cedo compreendeu que não adiantava brigas. A corrente da infâmia na escola toda era poderosíssima para que o apelido ganho se propagasse até o final do colegial. O assustado e acuado ser enlouqueceria se reagisse sempre e não encarasse com esportiva o fato. Desde que se referissem a ele como o “Terezinha” ela já se dava por satisfeito. Mas se a mágoa com a crueldade das crianças se desvaneceu razoavelmente com o tempo por sabê-las sinceras e perspicazes em suas maldosas intuições, um episódio desencadeado pelo maquiavelismo do jovem Geraldão, que contou com a cumplicidade inclusive de Duílio, lhe deixou marcas profundas. 

Sentado ali, observando a algazarra dos rebentos em suas vertiginosas fugas para o fim de semana, Ricardo não pode deixar de lembrar-se daquela tarde dos seus dezesseis anos em que à saída do colégio caminhando com Duílio numa viela próxima, fora cercado por Geraldão e seus asseclas e em meio a uma saraivada de assobios, gritinhos e risos marotos foi colocado dentro de um carro e conduzido para um destino ignorado. O que mais decepcionou Ricardo foi observar pelo vidro que o companheiro também ria junto aos demais. Tinha sido cúmplice e o conduzira para uma cilada. Quando Miriam recebeu-o na casa de cômodos escuros e lúgubres de enormes teias de aranha pendentes e sob a excitação dos cinco seqüestradores pediu-lhe que a acompanhasse, pois nada de mal lhe aconteceria, “muito pelo contrário,uma coisa muito gostosa”, Ricardo acompanhou-a aterrado. Ciente de que os garotos esperavam-no para colher  um depoimento revelador, o ator representou o primeiro papel de sua vida como um canastrão até que passável. Miriam fez um sinal positivo aos rapazes e estes o batizaram com um borbulhante banho de cerveja. 

Naquele dia em que deitou sobre o corpo plácido de Miriam sem nenhuma emoção mais nobre que a raiva e a vergonha, fazendo o papel de “macho” mecanicamente, Ricardo teve certeza de que o caminho que queria para si divergia radicalmente da expectativa que nutriam por ele.  Por algum tempo a greve de silêncio abateu-se sobre os amigos. Duílio percebeu que se não tomasse a iniciativa o parceiro jamais lhe dirigiria a palavra e procurou-o.Desculpou-se alegando que os rapazes ameaçaram um seqüestro mais audacioso se não colaborasse e iniciariam uma campanha para rotulá-lo como namoradinhos da escola, de tal forma que não teve alternativa senão corroborar com o trote. No momento dessa revelação Ricardo esteve a ponto de virar-se do avesso, mostrar-se por inteiro ao parceiro e conclamá-lo à quebra das formalidades. 

Sentado no banco, já com a escola vazia, Ricardo reviveu as emoções do momento e lamentou que o nó do destino não tivesse sido ali desatado. Foi a grade chance perdida. E já entrava em considerações do tipo “o que teria sido de nós se...” quando o porteiro interpelou-o, pois precisava fechar a escola. 

Estando quite com o hotel o ator voltou para a casa do anfitrião onde o encontrou no banho. Convidado a entrar no banheiro, pelo espelho Ricardo observou os contornos esboçados por detrás do box e um alvoroço tomou-lhe  conta. Espremeu alguns cravos nervosamente, mas a prazerosa agonia não o abandonava. Ao ver o amigo nu em pelo, enxugando-se com a toalha felpuda, sem pudores, o ator não se satisfez com a limitação do campo visual do espelho e virou-se com descuidada discrição. Contemplou o corpo nu de baixo à cima e arriscou olhares mais indiscretos sob o pênis grande e bem torneado, enquanto falava compulsivamente da emoção que o acometeu na ida ao colégio. Quando Duílio levantou a cabeça, já enxuto e encarou o amigo, este já havia se recomposto e até arriscou um comentário de que o outro deveria fazer uma ginástica para perder as dobras salientes, principalmente a pronunciada barriga que o comerciante reconheceu dever-se a intermináveis noitadas de chope. Enquanto Duílio aparava a barba, Ricardo despiu-se para o banho e apesar de estar aguçado para detectar que emoção estampava-se no rosto do amigo deteve o ímpeto. Ricardo sabia que a cara do amigo, estava coberta de creme, mas tinha fé que os olhos não mentissem. Ao perguntar sobre a toalha que deveria utilizar, os olhares se cruzaram e o brilho no olhar do amigo pareceu-lhe especial. ”Esse é o Duílio que conheci! Eu tenho certeza! Está um pouco acabado mais ainda tem o seu encanto”. Miragem ou não, o fato é que aquele momento repercutiu intensamente no espírito do ator deixando-o embevecido e com uma esperança louca, uma alegria indescritível que só amainou quando, culpado, lembrou-se do amante Clóvis enfurnado na Universidade alemã. 

Um pouco antes do jantar a família do amigo completou-se de tal forma que o encanto e o êxtase se renovaram. Ricardo sentiu-se hipnotizado pela invulgar aparição: o jovem Sérgio na flor dos dezesseis anos, com ligeiros traços da mãe e predominância dos caracteres fortes do pai. Era o jovem Duílio do ultimo ano do colégio, após o qual se separaram, que estava ali redimido, cintilante, com o largo sorriso e a mesma petulância. Às vezes discretamente, outras nem tanto, Ricardo examinou o rapaz com a volúpia de um aficionado da pintura. A combinação de cores, o frescor, a suavidade e graça dos contornos, o ar ao mesmo tempo inocente e malicioso, o porte altivo, eloqüente, faziam do rapaz um homenzinho tal que o hóspede, ainda nos afetivos paralelismo, viu-se especialmente maravilhado, tocado por um punhal prazeroso, brilhantemente doce.  Sérgio encontrou a oportunidade de saber detalhes dos bastidores da televisão. Todo o retraimento que o visitante  manifestou em revelar maiores detalhes de sua vida profissional e afetiva, caiu por terra diante da euforia do rapaz. 

Encerrado o jantar enquanto Duílio resolvia questões de trabalho com o sócio ao telefone, Dulce recolhia a louça para lavar, insinuando indiferença, mas atenta aos detalhes revelados pelo ator ao rapaz, detalhes que a intrigaram também, mas sentia vergonha de sondá-los. Histórias pitorescas como a da atriz que quebrou objetos de cena muito mais do que deveria e teve que ser contida pelos seguranças, como a outra que se vingou dele por tê-la desprezado dando-lhe um tapa em cena mais do que real e tendo um palavrão como resposta, inutilizando a tomada, ou ainda histórias mais sérias como nas brigas com colegas que só liam a parte que lhes cabia no script e contracenavam mais com a câmera do que com ele mesmo, perturbando o seu desempenho, induzindo-o também ao monólogo, deixando-o furioso e outras pérolas de maior quilate, fizeram a delícia da noite de sexta-feira, não só do jovem estudante como dos pais que se juntaram à animada dupla. Questionado agora por Dulce sobre a razão de não ter se casado o ator discorreu sobre a vida atribulada que levava e a dificuldade em manter relacionamentos estáveis. “mas eu li que você ia se casar, montou até apartamento na Barra...” – insistiu a senhora. Ricardo titubeou um pouco mais logo as qualidades de ator prevaleceram: “Realmente D. Dulce. Estava tudo certo. Mas não é que a Heloneida recebeu uma proposta irrecusável de Nova York como modelo e acabou desmanchando tudo! Eu fiquei arrasado, nem sempre as mulheres da cidade grande têm a formação que as mulheres daqui de província tem...” Ricardo riu-se por dentro, da ultima observação. Realmente, apesar do cinismo a observação para ele era válida. Só que preferia as que se libertavam dos laços econômicos do parceiro como a hipotética Heloneida e não a inquiridora com a qual insinuava uma falsa simpatia por diplomacia. 

Sérgio lembrou ao pai que podiam muito bem levar o visitante para passear à noite pela cidade. Piedade já não era a mesma de dezenove anos atrás. Crescera bastante. Poderia trazer algumas surpresas. Convidada, Dulce alegou que não ficava bem participar dessa algazarra de homens ainda que branda. Vendo-os saírem satisfeitos, arrependeu-se, mas se conteve.           

Realmente Piedade apresentava algumas novas áreas de interesse. Não muitas. A urbanização dos bairros residenciais se intensificara. O festival de antenas salientes nos telhados impressionou-o.  “Será que essas pessoas todas me vêem na televisão? Será que muitos ainda se lembram de mim? E Geraldão que fim levou?” – não pode deixar de pensar Ricardo, enquanto percorria a cidade por trilhas originais. O contemporâneo cicerone Duílio achou-o excessivamente introspectivo e instigou-o: “Que está achando da sua velha Piedade? Não tem o apelo do Rio, mas para quem quer levar uma vida pacata como a gente, nossa cidade até que já está muito avançada: o que tem de ladrões não está no gibi! Eu e meu sócio já fomos assaltados quatro vezes!” O ator achou graça e se esclareceu: “Estive pensando nas pessoas do colégio. Que fim levaram? Aquele tal Geraldo, o Luiz Sérgio, a baronesa...”. “Eu perdi o contato com todos. O único do qual tenho notícias é do Geraldão. Mas porque li uma matéria no “Diário de Piedade”. Ele esteve envolvido num assalto. Está sendo procurado!” – discorreu Duílio, retraindo-se também um pouco, envergonhado, pois se lembrou da cumplicidade do seqüestro. Ricardo regozijou-se pela vingança armada pelas contingências da vida, mas logo se amofinou, vexado com a própria mesquinhez. Sérgio quebrou o gelo instaurado apontando um ou outro travesti que perambulava pelas calçadas. Ricardo alvoroçou-se com as imagens. “Piedade está evoluindo realmente...” – pensou consigo. Uma freada brusca na rua estreita assustou a todos. “Vê como anda, seu cavalo!” – gritou Duílio com as têmporas quentes. O motorista parou o carro transgressor e desceu com o companheiro. “Cavalo é a mãe! – revidou. Duílio insistiu nos desaforos. Ricardo exasperou-se. “Pelo amor de Deus Duílio, deixe esses caras com suas carrancas para trás! Vamos embora! Não vamos fazer o jogo deles”. Enquanto os estranhos bufavam e esboçavam um avanço para abrir a porta do motorista, Duílio meditava e acabou por fim atendendo o pedido do ator. O carro foi acelerado, dobrou a esquina e abandonou os desafiantes que proferiram palavrões a se diluírem no vento. “Eu deixei esses safados de lado porque temi pelo Serginho. Meu filho é muito novo para enfrentar esses malandros!” 

Ricardo falou um tanto timidamente sobre a necessidade de auto-afirmação que as pessoas sentem. Teve vontade de rechaçar idéias que considerava machistas, hesitou por medo de comprometer-se, mas lembrando-se que até mesmo Serginho poderia ter tido a cabeça aberta pela fúria dos modernos cowboys se expôs : “Honestamente, eu já vivi bastante para ter certeza que é de uma mediocridade de espírito sem precedentes esses arroubos e desafios!”  Sentindo o mal-estar induzido em Duílio pela crítica direta, tratou de carregar as baterias contra os estranhos: “Aqueles dois cretinos devem levar uma vida tão mesquinha, sem horizontes, que situações como essa de que nos livramos lhes fazem sentirem-se vivos! O machismo, a eterna disponibilidade para a violência é o que permite que eles não sucumbam ao tédio. Na maneira besta deles de levarem a vida, esse é o único e desesperado ponto de apoio para orgulho que encontram. ( Eu sou é muito homem! Eu faço e aconteço! – não é o que dizem?). No fundo mais que raiva eles me dão pena!” Após terminar o seu discurso, Ricardo assustou-se com as mágoas adormecidas que lhe subiram a cabeça. Diante do ar estupefato dos acompanhantes calou-se com uma ponta de arrependimento pela ousadia. Logo se sentiu bem e de certa forma purificado, satisfeito com os demônios que soltara, apesar de sentir um vulcão prestes a derramar suas lavas de contrariedades dentro do espírito silencioso e ressentido de Duílio. Este motorista limitou-se a declarar, um tanto receoso de melindrar o hóspede, que “o pior mesmo é levar desaforos para casa!”. 

Dulce entornou a xícara de café na manhã de sábado quando Serginho repetiu pela segunda vez que no ano seguinte iria estudar no Rio de Janeiro não sabia bem o quê. Dado que terminaria naquele ano o colégio, prestaria exames vestibulares no final do ano. Estava em dúvida entre Jornalismo, Teatro ou Cinema, mas até a época das inscrições tomaria uma decisão. Perguntado se o orientaria no Rio, Ricardo mesmo constrangido pelos olhares indóceis dos pais aquiesceu. A mãe reagiu, ponderando os termos empregados, mas com um visível traço de histeria: “ O que é isso, rapazinho? Quem é que vai bancar a sua estadia por lá? O Rio de Janeiro, as faculdades, é tudo caríssimo. Você sabe que os negócios do seu pai já não andam tão bem como antes... e agora não é hora de discutirmos isso”. Ricardo quis logo adiantar que ajudaria o rapaz como pudesse, dando guarida e até ajuda econômica, mas achou melhor os ânimos acalmarem-se um bocadinho. Aquele não era o momento adequado para revelar-se como um mecenas. Duílio lembrou ao rapaz que eles já haviam conversado sobre as vantagens dele estudar Economia na cidade natal. Sérgio engoliu em seco a vontade de responder de forma intempestiva,  mas calou também os sentimentos pelo pudor de ser ainda mais repreendido diante da visita ilustre. 

 Refestelados no sofá da sala, diante de um sepulcral silêncio o ator sentiu-se na obrigação de tornar o ambiente acalorado ainda que corresse o risco de torná-lo mais glacial. “Eu tenho certo prestígio na emissora, mas não posso me comparar aos medalhões. Mas enquanto estiver empregado poderei ajudar o rapaz. O importante é que ele tenha vontade de estudar. Seja o que for!”. Duílio não se deu conta de que um exarcebado ciúme moldava-lhe o raciocínio e respondeu num tom rascante, sibilando as exaltadas palavras: “Eu agradeço, mas o rapaz ainda é muito novo para decidir o que fazer da vida. Você deve lembrar-se como delirávamos na nossa adolescência com os planos mais exóticos!” “Serginho eu quero que você faça umas compras pra mim. Estas discussões me fizeram esquecer o almoço!” – insistiu a prestimosa mãe, afastando o pomo da discórdia, pelo menos naquela manhã. 

Foi difícil para Ricardo encontrar um momento em que pudesse conversar a sós com o rapaz sem os olhos vigilantes, os ouvidos apurados da mãe e a presença sempre intimidadora do pai. Por alguns minutos preciosos em que o sócio discutia encomendas com Duílio e Dulce entretinha-se com as labaredas benignas do forno, os dois conseguiram um intervalo em que pudessem se mostrar mais por inteiro. O ator tinha curiosidade em saber até que ponto sua presença ali desencadeava essas vontades do rapaz e foi incisivo: “O que está realmente lhe atraindo no Rio de Janeiro? Você tem manifestado interesse nestas áreas que mencionou? “ Sérgio reagiu, um tanto abobado, com um previsível “como assim?” “Você gosta de ler jornais, livros revistas?” – inquiriu Ricardo apreensivo pois já tinha observado a ausência de uma biblioteca por pequena que fosse naquela casa. “Ah! Eu gosto sim! Eu costumo ir muito à biblioteca local. Eu quase não apareço com muitos livros aqui em casa porque os pais vivem me chateando que eu estou perdendo tempo...” “E o que você costuma ler?”. “Olha só o que eu estou lendo...” Serginho abriu a pasta e entre os cadernos e os livros didáticos retirou “Crônica do Amor Louco” de Charles Bukovski. O interesse de Ricardo em saber o que exatamente estava atraindo o rapaz neste livro foi frustrado pela insistência de Duílio para que viessem tomar um aperitivo antes de almoçarem. 

Num passeio solitário pelas ruas, vielas e praças da cidade Ricardo imaginou-se como se fosse o mais novo morador, alguém que veio pra ficar. Que laços atávicos ou dissimuladas raízes o prenderiam ali? O que restou daquele garoto medroso, hostilizado, difamado, que a todos intrigava com o seu mutismo dominante, somente combalido por uma calculada extroversão? Entre perdas e danos Piedade ainda despertava-lhe saudades? Não divisava uma resposta que lhe satisfizesse. Tinha apenas certeza de que se estava enfastiado da neurose do balneário carioca, agora já não mais se aclimatava à “êta vida besta!” que ali na província levavam. Se houvesse ficado na cidade como seria conhecido? Terezinha, a bichinha da Rua das Mercedes? 

Examinando os rostos sóbrios que perambulavam pelas calçadas tentou o reconhecimento de “companheiros de viadagens” pelas piscadelas cintilantes de olhos, mas foi em vão o esforço. Se não risse sozinho por algum tempo do trocadilho que ocorreu no momento, talvez o amargor lhe fosse mais imediato e pungente ao descobrir-se inapelavelmente sozinho naquela localidade. Até o momento só notara como destoantes apenas os assumidamente mal-ditos e vistos travestis. “Mas onde andam os homossexuais como eu? Em que casulos se escondem, em que fortalezas se resguardam da maledicência alheia?” – indagou-se o turista angustiado e deslocado. Sem vontade de voltar para a casa que o acolheu por sentir que o apoio dado ao rapaz despertara melindrosas contrariedades, considerou que aquele era um bom momento para refugiar-se no cinema, como nos velhos tempos. 

 “Bom Apetite” era o filme pornô exibido, o único representante da cinematografia mundial na cidade. A ele pois ! Entre um bocejo e outro, Ricardo ainda se concentrava nos perfis atléticos dos rapazes com seus indomáveis falos. Quando a paisagem erótica adquiria ares de operação ginecológica, o sensível cavalheiro fechava os olhos, recriminava-se por ter se atrevido a entrar, mas não se decidia a sair. A sessão era um flagelo que se impôs para ter certeza de que ali realmente não era mais o seu lugar e que deveria voltar para a “doce vida” da metrópole tão logo quanto pudesse. 

Um pouco antes de bater na porta, Ricardo já recebeu ecos de uma inflamada contenda travada na família. O calor das cobranças e recriminações era tal que o hóspede sentiu-se tímido para entrar. Ao ouvir o seu nome incluído nas lamentações postou-se perto da grade da janela, camuflado por um generoso arranjo de samambaias. Duílio era quem mais se exaltava: “Bastou vir uma pessoa de fora que você logo se assanhou... Ir morar no Rio com ajuda de estranhos!... Tem cabimento uma coisa dessas? Olha aqui rapazinho, entenda de uma vez por todas: Ricardo foi muito meu amigo, mas hoje não é companhia para você.! “ Mas por que pai? Que preconceito bobo!...” 

O pai encarou a mulher e o filho, titubeando, com receio de se expressar. Quando retornou à reprimenda, Sérgio assustou-se com a veemência das argumentações. Dulce dispôs-se ao lado do marido para reforçar o efeito. “Você já está bem grandinho rapaz e já deve compreender toda a maldade deste mundo. Eu tenho todas as razões para acreditar que o Ricardo não é um homem como eu e você. Eu não ponho a mão no fogo por ele! Ele pra mim é bicha! Bicha! Entendeu o perigo?!” “Eu não acredito!” – reagiu o rapaz. “Só o jeito como ele me olhou no banho ontem e esse papo covarde que ele levou no carro já são sinais mais do que evidentes... e eu não quero meu filho guiado por esse tipo de gente...”- contra-atacou um pai já em desespero. 

Encurralado pelos argumentos do pai, Sérgio não se conformou com os empecilhos colocados nos planos traçados. A frustração dos desejos despertou-lhe ressentimentos encobertos: “Vocês estão inventando essa história toda porque não querem que eu os deixe sozinhos! É uma apelação! Mais eu juro! Eu vou de qualquer jeito! Arrumo um emprego, sei lá ... Eu não vou é me acabar nesta cidadezinha enfadonha! Eu não quero ficar por aqui vendendo cigarros e tendo que subornar, dar uma graninha para os fiscais para tudo correr bem...” 

Duílio ficou pasmo com o avanço crítico do filho. Dulce aplicou o clássico “você não pode falar com seu pai desse jeito rapaz!”.O pai tratou de defender-se: “Olha aqui rapaz, no colégio os comentários sobre o jeito extravagante do Ricardo eram gerais. Até sobrava pra mim. Eu não estou mentindo! Não sou homem de mentir não!... Quanto ao dinheiro que dou para os fiscais não me amolarem eu não me arrependo, entendeu! Não é nada comparável à roubalheira, à corrupção, aos crimes que tem por aí. Eu não vou permitir que o dinheiro ganho com o suor do meu rosto vá cair nas mãos desses políticos para eles desperdiçarem ou roubarem!È uma questão de justiça!” “Você conseguiu estragar o sábado do seu pai, se é isso que você queria, não é Serginho?” – colaborou Dulce com os olhos ameaçando avermelharem-se. Sérgio ainda conseguiu surpreendê-los: “Eu não estou inteiramente convencido! Esse Ricardo me pareceu boa praça. Deixem comigo que eu sei como testá-lo!” Ante o aturdimento dos pais, Serginho explicou-se melhor: “Não vai ser nenhum teste de cama não, não se preocupem! Eu sei como descobrir a verdade, sutilmente... Deixem comigo...” 

Ricardo afastou-se até o bar da esquina para meditar sobre que atitudes tomar. Por pouco não entrou na casa e sacudiu a todos contando a verdade e garantindo que suas intenções eram de simplesmente ajudar o rapaz. Não acreditou, entretanto, que o casal se sensibilizaria com a sua sinceridade e recuou. Além do mais se a notícia de sua homossexualidade se espalhasse pela cidade logo ressoaria no Rio de Janeiro. “Mesmo esses diários interioranos tem suas cobras criadas bem relacionadas “ – concluiu com um riso nervoso. Como a passagem de volta, no domingo à tarde já estava comprada achou por bem voltar para enfrentar as feras como se nada houvesse acontecido, mas com cuidados, até que a hora da nova fuga chegasse. 

O jantar transcorreu silencioso, reinando apenas as poucas palavras de praxe para o transporte das travessas, a distribuição dos pratinhos de doce... Sentados no sofá da sala, a família reunida entretinha-se com a novela, enquanto o ilustre visitante constrangido num canto, queria viajar de volta imediatamente ao útero materno tal qual o escritor bêbado do livro que folheava, emprestado do rapaz. Entre um parágrafo e outro arriscou umas olhadelas para a novela para ver se aparecia no seu papel de galã. Quando o seu personagem mergulhou num fervoroso beijo com sua amada não resistiu e olhou discretamente para a trinca no afã de colher suas reações. Como que por um pacto os três pouco se alteraram. Dulce mordeu-se, mas não fez comentário. Por alguns momentos ela acreditou que comungara com uma injustiça. Teve vontade de perguntar no ato ao marido se ele tinha certeza de tudo que declarou, mas absteve-se. 

Terminada a novela Sérgio chamou Ricardo para o quarto com o pretexto de mostrar-lhe os retratos da família. Estivera pesquisando naquela tarde e descobrira inclusive fotos do ator quando adolescente e criança. Ricardo acometeu-se de um misto de excitação e pânico. Sabia que lhe preparavam alguma cilada, mas não só não queria despertar suspeitas como se interessou vivamente pelas velhas lembranças. Após alguns momentos de tênue emoção diante dos retratos de turmas, inclusive flagrantes dele e de Duílio no fundo da classe e no pátio da escola, Ricardo acompanhou de soslaio Sérgio abrindo um gavetão embutido na cama e retirando uma pilha de revistas masculinas. “O que você acha dessa gata aqui? Em Ipanema deve haver dessas de montão, não é mesmo? “  Ricardo intimidou-se. Sérgio insistiu: “Deve haver um bocado de mulheres assim dando sopa para você, não é mesmo? E desse tipo aqui , você gosta? O que lhe atrai mais numa mulher?” O rosto do ator corou imediatamente. Por questão de segundos ele se viu esmurrando o garoto não uma, mas duas, três vezes. Escutou os gritos do rapaz e os passos do pai que veio em socorro do filho. Imaginou-se segurando Serginho pelas mãos e girando-o até desfalecer, como uma arma potente a sangrar com a força dos pés o rosto e o peito do pai. Imaginou não só a mãe berrando diante do rebento estirado no chão como o jornal da televisão anunciando no horário nobre o crime do ator homossexual Ricardo Fernandes na sua cidadezinha natal....”O que lhe atrai mais numa mulher?” – insistiu o rapaz. 

Ricardo recompôs-se e executou um convincente improviso com sua verve de ator, ainda que um pouco fora de forma. Esmerou-se na composição da cara safada, piscou os olhos e incorporou um novo personagem para a ocasião:  “Sabe rapaz, eu gosto mesmo é dessas que tem umas coxas deste tamanho! Agora, um traseiro bem grandinho, rechonchudo, uns peitinhos arrebitados são fundamentais!”  E para encerrar carregou no jeito malandro: “uma buceta gostosinha, ardente,com os pelinhos aparados também é imprescindível!” 

Sérgio confundiu-se com a postura do ator. Ensaiou perguntas mais claras, mas Ricardo tomou a dianteira: “Sabe rapaz, eu tinha me oferecido para ajudar você lá no Rio mas pensando bem eu acho que não fica bem mesmo para os seus pais  eu ajudá-lo. Eles vão se sentir frustrados nos seus esforços. Eu me precipitei, você me desculpe!” Ricardo encerrou o seu comentário sem saber até que ponto expressava realmente a sua  opinião ou ainda estava sob os eflúvios do personagem incorporado. 

As despedidas da tarde de domingo foram frias, protocolares. Os tímidos apertos de mãos e comedidos abraços encerraram a inesperada visita do venerável cavalheiro. Observando por uma janela lateral do ônibus, no alto da serra, como a cidade e suas casinhas se tornaram diminutas, perdendo-se, confundindo-se com a mata densa das montanhas, Ricardo, com óculos escuros, disfarçado, entendeu melhor a razão de sua vinda, o porquê do seu amor e ódio à Piedade: “Eu esperava que Piedade fosse para mim um refúgio, um lenitivo para o corre-corre do Rio, mas a vontade de vingança foi maior, sobrepujou a necessidade de carinho... Vingança... Vingança... Que bobagem, o tempo esse nosso mais feroz adversário, se adiantou e vingou-se por mim, levando-nos de roldão. O tempo realizou seu intento, eu não. Como poderia me vingar deles se minha alma, como todas, cariocas ou “piedosas”, se tornou também provinciana, não importando aonde eu vá! Mesmo ao seu lado,  na Alemanha, aonde vou, meu adorado Clóvis!...” 

Nelson Rodrigues de Souza

link da imagem:  http://www.bergmanorama.com/gallery5/persona-13.jpg

                 

 

 

 

 

 

2 comentários:

  1. Quanta dor...quanto desejo reprimido...quanto conflito ...serviu para romper com ilusões perdidas na lembrança ,,,desapegar-se e viver intensamente mesmo que na penumbra seus desejos.Fortíssimo...um indo conto!!!!Pena que não tiveram coragem de olhar Ricardo nos olhos>>>Adorei...

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