quarta-feira, 30 de junho de 2010

Por Que me Identifico Tanto Com o Cinema de Roman Polanski




A estréia recente de “O Escritor Fantasma” (2010) de Roman Polanski suscita a eclosão de velhos fantasmas em mim. O cineasta de que mais gosto, o mais admirado e amado é Ingmar Bergman. Outros tantos podem ser lembrados. Mas o francês-polaco que passou a infância no gueto de Cracóvia, dentre outras célebres vicissitudes na trajetória de vida exerce enorme fascínio em mim.

“O Processo” (1962) de Orson Welles é extraordinário, mas num conjunto de obra quem mais emulou as inquietações de Kafka no cinema, que eu conheça, foi Polanski. Não é à toa que participou de uma montagem de “A Metamorfose” em Paris como ator compondo o Gregor Samsa que acorda um dia transformado numa espécie de inseto monstruoso e acaba dentre outras maldades e incompreensões recebendo maçãs podres na cara jogadas por membros da família.

A condição do homossexual no Brasil é tremendamente kafkiana. Em “Carta ao Pai” Kafka narra que via a vida como um mapa-múndi enorme onde o pai se deitava. Os espaços vazios era aonde podia movimentar-se. Este sentimento também sempre me acompanhou e por pai aí se pode entender ao pé da letra ou a sociedade ou então o estado.

Nascer homossexual é estar num mundo que não foi feito para nós, é estar sendo alvo de um processo contínuo cuja responsabilidade desconhecemos, é acordar transformado num inseto, é tentar atingir um castelo inacessível, é estar dentro de um buraco e ter medo de sair, etc.

Em “O Bebê de Rosemary” (1968) a protagonista acredita estar sendo alvo de pactos demoníacos que garantiram ao marido um emprego desejado. Ao final em aberto embala sua criança que pode ser o anticristo gerado num novo ano zero. Ficamos sempre no terreno das ambigüidades, das imaginações de uma sexualidade reprimida pela religiosidade ou então de fato temos um complô diabólico da vizinhança que lhe receita chás especiais durante a gravidez. Ao contrário do que acredita o psicanalista Waldemar Zusman em “Os Filmes Que Vi Com Freud” (Editora Imago) nem tudo pode ser gerado pela mente frágil de Rosemary. Polanski, perverso, nos joga no terreno das sugestões e aparências sutis em que o mistério ecoa em nossas mentes no final ao som de uma canção de ninar, abandonando aos poucos o sinistro edifício Dakota, onde anos depois seria assassinado John Lennon. O erro de Zusman foi freudiana e ortodoxamente não acreditar em satanismo. Tem todo direito. Mas assim como existem filmes de zumbis em que temos de entrar nesta lógica, “O Bebê de Rosemary” exige e reinvindica para si uma lógica parecida. São exclusividades dos sortilégios da arte.

Em “O Inquilino” (1976) um polonês, Trelkovski, vivido magnificamente pelo próprio Polanski aluga um apartamento em Paris onde a antiga inquilina Simone Choule tentou o suicídio e está toda enfaixada como uma múmia no hospital. Aos poucos ele vai descobrindo signos egípcios na parede, vê pela janela uma mulher cobrindo o corpo com ataduras, chega a colocar uma peruca para passear nas ruas e cai numa espiral de paranóias culminando com um grand finale felliniano, num clima de festa, onde vê os moradores do prédio efusivos em suas janelas incentivando-o a se jogar.

Aqui também estamos no terreno das ambigüidades onde realidade e alucinação se confundem e não sabemos ao certo estabelecer uma linha divisória. Tudo pode ser um complô xenófobo dos moradores como delírio paranóico do protagonista. Mais um final em aberto. Em “Repulsa ao Sexo” (1965) fica claro o distúrbio psicológico da protagonista que acaba matando homens que a desejam. Já em “O Bebê.....“e “O inquilino”, filmes irmãos, reina as trapaças das ambigüidades.

Em Armadilha do Destino (1966/Cul de Sac/Beco Sem Saída) (com pontos de contato com “Violência Gratuita” (1997/2007) de Michael Haneke) os moradores de uma casa no campo são progressivamente agredidos por estranhos que chegam, sem nenhuma razão aparente. A um morador resta por fim sentar numa pedra sobre as águas e colocar as mãos na cabeça para entender o que pode ter acontecido, o que fazer do resto da vida.

Em “A Morte e a Donzela” (1994) uma mulher que foi torturada acredita ter encontrado o seu torturador e conseguindo prendê-lo passa a torturá-lo, vingando-se, a despeito das hesitações do marido. O que é realidade ou imaginação? Abstraindo-se da violência em jogo, terá sido feito mesmo justiça?

Em “A Faca na Água” (1962) temos um triângulo amoroso perpassado por um clima constante de violência no ar e homoerotismo velado, por mais calma que se aparente. O estranho acolhido no barco meche com a libido e os ciúmes do casal, mostrando como é frágil a relação burguesa estabelecida.

O menino protagonista de “Oliver Twist”(2005) é jogado no mundo e tem de sobreviver junto a um gigolô de prostitutas e crianças/adolescentes trapaceiros.O grande desafio de Oliver é não perder a humanidade num meio social corrompido até a medula e isto de fato acontece, pois acaba compadecendo-se do velho Fagin condenado à morte.

Em “O Pianista” um músico judeu perde toda sua família nos campos de concentração nazista e passa a ter como único objetivo sobreviver solitariamente entre os escombros e prédios erodidos e insalubres, comendo até batatas deterioradas.É o seu heroísmo possível.O encontro com um nazista que se encanta com a forma como ele toca Chopin acaba salvando-o. Aqui temos um filme também grandioso, o mais próximo da biografia do diretor ainda que tenha sido baseado no relato de vida do pianista Vladislau Spilman, onde não há a menor espécie de maniqueísmo. Temos judeus com as mais variadas posturas e até mesmo nazista que se deixa sensibilizar pela música.

Já o recente “O Escritor Fantasma” (montado na prisão domiciliar onde se encontra o autor na Suíça, aguardando uma decisão (kafkiana) de ser deportado ou não para os EUA onde é acusado de crime de pedofilia em 1978) é o filme mais nitidamente político de Polanski e não deixa de ter seus paralelos com os filmes citados. Um escritor desempregado aceita ser ghost-writer de um ex-primeiro ministro inglês para escrever suas memórias que vive numa ilha nos EUA e é acusado de ter facilitado torturas no que chamam de guerra ao terror. O escritor se diz capaz de fazer o trabalho como o coração. O anterior ghost-writer foi encontrado morto no mar. O fantasma escritor (sem nome) vai mergulhando cada vez mais nos calhamaços deixados e na realidade que o circunda, caindo numa roda-viva de mistérios onde diálogos econômicos e cortantes levam a história para um desfecho impactante, com um antológico efeito de extra-campo. Com as armas da ficção que remetem a acontecimentos reais (impossível não lembrarmos de Tony Blair) Polanski de certa forma se vinga do país do qual evadiu-se, mostrando em que ele se transformou.

Um dos filmes em que Polanski trabalhou como ator é “Uma Simples Formalidade” (1994) de Giuseppe Tornatori onde faz um inspetor de polícia que interroga ostensivamente um homem, com outros na sala de espera na mesma situação. É uma obra que poderia ter sido dirigida por Polanski, pois guarda forte identidade com os labirintos existenciais tão caro ao cineasta.

Os filmes citados têm elementos nitidamente kafkianos, mas obviamente não se restringem a eles. Polanski é um artista múltiplo que trabalha o classicismo de linguagem com o máximo de transparência e alto nível de opacidade, sem o qual a arte não vive, fazendo um inventário das perversidades humanas e as circunstâncias onde elas eclodem.

Mesmo correndo o risco de ser acusado de fazer o discurso da vitimização (o que Polanski sempre evitou) me atrevo a escrever que num mundo onde um adolescente de 14 anos foi assassinado no Brasil por um grupo homofóbico, me sinto um personagem de um filme de Polanski saído das páginas de Kafka.

Uma das mais belas e contundentes adaptações de Shakespeare para o cinema é “Macbeth” (1971) de Polanski, feito ainda sob o impacto da morte ritual da mulher Sharon Tate em 1969. É uma obra eivada num exorcismo de sangue e vilania, um filme que nos corta com lâmina afiada mostrando os abismos a que podem chegar os corações humanos. Não é à toa que vem desta peça o acutilante adágio “A vida é uma história contada por um idiota cheia de som e fúria, significando nada”. Shakespeare capta aqui o absurdo da existência que ecoa em Kafka, em Polanski e em mim.

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Nelson Rodrigues de Souza

Satisfação ao Distinto Público Leitor

Satisfação ao Distinto Público Leitor

Parei este blog por motivos de saúde e agora me sinto forte para retomá-lo. Fico contente de constatar que mesmo neste período de silêncio o blog continuou sendo visitado.

Obrigado

Nelson Rodrigues de Souza