sexta-feira, 29 de abril de 2011

No Fundo de Cada Verdade e Desejo Encobertos























No Fundo de Cada Verdade e Desejo Encobertos

(Os textos contém spoilers, ou seja, detalhes das narrativas são revelados para a análise pretendida)

1- “Bróder” (Brasil/ 2009) de Jeferson De

O cineasta Jeferson De chegou a redigir o que chamou de “Dogma Feijoada”, com alguns pontos básico que conduzissem os filmes a tratarem os negros sem estereótipos, tendo no Brasil, Cacá Diegues como um dos seus avatares em termos de “obediência” a esta tendência. Gosta muito de uma sequência de “Ganga Zumba” de Cacá, onde Léa Garcia é uma negra que nem quer ficar nas garras da escravidão, nem também não tem vontade de ir para um quilombo. É neste meio termo, caminho do meio, que o cineasta se sente hoje.

Um dos pontos altos do fascinante “Bróder”, ganhador do Festival de Gramado de 2010 e do Prêmio da Crítica de Melhor Filme, Melhor Fotografia (Gustavo Hadba), Som (Miriam Biderman e Ricardo Reis) e Direção de Arte (Alessandra Maestro) do 3º Festival de Paulínia, é que ele numa fase mais madura do cineasta não se aprisiona em dogmas.

Três amigos de infância, Macu (Caio Blat, neste que talvez seja seu melhor trabalho no cinema, num conjunto de vários grandes desempenhos), Jaiminho (Jonathan Haagensen, revelado em “Cidade de Deus”) e Pibe ( Sílvio Guindane, aquele menino que vimos no impactante “Como Nascem os Anjos” de Murilo Salles em 1996, agora já ator bem maduro, além de autor e diretor teatral) se reencontram anos depois, para uma feijoada na casa de Macu, onde se comemora o aniversário deste. Tudo se passando no Capão Redondo, uma enorme favela paulista de periferia, bastante hostil e inóspita, onde não se tem o lenitivo de algumas favelas cariocas, de onde se tem uma aprazível e bela visão das belezas naturais do Rio de Janeiro. O encontro efusivo deles se dá numa conjuntura emblemática: os abraços têm como pano de fundo uma pessoa morta estirada no chão, sendo chorada por uma pessoa que dela se compadece.

Macu está cheio de dívidas se entrega à marginalidade tendo de participar da logística de um sequestro de um “Pequeno Príncipe”. Jaiminho é um jogador de futebol famoso (uma das válvulas de escape social possível para quem tem talento nesta área), sediado na Espanha, tem esperança de conseguir uma vaga como jogador da Copa do Mundo, defendendo as cores do Brasil. Pibe casou-se com Cláudia, trabalha como técnico num centro médico, tem um filho e está insatisfeito com sua vida “fútil, cotidiana, tributável” como diria Fernando Pessoa.

O pai de sangue de Cadu desapareceu. Sua mãe (Cássia Kiss, ótima nos papéis coadjuvantes que tem feito no Cinema Brasileiro e aqui não é exceção) se junta a um pai (Ailton Graça, um dos atores negros muito bons em atividade) com uma filha, que está grávida de Jaiminho, um padrasto que quer assumir a paternidade de Cadu, mas o encontra arredio, percebendo que ele deve estar envolvido em enrascadas com marginais. Sua discussão com Cadu no dia do aniversário é no mínimo, bastante forte e convincente.

Um dos grandes méritos do filme é que mesmo trabalhando com atores que são figurinhas carimbadas do Cinema Brasileiro, ele imprime uma forte autenticidade a tudo que mostra, seja nas festas, no dia a dia, como nos encontros entre os amigos e destes com terceiros, onde a linguagem e emoções despertadas são bastante trabalhadas, fazendo-nos mergulhar no “Universo Capão Redondo”. Uma sequência que destoa do filme e mostra certo maniqueísmo é o telefonema de um chefe de Jaiminho que está num campo de golfe com uma louraça. No mais reina a sobriedade e espontaneidade, seja carinhosa ou agressiva.

Mesmo na feijoada do aniversário, Macu é acossado de tempos em tempos pelos marginais que os domina. Estes, depois o comunica que os planos mudaram. O que desejam agora é sequestrar o jogador Jaiminho, o que vai desencadear um forte conflito ético interior em Macu, um personagem branco que poderia ser “um negro da favela”, mas o diretor e os demais roteiristas, dentre os quais o escritor negro Ferrez (de histórias da periferia de São Paulo), fizeram questão de criar uma inquietante inversão, explorando o que Capão Redondo pode ter de deletério socialmente, independentemente de cor da pele.

O filme alterna cenas de grande vivacidade em relação aos costumes e comportamento de três amigos, com um thriller em paralelo, amigos que embora tenham tido destinos bem diferentes, ainda mantém certa inocência que advém de quando eram crianças amigas. Isto não impede que ocorram grandes brigas, principalmente quando há uma blitz, Jaiminho usa seu poder de “você sabe com quem está falando?” e depois descobrem que Macu trazia uma arma no carro.

“Bróder” tem uma fotografia granulada e acinzentada que ressalta a “prisão social” que é Capão Redondo”, por mais que aqui e ali a alegria também possa florescer. É um filme sobre a amizade antes de qualquer outro subtema. Quando Cadu vai encontrar seus comparsas com dinheiro para alforria dado por Jaiminho, seu padrasto, farejando o perigo, numa comovente sequência lhe dá um revólver para seja o que for, ele se proteger. Cadu instado pelos colegas de crime a ligar de imediato ao jogador Jaiminho e pedir que ele volte urgentemente ao Capão Redondo para encontrá-lo, naquela que é a mais bela e pungente sequência do filme, pega o celular, liga e diz chorando ao amigo que lute bastante pelo Brasil na Copa, o que o fará ser alvejado e justiçado pelos bandidos. Assim temos o paralelismo incômodo de ver num plano que reserva certa distância, Cadu agonizando e sua família vendo pela televisão com suspense a escalação dos jogadores para a Copa, em que finalmente Jaiminho é chamado.

Uma panorâmica expressiva da imensidão hostil do Capão Redondo, favela gigantesca da periferia, ao som de um rap dos Racionais MC encerra este filme singular e muito bom, que escandalosamente demorou demais para chegar ao circuito, mesmo com todas as qualidades que tem e das quais o texto só comentou parte.

2- “Murro em Ponta de Faca” de Augusto Boal, direção Paulo José, Teatro Sesc-Copacabana-Arena, até domingo 30/04, quando haverá debate com Paulo, Cecília e Fabian Boal ( mulher e filho de Boal) sobre as condições em que a peça foi gerada e outros temas conexos.

Vi no “Teatro Ducilna” em 1979 à primeira montagem de “Murro em Ponta de Faca” com direção do próprio Paulo José. De lá para cá já perdi a conta de quantos filmes, peças e livros li. Assim o que me lembrava da montagem é que se tratava das peregrinações de exilados brasileiros pelo mundo, acompanhadas de muita dor e angústia, lembrando-me mais do trabalho ótimo de Dina Sfat. Não me lembrava mais do que isto.

Acredito que isto que acontece comigo também ocorre com outras pessoas. Assim tanto para quem viu a montagem há trinta anos atrás, como para as novas gerações é mais do que oportuna a remontagem da peça, ainda mais que ela se escora mais em valores humanos atemporais do que no ambiente político da época, o que a faz não ser de forma alguma datada.

Vista agora, é como nunca a tivesse visto, pois me deparo com seis personagens, três casais, solidamente construídos dramaturgicamente, de forma que tenho um painel bastante significativo, expressivo e sensível de personalidades de exilados brasileiros da ditadura militar que perambularam sofridamente por vários países, mas sempre com banzo do que deixaram na terra em que nasceram. Isto fica patente logo de início, quando são todos instados a relatar do que mais tem saudade do Brasil, enquanto estão exilados no Chile. Com o golpe militar de Pinochet e a morte de Salvador Allende, acompanhado pelo rádio, eles se refugiam junto a muitas pessoas num lugar fétido, com racionamento de comida, até que vão para a Argentina e dali para a Paris, onde apesar da riqueza cultural sofrem para se inserir nesta cidade nova, ganhar dinheiro e assim realmente poder usufruir o muito que a cidade tem de bom, o que passa a ser uma quimera.

Como a condição de exilados unidos pelo acaso, com parcos recursos, não muda, mesmo ao mudarem de pais, o que fica patente e expressivo pelas malas que carregam, carregam, mas acabam compondo o mesmo cenário, só os sonhos com uma volta ao Brasil, que não sabem quando será, lhes dá algum alento maior. Unidos e muitas vezes desunidos, têm nas alfinetas mútuas o modo de se manterem ativos e vivos.

Paulo é músico e deixou vários instrumentos musicais no Brasil, restando-lhe um violão e de todos é o mais disposto a dizer um rotundo não ao estado das coisas no Brasil. Envolve-se com Maria que cai em profunda depressão, o que a levará à morte num hotel, que anuncia por telefone, o que gera uma das cenas mais impactantes da peça, com trabalho ótimo dos dois. Marga uniu-se ao Doutor em Bariloche, o que a faz ser tida como uma exilada sexual, pois se voltar pode ser morta pelo marido, comentam ironicamente. Doutor mistura consciência crítica vaga das forças internacionais em jogo, deixou biblioteca fantástica no Brasil, mas incorpora certo pedantismo, o que o faz ser alvo de observações ácidas dos demais, principalmente de sua mulher Margas que volta e meia lembra a todos que está ali por acaso, não tem ideologia formada e que não queria estar casada com o Doutor, tendo sido isto um grande erro de sua vida. A atriz que a faz é fantástica, quase que operística em muitos momentos, sendo um dos pontos altos do espetáculo (infelizmente o programa da peça que envolve atores desconhecidos por mim não associa personagens a atores). Chega a seduzir os homens e transar com Barras, o que acaba contando a todos, menos ao marido. Barras sente saudades da quantidade variada de pimentas que tinha no Brasil. Sua companheira Foguinhos faz tudo para se mostrar uma mulher feminista, moderna e forte, aceitando a traição do marido em público, mas advertindo-o em particular.

Em suma: o que ressalta na peça mais do que os valores políticos e históricos é a fragilidade humana destes personagens colhidos pelos vendavais de um tempo muito sombrio da História brasileira. Isto não impede que a peça dê conta de todo este contexto histórico que envolve os exilados fora do país, algo que o Cinema Brasileiro ainda não fez e no Teatro só conheço esta peça que o tenha feito com tanta sensibilidade e força.

Depois de anos de peregrinação, via-crúcis, os casais Margas-Doutor e Barras-Foguinhos resolvem voltar ao Brasil. Paulo e Maria decidem ficar por não acharem que seja o momento. Num monólogo belíssimo, Paulo faz um hino de não conformismo e não submissão. Mas Maria, numa atitude emblemática de alguns exilados ( como os outros personagens também representam) acaba sucumbindo à dor.

Se a peça é um “Murro em Ponta de Faca” dos personagens, é um soco na boca do estômago do espectador, realizada por um elenco muito bom, num texto que está tinindo de atualidade num mundo em que muitas pessoas não encontram lugar em seus países, emigram se tornando párias de sociedades que não os reconhecem ou até mesmo em que pessoas (como eu, homossexual, originário de família de poucos recursos, carente de direitos básicos de cidadania, não podendo nem mesmo beijar um parceiro na rua sem risco de ser agredido) se sentem exiladas dentro do próprio país.

3- “Fascinante Gershwin -Uma Revista Musical” de Rubens Lima Junior, baseada em mais de 30 canções dos Irmãos Ira e George Gershwin

Charles Möeller e Cláudio Botelho estão explorando agora musicais com grandes recursos de produção. Sai “Hair” no Teatro Casa Grande-RJ e entra “Um Violinista no Telhado”. Lembro-me quando vi Cláudio Botelho pela primeira vez na TV Cultura num delicioso pocket -show com Cláudia Neto, cantando standards da grande canção americana, o que evidencia que os caminhos para os musicais no Brasil podem e devem ser os mais variados.

“Fascinante Gershwin” com as vozes esplêndidas e capacidades de interpretação maiores de Sabrina Korgut, Chris Penna, Fabrico Negri e Rodrigo Cirne, num cenário despojado onde tem-se cadeiras, um balanço e dispositivos como que escadas, trabalhando com canções variadas da dupla no original, valendo-se de mímicas em que ela é cortejada pelos três, num jogo de aproximações e afastamentos, projetam a voz pela sala de espetáculo com sonora grandiosidade, provocando palmas efusivas e sinceras a cada número. É mais uma prova da grandeza e efervescência variada de que vive hoje o musical no Brasil, que tanto pode apoiar-se no que se faz de melhor na Broadway, como seguir caminhos mais modestos mas nem por isso sem a imantação de grande interesse.

O quarteto de cantores é fantástico. Se tivesse que escolher quem encanta mais ficaria com Sabrina. A interpretação de S’Wonderful se cantada sem certo falsete um pouco caricato teria rendido mais, uma canção imortalizada também na interpretação de João Gilberto em um dos seus clássicos que é “Amoroso”. Mas fora esse senão que, aliás, nem é tão grande assim, tudo o mais é puro prazer, dando vontade de rever, rever assim como ouvimos um CD várias vezes.

O espetáculo em cartaz no Rio desde meados de 2010 encerrou domingo sua carreira no Rio de Janeiro (por hora) e os atores anunciaram novos projetos, incluindo outro nos moldes deste atual, mas com outro autor.

Mas seria um equívoco se o grupo tão coeso não explorasse o grande potencial de público em outras cidades, como São Paulo, senão agora, mas em outra oportunidade. Imperdível e com gosto de quero mais. Desde o extraordinário “Beatles Num Céu de Diamantes” não se via na cidade um espetáculo assim econômico, mas tão fascinante.

4- “Ninguém Falou que Seria Fácil” de Felipe Rocha, direção de Alex Cassal, co-direção de Felipe Rocha, com Felipe Rocha, Renato Linhares, Stella Rabello

Bárbara Heliodora critica, não sem razão, algumas peças ditas experimentais que ignorando a ideia básica de personagens, um conflito fundamental e evolução deste mais por ações do que por ideias, simplesmente se mostram diferentes do mais comum, mas não acrescentam algo mais na experiência vivencial do espectador que é o que mais importa. Os atores podem estar tendo o maior prazer em estar em cena. Mas o prazer maior tem de ser o do espectador, um erro que já acometeu até mesmo a experimentada Cia. dos Atores de Enrique Diaz em “Devassa”, mas que ela não incorreu no soberbo “In on It” com espantosas interpretações de Fernando Eiras e Enrique Diaz ( no dia em que vi, este substituiu Emílio de Mello, o que dado a grandiosidade deste ator, teria me proporcionado um espetáculo ainda melhor do o que vi).

“Ninguém Falou que Seria Fácil” é o exemplar espetáculo que foge completamente à dramaturgia mais tradicional e consagrada (que pode ser apreciada em “Murro em Ponta de Faca” já comentada), mostra atores que têm grande prazer no que fazem e provocam também imenso prazer na plateia, ao menos na maior parte dos espectadores que a viram no sábado último no Teatro Maria Clara Machado-RJ.

Quando a peça começa um casal discute sobre quem teria culpa no paradeiro desconhecido da filha pequena. As acusações e desculpas são mútuas. Um jovem ator, vestindo camiseta e cueca surge como a filha desaparecida. O ator que faz o pai quer também fazer a filha. Assim a mãe passa a ter duas filhas para cuidar e acarinhar, mas tem que se impor sob protestos para ir trabalhar. E assim metamorfoses sucessivas de situações dramáticas vão se sucedendo ininterruptamente, enfatizando a solidão, carência, incomunicabilidade e descolamento existencial de seres em meio a situações em que não tem controle. Um pai chega a dizer ao filho: este é o pai que você tem e vai ter de se acostumar com isto!

Muitas situações criadas, como a do índio que surge quando um pai conta uma história à filha viciada em chupeta são francamente engraçadas, em outras predomina o espírito agridoce, um tom que agora está presente em muitos filmes contemporâneos e peças, um sentimento de mundo que se tornou quase que onipresente, quando não trágico.

As soluções de cenografia e figurinos são fascinantemente simples, oportunas e trabalham a favor das micro-histórias criadas que formam um grande mosaico dos estranhamentos da vida cotidiana hoje ( ou de sempre?), ou como diria Ferreira Gullar, “ a estranha vida banal”.

De forma desabrida aqui e ali surgem cenas homoeróticas e até mesmo um ménage a trois muito bem coreografado, assim como outras cenas de apelo visual. Em uma delas chega-se a homenagear “2001, Uma Odisseia no Espaço” de Kubrick, numa contínua demolição e construção do espetáculo, valendo-me de uma expressão cara a Aderbal Freire Filho.

“Ninguém Falou que Seria Fácil” é um trabalho original, instigante, desafiador, inteligente e imperdível. O grupo responsável, “Foguetes Maravilha”, depois da temporada no Maria Clara Machado ( Teatro do Planetário) vai se instalar em maio no Sérgio Porto, onde mostrará também o trabalho anterior “Ele Precisa Começar” ( onde estava eu que não vi este espetáculo?) e outro posterior a este aqui comentado. Ao Planetário até o fim do mês e ao Sérgio Porto, pois.

5- “A Minha Versão do Amor” (Canadá/Itália/ 2010) de Ricahrd J. Lewis

A maior crítica que se pode fazer a este filme está ligada aos seus maiores trunfos que ressaltam seus maiores calcanhares de Aquiles. Paul Giamatti e em escala menor Dustin Hoffman estão soberbos como os judeus Barney e seu pai Izzy respectivamente. Se o filme não contasse com estes grandes atores ficaria mais visível a falta de convicção que o diretor imprime às cenas, adaptadas de um romance de Mordecai Richler .

Outro romance de Mordecai gerou um grande filme de Ted Kotcheff , “O Aprendizado de Duddy Kravitz"( Canadá/1974), antes do diretor cometer/enveredar/ se perder pelos caminhos de Rambo, o que me provocou antipatia para seguir sua obra posterior que pode até ter tido seus momentos de brilho. Há um filme de Kotcheff , “Pelos Caminhos do Inferno”, bastante incensado pela crítica paulista há anos atrás que gostaria muito de conhecer. Será que algum “pirata” me ajudaria?

Já “A Minha Versão do Amor” está na fronteira entre um filme regular e bom, sendo que o que dá sustentação mesmo ao filme é a prodigiosa capacidade de Giamatti e Hoffman ( um ex-policial) nos tocarem tanto com seus dotes cômicos como dramáticos ou naqueles limites em que “o que dá pra rir dá pra chorar, questão só de peso e medida, problema de hora e lugar” ( segundo Billy Blanco).

Barney está velho e tendendo ao mal de Alzheimer, separado da terceira mulher Miriam (Rosamund Pike), com quem tem uma filha e um filho, depois de ter tido dois casamentos em que a primeira se suicidou e a segunda foi flagrada na cama com seu melhor amigo, o qual foi morto por ele num acidente, emblemático do como o cômico pode se confundir com o dramático. Barney é um produtor conformado de novelas medíocres de uma empresa chamada “Totalmente Desnecessária”. Um dos problemas do filme, que diga-se tem uma produção esmerada que enche os olhos, no melhor sentido, é que flagramos Barney em crise com as mulheres, mas pouco se desenvolve o enfado que seu trabalho pouco criativo, mecânico, pode lhe acarretar no cotidiano. Prefere-se enfatizar seu lado fauno.

“A Minha Versão do Amor” se vê com prazer e se não dá conta de forma forte das agruras a que o amor pode nos levar, é recomendável para quem não perdeu o gosto por assistir grandes atuações, algo que a era do divismo hollywoodiano impunha para deleite de muita gente, mas que agora, mesmo sem divas e divos propriamente ditos, faz sentido para nos movermos de casa à tela escura e grande dos cinemas.

6- “Cidadão Boilesen” ( Brasil/2009) de Chaim Litewski

Henning Albert Boilesen (1916-1971) nasceu na Dinamarca, se mudou para o Brasil, teve uma bem sucedida carreira empresarial e tornou-se presidente do grupo Ultra, da Ultragaz, no tempo em que se vendiam muitos bujões de gás, “semana sim, semana não, Ultragaz no portão”. Comungando da ideia de que João Goulart com seu discurso na Central do Brasil em prol de reformas de base, dentre elas uma verdadeira e ampla reforma agrária ( o que o Brasil não fez até hoje, algo que vários países capitalistas, como os EUA já fizeram há anos) iria levar o Brasil para o caminho castrista do comunismo, apoiou, como outros empresários e boa parte da grande imprensa, o golpe militar de 1964, com a ideia tosca de que se tratava de uma revolução.

Até aí sua trajetória se confunde com a de outros empresários. O que singulariza Boilesen, conforme até mesmo uma pesquisa em seus antecedentes escolares mostra ao narrarem um episódio em que sentia prazer em ver seus colegas sofrerem num castigo imposto, é o seu lado sombrio ( que todos temos) mas exacerbado, pois além de ser um dos articuladores civis da Operação Bandeirantes (Oban), era um dos financiadores e aquele que convencia outros empresários a contribuir ( o que não fizeram Antônio Ermírio de Moraes e José Mindlin) e que não se contentando com este papel frequentava o DOPS para assistir a sessões de tortura, importando um mecanismo torturador dos EUA que ficou conhecido com seu nome.

Logo de início sabemos que Boilesen foi assassinado e flashs deste atentado irrompem aqui e ali na narrativa deste doc. De inicio temos entrevistas com pessoas que moram numa rua com nome do empresário, as quais não sabem nada além do trivial sobre quem foi este cidadão.

Sedutor e ‘bem relacionado” Boilesen, deixou lembranças fortes em muitas pessoas, mesmo naquelas que estão no espectro ideológico oposto. Mas apesar das negativas de entrevistados como o filho, fica patente que não se tratava apenas de uma questão de opções ideológicas. Estamos diante de um cidadão de personalidade doentia e perversa que participou ativamente da repressão, captura ( cedendo caminhões da Ultragaz) e tortura ( como voyer e tecnólogo) aos brasileiros que se vendo encurralados e sem opções, optoram pela luta armada contra o regime militar. Pode-se discutir o sentido pragmático da luta armada como fez Ferreira Gullar num Programa Roda-Viva recente ( para o poeta que foi convidado a aderir e recusou, era uma atitude suicida pois os revoltosos teriam de lutar contra toda as forças armadas e sem a concreta participação popular, preferindo assim se exilar), mas o que não se pode nunca é defender qualquer forma de tortura (algo que ainda ocorre hoje em muitas delegacias com os pobres pobres).

Dentro deste contexto que o filme mostra entende-se a violência reativa contra Boilesen, que morreu com muitos tiros e mais um de misericórdia para se ter certeza de que havia morrido, conforme é mostrado por animação, cenas de filmes de ficção e através da narrativa de ex-militante que hoje é professor de música.

“Cidadão Boilesen”, com montagem extraordinária de Pedro Asbeg , mistura entrevistas com pessoas de vários lados da questão central que norteia o filme ou seja, as razões que moveram o cidadão e o levaram à morte: Coronel Brilhante Ustra, que não fala espontaneamente e sim, lê relatório, alguém que foi reconhecido pela então deputada e atriz Bete Mendes como seu torturador numa cerimônia; Erasmo Dias, figuraça reacionária que afirma ter tido contato até com a CIA e tenta dar naturalidade ao horror; um filho de Boilesen que quer nos fazer crer que tudo o que é documentado sobre o pai é mentira; o incansável baluarte da direita histórica Cel. Jarbas Passarinho que tenta historiar, defender e intelectualizar o inadmissível; escritores dinamarqueses com moradia no Brasil como Per Johns; historiadores como Daniel Aarão Reis Filho; jornalistas como Percival de Souza, especialista em questões policiais, do âmbito doméstico ao político mais amplo; Dom Paulo Evaristo Arns que explica porque se recusou a celebrar uma missa por Boilesen, pois este era protestante, sendo o que estava em seu poder era uma missa pela paz; Celso Amorim e Roberto Farias que explicam que o personagem de Paulo Porto em “Pra Frente Brasil” era inspirado em Boilesen; o ex-governador Paulo Egídio de São Paulo, que profere horrores como se fossem apenas questões administrativas; Fernando Henrique Cardoso, com visão crítica e sóbria do período etc.

A estas entrevistas mescla-se, quando oportuno, sequências de assaltos e torturas de “Pra Frente Brasil” de Roberto Farias”, “Lamarca” de Sérgio Rezende e “Batismo de Sangue” de Helvécio Ratton. Quando este último filme foi exibido teve suas sequências neste sentido bastante criticadas. Ora, por que se furtar a isto se é a mais pura expressão do que aconteceu?

O filme ainda utiliza, de forma bastante pertinente, letreiros que correm de forma transversal na tela. Enfim, um show de montagem, material colhido com apuro e abrangente, em meio ao show de horrores com que somos confrontados. É um documento cinematográfico corajoso que se recusa a enfiar a cabeça na areia, que não negligencia esta arte do documentário e a transcende: é fundamental para se entender o que foram os nossos anos de chumbo e muito valioso num tempo em que se luta para a criação imperiosa de uma Comissão da Verdade, que não pode ser simplesmente um jogo de empurra entre os três poderes.

Ps Não deixem de acompanhar a "Mostra Cinema Brasileiro, anos 2000, Dez Questões" no CCBB-SP e CCBB-RJ com curadoria de Eduardo Valente e Cleber Eduardo. Pelo site incrustado na Cinética http://www.revistacinetica.com.br/anos2000/ podemos acompanhar a programação, bem como o teor dos dez debates. Em poucos dia estes serão postados para quem os perdeu ou os quiser rever.

Vi na quarta-feira "Cidadão Boilesen", de Chaim Litewski, que ganhou o "`Tudo Verdade" de 2009, que tinha perdido quando de seu lançamento nos cinemas.

Se não puder acompanhar ao vivo as discussões, no mínimo, poderei ver filmes que perdi no circuito ( mal lançados) ou inéditos. De qualquer forma não perderei a oportunidade de assistir os debates em vídeo na própria Cinética. Desta vez já consegui o Catálogo , dado a quem frequentar no mínimo três filmes e numa visão geral, ainda sem lê-lo detidamente, está muito bom, com alentados artigos de Valente e Cleber sobre os temas propostos.

No Rio é bom prestar atenção, pois foi-nos avisado que a programação do último dia sofreu alteração.

7- Um Tanto de Música Popular Brasileira

7-1 “délibáb” de Vitor Ramil

Antes de qualquer coisa: o gaúcho Vitor Ramil ( irmão de Kleiton e Kledir) assim como Renato Braz, Caetano Veloso, João Gilberto, Zé Renato etc. é um dos grandes cantores brasileiros vivos atuantes no “ país das cantoras” que não param de surgir em maior ou menor qualidade. Sua voz delicada, suave, potente e lírica dá a dimensão precisa das canções com as quais se envolve. “délibáb”, num prodígio extraordinário de composição musical sua, dá origem a uma das obras-primas incontornáveis da discografia brasileira recente. Ramil musicou poemas de Jorge Luiz Borges e de João da Cunha Vargas criando milongas ( gênero musical da Argentina, Uruguai e Sul do Brasil que precede o tango), com uma destreza de adequação da poética aos sons que tudo se passa como se canções e letras tivessem nascido juntas.

“délibáb” é um fenômeno visual que ocorre em planícies do sul do continente em que imagens distantes são vistas como que próximas em planícies desertas, mas trazendo só enquanto imagens, não os sons. O CD ( acompanhado de um DVD com “délibáb” documental), lançado nos “conta” façanhas e características do sul , numa linguagem que a princípio nos parece estranha, alternando as canções em castelhano de Borges/Ramil com as em português de Cunha Vargas/Ramil. Mas tudo se passa como se umas ecoassem nas outras, trazendo unidade temática, num efeito de “délibáb musical e espacial.

Caetano Veloso, que não poderia faltar a um grande evento musical como este, canta “Milonga de los Morenos”, alternando vozes com Ramil. Imprescindível este CD/DVD. Chimarrão é “uma bebida amarga da raça que adoça o meu coração”. “délibáb” adoça nossa alma. E não é nada amargo. Ou disfarça a amargura pela potência poética.

7-2 “Feito pra Acabar” de Marcelo Jeneci

Marcelo Jeneci não tem o poder e os recursos vocais de um Vitor Ramil, mas é bastante expressivo. Enfim, o que se chama de um ótimo intérprete, ainda que com voz limitada. Seu CD “Feito pra Acabar” tido por todos os críticos de que me dei conta como um dos melhores lançamentos brasileiros, senão o melhor de 2010, está à altura deste prestígio todo.

Com uma música exclusivamente sua ( “Pra Sonhar”) e outras em parceria com Chico César, Arnaldo Antunes, Zé Miguel Wisnick, dentre outros , “Feito pra Acabar” é uma sucessão ininterrupta de grandes momentos que culmina de forma apoteótica na música título, a mais tocante: “ A gente é feito pra acabar/ A gente é feito pra dizer que sim/ A gente é feito pra caber no mar/ E isso nunca vai ter fim” . Em muitas faixas Marcelo divide os vocais com a voz doce e singular de Laura Lavieri ou cede de vez lugar a ela (esta artista promissora merece seu CD solo). Tendo arranjos sensacionais com piano, órgão, guitarras, violão, sanfona (com Jeneci, exímio neste instrumento), além de palmas e assovios etc., o CD é hipnótico.

O grande “barato” de Jeneci é realmente o que já foi muito comentado. Há uma sofisticada simplicidade (ou simples sofisticação) que nos acaricia e embala, remetendo a Los Hermanos, à Jovem Guarda bem como aos trabalhos de Arnaldo Antunes e Wisnick (não é à toa que comparecem como parceiros). Em algumas faixas a alternância de uma forte base de guitarra em tom elevado, com suavidade nas vozes, é irresistível. A produção do CD é de Kassin, alguém por trás de vários grandes projetos.

No Rio de Janeiro, Marcelo Jeneci apresentou-se no OI Casa Grande num ingrato começo de semana. No OI Futuro Ipanema teve os ingressos esgotados rapidamente. A cidade merece uma temporada dele mais cuidada e generosa como os shows que vemos no Teatro Rival.

Para quem ainda se interessa pela arte gráfica do CD como eu, “Feito pra Acabar” é uma delícia de ser acompanhado, com belas fotos em papelão separados para cada música, numerados, com a letra e por fim a ficha técnica e com os agradecimentos de praxe.

Enfim, mais um CD incontornável para quem se interessa pelos caminhos variantes e luminosos que a MPB percorre.

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Ps O título do Post é um derivado de um verso de Caetano Veloso ( “Estive no fundo de cada verdade encoberta” de “Força Estranha”)

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Nelson Rodrigues de Souza

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Reminiscências do Passado Cultural Recente



















Reminiscências do Passado Cultural Recente

(Alguns dos textos apresentados contém spoilers, ou seja, detalhes das narrativas são adiantados para a análise pretendida)

1- “Homens e Deuses” (França/2010) de Xavier Beauvois

Um dos grandes triunfos de “Deuses e Homens” é que independentemente da religião que tenhamos ou ainda do agnosticismo e ateísmo, desde que não sejamos fanáticos, não há como não nos compadecermos do destino dos monges trapistas que vivem na Argélia na pós-colonização francesa, dedicados à algumas tarefas de sobrevivência como plantar, produzir mel e à servir muçulmanos pobres que precisam de atendimento médico e que são recebidos por Luc (Michael Lonsdale). Uma das grandes e simples cenas do filme nos mostra Luc atendendo uma criança com uma ferida na testa e depois a beijando com um carinho tal, que este gesto vale mais do que “mil” discursos retóricos de autoridades cristãs maiores. Não deixa de ser curioso ver Lonsdale, que já participou de filmes anti-clericais e perversos ( no melhor sentido da palavra) de Luis Buñuel, agora extremamente convincente como um monge, papel que lhe rendeu o César de melhor ator coadjuvante de 2010, sendo que a obra ganhou o prêmio máximo de melhor filme.

A Argélia em que vivem os monges passa a estar entre dois fogos: um governo nitidamente corrupto e ataques de extremistas islâmicos capazes até mesmo de degolarem pessoas. Como no monastério há um nobre ecumenismo onde se estuda até mesmo o Alcorão, quando os monges ficam entre a cruz e a espada, tendo que aceitar ajuda de um governo que nada admiram (o que pode danificar a imagem que as pessoas comuns têm deles) ou ficar ali sujeitos a ataques terroristas, Christian ( Lambert Wilson, num personagem completamente distinto do que estávamos acostumados a ver em trabalhos de Alain Resnais) decide que ficarão ali sem ajuda governamental e nem voltarão para a França. Reprovado pela decisão unilateral, assume seu erro e coloca a delicada questão em votação: a maioria decide ficar e sem proteção de políticos suspeitos.

A mais bela sequência de um filme pontuado de rituais belíssimos ao som de músicas sacras e rezas comoventes se dá depois que os sete monges recebem uma visita que lhes traz remédios, hóstias e resolvem comemorar com uma meditação, sentados numa mesa, onde na cabeceira fica Christian, tudo ao som de uma música sacra, que meus parcos conhecimentos de música clássica não permitiram que eu gravasse em minha mente nem soubesse seu título. A câmera depois de uma visão panorâmica desta que é uma espécie de “Santa Ceia” , flagra os rostos de cada um, mostrando as emoções variadas que os contagia. Do rosto de Christian cai uma lágrima, do mais velho deles também. Mas os demais também têm emoções à flor da pele, com sorrisos suavemente beatíficos, no melhor sentido da palavra. Esta que é uma das mais belas sequências do cinema contemporâneo marca a despedida de todos eles. Pois logo o ataque terrorista será intenso.

Durante a noite as portas são arrebentadas, Christian é acordado, o velhinho se esconde debaixo da cama e a maioria é feita prisioneira. Os fundamentalistas islâmicos terroristas fazem os prisioneiros darem uma declaração de que estão bem e exigem que, inegociavelmente, sejam trocados por companheiros presos. A voz de um dos monges nos relata o estado de espírito deles e aí surge o que talvez seja o único senão do filme: é-nos dito que eles sabem separar o Islã, dos fundamentalistas islâmicos, algo que já estava implícito antes pelas imagens e não havia a necessidade de ser reiterado.

Dois monges sobreviventes se abraçam com força. Prisioneiros caminham com dificuldade na neve em fila e contemplamos os esforços que estão fazendo para a empreitada. Um letreiro nos informa que foram todos mortos e que paira um mistério sobre estas mortes. Ou seja, tudo leva a crer que foram mortos pelos fundamentalistas islâmicos, mas há a possibilidade de terem sido mortos por agentes do corrupto governo da Argélia (ou outros?).

O título original do filme dá conta das questões filosóficas que o filme impõe: “De Homens e Deuses”. É algo que não é explicitado, mas está latente no filme: se todos ali amam e acreditam em Deus com fervor, por que fugir e deixar o trabalho de assistência aos pobres da região de lado? Por que temer a morte? O filme se equilibra tanto em mostrar o lado dos monges enquanto mártires/Deuses como nos apresenta uma humanidade incontornável e cálida. Esta dualidade nos é apresentada com mais força no rosto pleno de emoções matizadas de Christian, com Lambert num trabalho soberbo.

Com planos rigorosamente compostos e emoções calibradas de forma exímia, mas sem frieza, temos um libelo sutil contra a intolerância, a corrupção e o fanatismo religioso, tendo como contraponto a tolerância e a generosidade. Nada mais atual. Nada mais necessário. Um filme essencial do Cinema Contemporâneo. Desde já um dos grandes filmes do ano a ser lembrado em qualquer balanço que se faça ao fim dele. Ou durante anos.

2- “Amor?” (Brasil//2010) de João Jardim

Sabemos que o amor (tanto espiritual quanto sexual) nunca vem sozinho: há componentes de ódio e ciúmes que ora irrompem com maior ou menor força. Em muitos casais este ódio é reelaborado e acaba por fim sendo controlado. João Jardim filmou oito depoimentos de pessoas de classe média que de forma passiva e/ou ativa passaram por cenas de violência doméstica em seus relacionamentos afetivos. Como estas falas envolviam terceiras pessoas, decidiu então que atores decorassem, fossem a fundo nas verdades encobertas dos discursos e nos trouxessem um filme bastante instigante dentro do tema, que só encontro paralelo no ótimo, mas pouco visto, “ Te Dou Meus Olhos” de Icilair Bolain ( Espanha/2003), prêmio Goya de melhor filme, em que um marido violento não consegue abandonar seus instintos agressivos nem com terapia de grupo, nem sua mulher consegue abandoná-lo de vez, mesmo sabendo dos riscos que corre.

Os atores que Jardim escalou para as falas não poderiam ser melhores. O conjunto é homogêneo e todos os discursos despertam grande atenção. Mas se tivesse que escolher um, ficaria com Ângelo Antônio no “personagem” mais complexo, que chegou a enfiar um revólver na boca da companheira e só desistiu não sabendo de onde veio a iluminação que o tirou das trevas da violência extrema.

Uma lésbica tem seu depoimento dividido por duas atrizes de temperamentos opostos (Sílvia Lourenço e Fabíola Nascimento) sem perda de unidade e interesse. Mariana Lima nos mostra como alguém que passou por violência doméstica na adolescência através do pai, traz esta condição para a vida amorosa, indo ao fundo do poço, mas dele se resgatando. Eduardo Moscovis retrata com pungência suas dualidades ( “nem com você, nem sem você”, algo que Truffaut levou a extremos na obra prima “A Mulher do Lado”), assim como Júlia Lemertz, Lilia Cabral, Letícia Colin, Claudio Jaborandy, Mariana Lima nos mostram como entraram no ventre da besta e saíram ( ou não saíram).

É claro que quando a violência irrompe numa relação não há só mocinhos e bandidos. Pode haver também provocações mais ostensivas ou sutis que a desencadeiam, sem querer aqui justificá-la, mas compreendê-la. É claro que há as reincidências que ocorrem em atos de violência que poderiam ter sido evitadas caso tivesse havido um afastamento definitivo e têm um quê de forte neurose. “No amor, a tortura está por um triz, mas a gente se atura, até se mostra feliz, quando se tem o álibi de ter nascido ávido e convivido inválido, mesmo sem ter havido”- canta Djavan/Bethânia. Mas nem todos os casais atingem esta sabedoria e as coisas descambam.

À pergunta do título “Amor?” podemos responder que sim: há amor. Mas este vem sempre acompanhado de sentimentos que podem estar presentes em maior ou menor grau, podendo ser administrados ou não, fazendo toda diferença: ciúme, ódio, inveja, compulsão, desejo, masoquismo, sadismo, solidão inerente ao ser humano (acompanhado ou não), satisfação, alegria, tristeza, etc. Não é à toa que os franceses chamam o orgasmo de petite mort (pequena morte). “Pós coito, animal triste”. Esta tristeza pode se estender a limites indevidos.

Aonde “Amor?” falha às vezes é nas imagens que escolhe para os entreatos. Umas são belíssimas como uma relação sexual em que mal distinguimos os amantes, num emaranhado de peitos, pernas e abraços, sem sabermos quem está em cima de quem. Noutras em que o mar aparece em sua calmaria sugere certa gratuidade e facilidade. Mas nada que atrapalhe o brilho deste filme incomum que, qualidades artísticas à parte, merece ser estudado nos meios acadêmicos e variados “psis”, como um documento precioso, assim como “Pro Dia Nascer Feliz” ( educação) e “Lixo Extraordinário” ( várias áreas), outros dois filmes muito bons de João Jardim, sem contar o também, o artisticamente elucidativo universo dos que mal enxergam, “Janela da Alma”, uma co-direção com Walter Carvalho.

João Jardim, sem ser nenhum gênio, é o típico cineasta que paulatinamente vai enriquecendo uma Filmografia, no caso a Brasileira, que não pode viver só de obras-primas.

3- “Bebês” (França/2010) de Thomas Balmès

Durante um ano, Thomas Balmès filmou do nascimento até esta idade, quatro bebês e seu meio humano e físico em quatro cantos do mundo: San Francisco, uma localidade da Namíbia, outra da Mongólia e em Tóquio. É uma operação fílmica que nas telas, pela sua espontaneidade, pode parecer fácil, mas que na prática deve ter sido dificílima. Mas o que importa mesmo é o que vemos na tela e isto é saboroso, gracioso, revelador e tocante.

Com letreiros iniciais que localizam as “ações” e uma música que vem aqui e ali, com predominante silêncio, temos um inventário de reações de crianças dessas diferentes latitudes e longitudes que muitas vezes nos levam a gostosas gargalhadas, até mesmo quando estamos diante das condições de pobreza das crianças africanas. O filme permite tanto um olhar mais descompromissado, comprometido com o lúdico, como também permite olhares mais sociológicos e/ou antropológicos. Assim temos uma sequência em que vemos três crianças se relacionando com gatos e a criança africana brincando com formigas.

Entretanto, por mais que fiquemos um tanto nervosos com as condições em que vivem/brincam estas crianças africanas que chegam a beber água suja corrente no chão, que identidade moral superior temos nós ocidentais e orientais, para levarmos ditames ditos civilizatórios para estas crianças e mães? Numas das belas sequências vemos uma mãe negra em pé se abaixar com seus peitos enormes para que seu filho sentado no chão passe a mamar. Já a mãe japonesa é vista colhendo leite do peito para depois colocar numa mamadeira para dar a seu filho.

Mas na maior parte das cenas predomina o lúdico das reações infantis da primeira infância. Uma menina tenta colocar um aro numa rodela algumas vezes. Dá-se conta da inutilidade da empreitada e se joga no chão várias vezes. O riso largo e franco da plateia é inevitável. Noutra sequência a criança da Mongólia está banhando-se numa tina. Um bode se aproxima por trás e bebe água. Ela só depois se dá conta disso. A criança japonesa passeia no zoológico e se depara com tigres etc. Seu olhar assustado, mas curioso enternece.

O grande achado de “Bebês” é mostrar gracinhas de crianças pequenas, mas com graça mesmo e não com pieguice, açúcar exagerado, enternecendo sempre, sem perder a fluidez “narrativa” da montagem de cenas paralelas.

Só me lembro na História de Cinema de filme que tenha flagrado crianças nesta faixa etária de no máximo um ano ( dentre outras), no imprescindível “A Idade da Inocência” (1976) de François Truffaut, cujo ponto culminante era um bebê se jogando de um prédio e depois saindo andando pelo chão, como se nada tivesse acontecido.

“Bebês” têm vários momentos de paciência, leveza, espontaneidade e humor que é puro Jacques Tati, ainda que nada tenha sido encenado e sim captado.

“Bebês” tem potencial para agradar a todas as plateias, não apenas às pessoas que tenham/tiveram seus pequenos pimpolhos em casa e se envolvam a guisa de comparação e reconhecimento.

4- “Rio” (EUA/ 2010) de Carlos Saldanha

“Rio” incorreu em várias armadilhas: poderia resultar em “macumba para turista”, poderia engrandecer o clichê de a cidade viver só uma cultura sambista, futebolística, banhista e carnavalesca. Mas um roteiro esperto, sempre atraente ( em que uma arara azul (Blu) que foi capturada pequena e levada para o Minnesota, criada pela livreira Linda e vem ao Brasil a pedido de um ornitólogo que trabalha no Zoológico para se acasalar com Jewel, também azul, a fim de manter uma espécie em extinção, dentre outras aventuras) ‘encaixa” tão bem estes elementos típicos e de forma tão bela que não há como resistirmos e enxergarmos no fundo uma grande homenagem que a cidade merece por sua inegável beleza, que é conhecida no mundo todo e agora vai ser ampliada pela penetração que o filme tem.

A rigor, quem melhor sintetizou o Rio de Janeiro, não foi Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra ou outro baluarte da Bossa Nova e sim Fausto Fawcet com seu já clássico “Rio Quarenta graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”. Quem disser que o Rio só tem belezas estará faltando com a verdade. Quem disser que só há caos também. A cidade é o purgatório da beleza junto ao caos. Parte deste é captado no filme por contrabandistas de animais de uma favela que com a ajuda de uma ave rancorosa e malévola, bicho de estimação do líder, capturam Blu e Jewel, enquanto ainda estavam contornando diferenças ( Blu não sabe voar) e os prendem em gaiolas junto com incontáveis aves prontas para serem contrabandeadas. Um menino que contribuiu para este sequestro será o elo arrependido que ajudará Linda e parceiro a recuperarem Blu, não sem antes sermos mergulhados em inenarráveis peripécias, pois precisam ser vistas antes de tudo (uma no Sambódromo em desfile), algo muito ao gosto de Saldanha ( o que vimos na franquia “A Era do Gelo), mas também das convenções do gênero.

A vista da baía do Rio de Janeiro de Santa Teresa é magnífica, assim como a introdução “escola de samba” na floresta do filme e toda sequência envolvendo a praia, um ultraleve, na tentativa de se fazer Blu aprender a voar. Mesmo os momentos que são puro cartão postal adquirem uma textura e magia que redimensionam estas paisagens.

Não fosse alguns momentos em que há certo pieguismo, “Rio” se aproximaria mais ainda dos patamares grandiosos de animação dos EUA mais recentes que vemos em “Ratatoille”, “Procurando Nemo” e a trilogia “Toy Story”. Mesmo assim é muito difícil aparecer animação melhor que “Rio” este ano. Por via indireta, pois Carlos Saldanha trabalha nos EUA, o Brasil pode receber seu tão sonhado Oscar, mas de melhor animação. Mas é algo que nos deixará bastante animados com o Rio e o país, ainda que por alguns momentos fugazes, até que o lado caos nos acorde, como por exemplo as famigeradas milícias e bueiros que explodem , para ficarmos apenas em dois “cartões postais” da infâmia cotidiana.

5- “Os 39 Degraus” adaptação de Patrick Barlow do filme de Hitchcock, direção de Alexandre Heineke- Teatro do Leblon- RJ

No Teatro mais do que no Cinema temos que fugir da fala naturalista. Quando se trata de uma comédia ainda mais. O problema desta adaptação brasileira feita por Clara Carvalho e Alexandre Heineke é que o que deveria ser over foi trabalhado pela direção como algo excessivamente over (e põe excesso nisto!). Assim, se o arcabouço do filme de Hitchcock se mantém, a rigor, estamos muito longe do universo deste grande cineasta que opera o humor com bastante sutiliza. Os personagens são tão caricatos que não há como ter empatia com eles (mesmo com o de Dan Stulbach, “o homem errado” da vez). Assim o que poderia ser suspense se desvanece. Ainda que aqui e ali haja momentos de brilho, como na sequência de sombras, do movimento do trem, da direção de um carro, da ventania etc., em muitos outros reina um clima de “Zorra Total” com piscadelas insistentes para uma plateia ávida por ver seu ídolo televisivo no Teatro. Um subtítulo que a peça em sua montagem brasileira poderia ter é “O Assassinato de Hitchcock”....

Vi Dan Stulbach no Teatro pela primeira vez numa obra-prima de interpretação e de texto que foi “Novas Diretrizes em Tempos de Paz” de Bosco Brasil, contando ainda com grande trabalho de Toni Ramos. Em “Os 39 Degraus” seu talento emerge aqui e ali, mas não consegui “comprar” o tom de voz de todos os atores, até mesmo dele. É forçoso reconhecer que a plateia sim. Riram muito e aplaudiram bastante ao final, onde de uma forma justa os técnicos que trabalharam na peça foram chamados ao palco, pois o trabalho deles é fundamental para os efeitos da montagem. Mais uma vez estou na contramão da visão de Tia Bárbara Heliodora: com algumas restrições ela adorou o espetáculo. Mas desconfio que se ela entende muito mais de Shakeaspeare do que eu, eu conheço mais Hitchcock do que ela.... Aliás, um dos mimos da peça é uma rápida aparição do mestre como há em seus filmes.

Danton Mello e Henrique Stroeter fazem vários personagens, mas a rapidez que leva ao incompreensível e o ar caricatural com que os realizam, arrefecem qualquer entusiasmo. Fabiana Gugli ( uma das últimas musas crias de Gerald Thomas) tem papéis variados com empatias geradas variadas.

“Os 39 Degraus” trabalha um gênero dificílimo que é a comédia. Aqui estamos longe da qualidade constante que Miguel Falabella dirigindo Claúdia Gimenez e outros em “Mais Respeito que Sou Tua Mãe” conseguiu, para ficarmos num exemplo mais recente. Aqui reina a sutiliza por mais escabrosas que sejam as situações. Já em “Os 39 Degraus” sutileza passa longe. Somos tentados a dizer que temos “muito barulho por nada”, por mais que haja inegável grande empenho de todos os envolvidos.

Ps1 Um dos CDs que está no meu Hit-Parede aqui de casa é “Outro Sentido” do português António Zambujo, que tem uma voz belíssima a serviço de fados clássicos e modernos/pouco conhecidos, além de músicas brasileiras como “Lábios que Beijei” e “Bilhete”, com participações de Ivan Lins, Zé Renato e Roberta Sá. Assim como, com honrosas exceções como Manuel de Oliveira, Pedro Costa, João Pedro Rodrigues (vistos mais por cinéfilos e críticos em festivais), o Cinema Português é praticamente desconhecido no Brasil, a música portuguesa também o é. António Zambuja tem tido certa penetração por aqui, mais ainda está muito aquém do que o imenso talento que tem merece conduzi-lo.

Ps2 Vocalista da Orquestra Imperial, Nina Becker é mais uma das cantoras que se lançam em carreiras solos. Paixão imediata, não paro de ouvir nos últimos meses a “Azul” e “Vermelho”, seus CDs complementares. Há quem diga que um é mais calmo que o outro. Pra mim mesmo estando muito longe do rótulo new age, estes dois trabalhos, indistintamente, com a voz incrivelmente suave de Nina, me levam a uma grande sensação de paz, por mais que não se desviem aqui e ali de alguns tormentos amorosos em muitas composições que são dela ou de outros. Desnecessário dizer que recomendo os dois trabalhos a todos os que se interessam por MPB. ”Belezas são coisas acesas por dentro, tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento” (“Lágrimas Negras” de Jorge Mautner/ Nelson Jacobina); “Essa pétala olha aqui dentro, nasce morrendo para despetalar” (“Flor Vermelha” de Nuno Ramos/ Romulo Fróes); “Incorporar o silêncio, anestesiar qualquer chance de sofrer, me diga o que fazer para te esquecer” ( “Pedido” de Nina Becker). Etc.Se estes versos são belíssimos, imaginem na voz de Nina.

Ps3 O Festival de Cannes 2011 a se realizar em maio tem muitos medalhões disputando na Mostra principal. Que ganhe o melhor filme. Se é que é possível distinguir isto mesmo nitidamente em arte. Já pensou em um festival em que Fellini concorresse com “Amarcord”, Bergman com “Gritos e Sussurros” e Antonioni por “Passageiro: Profissão Repórter”? Eu no júri escolheria Bergman. Mas não sem dor no coração.

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Nelson Rodrigues de Souza