segunda-feira, 20 de junho de 2011

Um Espectro de Transgressões














































Um Espectro de Transgressões

Os textos, de modo geral, contém spoilers, ou seja, alguns detalhes das narrativas são adiantados para a análise pretendida. Uma das exceções é a peça policial “O Gato Branco” de Jô Bilac, onde muito pouco se revela (até mesmo a pedido dos atores).

1- “Estamos Juntos” (Brasil/2011) de Toni Venturi

Uma médica, Carmem (Leandra Leal, excelente como sempre, principalmente em “Nome Próprio” de Murilo Salles) tem um amigo gay D.J., Murilo (Cauã Reymond, que tem se tornado uma ótima surpresa no Cinema Brasileiro, com papéis os mais variados), com quem passa a “disputar” o afeto e a sensualidade de um jovem argentino, o músico Juan (Nazareno Casero, com expressividade num tom menor), que vai morar com Murilo, excitando a imaginação amorosa do anfitrião. Carmem tem um amigo misterioso (Lee Taylor).

Carmem é uma médica bastante dedicada no trabalho num hospital público, sendo levada por uma amiga para conhecer uma líder do Movimento dos Sem Teto de São Paulo, Leonora (Dira Paes, grande camaleoa do Cinema Brasileiro), trazendo a este pessoal noções básicas de prevenção da saúde. Sua vida, um tanto ensimesmada, acaba em reviravoltas com estes contatos todos e principalmente depois que é diagnosticada com uma doença delicadíssima que a impede até de trabalhar, por insistência do colega Dr. Gaspar (Marat Descartes). Mas o trabalho é a sua vida e ficar em casa só lhe faz mal.

Estabelecidas as linhas mestras dos conflitos, o problema do filme é apontar em muitas direções e acabar subestimando algumas delas em seu desenvolvimento. Tudo gira em torno de Carmen. Até aí nenhum problema. É uma opção do roteiro. Mas alguns personagens precisariam ser mais bem desenvolvidos. Um deles é o misterioso amigo, que num filme de proposta realista como este, não mágica, fica um tanto estranho. Mas se existem pontas soltas, a direção é excelente e São Paulo é muito bem fotografada e inserida com mais um importante personagem, mas sem a maestria como Luiz Sérgio Person logrou em “São Paulo, S/A” e Walter Hugo Khoury em muito dos seus filmes, principalmente o seminal “Noite Vazia”. É muito boa a montagem de cenas ficcionais com as filmadas por Venturi em seu doc “Dia de Festa” (dia de ocupação), sobre o movimento dos sem teto.

Ao final, pontas soltas se juntam, apesar de um truque de roteiro forte bastante evidente numa situação limite com os reencontros que se dão, mas uma daquelas coincidências que a vida pode nos reservar. O filme justifica melhor sua estrutura, mas mesmo assim saímos do cinema com a impressão de que algo faltou. Mas no conjunto é um bom filme (não é muito bom...), de porte médio, nada negligenciável, onde só o grande trabalho de Leandra Leal já justifica uma ida ao cinema.

2- “Singularidade de Uma Rapariga Loura” ( Portugal/Espanha/França/2009) de Manoel de Oliveira

Pra mim que me decepcionei com "Sempre Bela" (a recusa de Catherine Deneuve em reviver seu personagem de "A Bela da Tarde", anos depois, tira muito da aura da homenagem a Buñuel) e com "Cristóvão Colombo- O Enigma" ( lusófono demais, a ponto de irritar ), "Singularidade de Uma Rapariga Loura" retoma um tanto do melhor de Manoel de Oliveira, baseado num delicioso conto de Eça de Queiroz, numa versão que mantém certo clima literário de uma forma encantadoramente anacrônica. Escrevi um tanto porque ainda estamos longe de sua última obra-prima realmente que foi "Um Filme Falado", que tinha até um clima de testamento artístico diante do estado das coisas no mundo.

Macário (Ricardo Trêpa, neto de Oliveira, ótimo, um dos atores fetiches do diretor, mas nada de nepotismo aqui) está inquieto viajando de trem. Não se controla e resolve contar sua história a uma mulher ao lado (Leonor Silveira, outro fetiche), que o ouve com solidariedade e atenção. Sabemos de antemão que algo não acabou bem, mas o como virá depois, numa narrativa bastante precisa, enxuta e com belíssimos enquadramentos, como é de habito no diretor.

Macário é um contador do tio (Diogo Dória). Pela janela tem uma paixão instantânea pela jovem Luisa (Catarina Wallenstein) que é vista no apartamento em frente. Macário se envolve nos percursos dela, faz tudo para se aproximar do objeto de desejo e consegue rapidamente a adesão dela para seus planos amorosos. Mas há um grande problema: o tio não quer apoiá-lo no casamento, ele sai de sua guarida e tem de descobrir uma forma de amealhar capital, o que virá através de um redentor trabalho árduo na África.

Muito da ironia típica de Eça de Queiroz se confunde com a ironia do próprio Oliveira, que fez um filme com tais qualidades aos cem anos. Atualmente com 102 ainda está com vários projetos, um deles uma adaptação de Machado de Assis no Brasil, em que espera contar com a participação de Fernanda Montenegro. Historicamente um grande prodígio do espírito humano e artístico. Vale o clichê inescapável: um grande jovem cineasta centenário. Mas por causa disso mesmo, não podemos ser paternalistas (ele seria a primeira pessoa a detestar isto). “Singularidade de Uma Rapariga Loura” é muito bom, mas está longe de suas obras primas, de onde já destaquei “Um Filme Falado” e acrescento “Viagem ao Princípio do Mundo”, um maravilhoso canto de cisne de Marcello Mastroianni e ainda “Non, a Vã Glória de Mandar” ( outros filmes poderiam ser acrescentados mas sua obra na totalidade foram vistos na Mostra de São Paulo, onde não estive).

“Singularidade de Uma Rapariga Loura” tem um desfecho desconcertante que nos traz um sentimento ambíguo. Ao mesmo tempo em que é admirável, nos traz uma sensação de que alguns elementos nos ficaram faltando. O personagem de Luisa é muito mais insinuado que desenvolvido e isto se torna mais um truque para o final desejado, do que uma consequência de uma dramaturgia evoluída de forma mais consistente. De qualquer forma personagens “antiquados” numa Lisboa com fetiches modernos como computadores etc. exercem fascínio irresistível.

Mas em matéria de grande criatividade na velhice ainda me espanto mais com Luis Buñuel (quando estava por volta dos 80 anos) e seus três últimos e extraordinários filmes, esbanjando juventude de espírito, iconoclastia, inventividade narrativa, ferocidade sutil contra os equívocos sociais, existenciais e hipócritas da burguesia e da Igreja Católica (ainda persistentes, resistentes), que focou muito bem, como em inúmeras obras-primas anteriores, em: "O Discreto Charme da Burguesia", "O Fantasma da Liberdade"* e "Este Obscuro Objeto do Desejo" (neste a singularidade da "mulher amada e desejada", desdobrada em duas atrizes, é mais matizada, sem perder mistério, o que falta em "Singularidade de Uma Rapariga Loura", que quando termina, deixa um clima de "queria mais", "queria entender melhor esta personagem escondida durante o filme", "então era só isso?".

* No Jornal do Brasil da época em que o filme foi lançado no Brasil, o crítico José Carlos Avellar fez uma síntese que nunca mais esqueci:

“ Uma crônica da inutilidade das convenções, da burocracia e da aparente boa ordem do mundo burguês”.

Existe mais “aparente boa ordem” que a do mundo em que vivemos na maior desordem? E a “aparente boa ordem” dos chamados anos dourados de crescimento da Era Lula, com classes ascendentes com “cartões de crédito* que são uma navalha”, alguns paupérrimos aumentando nível de renda, mas não de qualidade de vida (que é o que realmente conta), como se não tivéssemos mais efeitos daninhos da pequena e grande burguesia. Algo que até pessoas que admiro muito acreditam. Já Milton Santos, muito apropriadamente, no filme que Sílvio Tendler fez sobre ele ( “Encontro com Milton Santos ou: O Mundo Global Visto do Lado de Cá”), é incisivo e certeiro: “No Brasil nunca houve nem há cidadania. A classe média não quer ter direitos, quer ter privilégios”. Luis Buñuel continua cortante e atualíssimo. Manoel de Oliveira, por melhor que seja, pelo que já assisti dele, está distante de “cortar o olho com a navalha” para, paradoxalmente, enxergarmos melhor, como Buñuel fez em “Um Cão Andaluz”, metáfora visual para toda sua obra.

*Uma das edições da publicação Le Monde Diplomatique –Brasil estampou em sua capa um significativo castelo de cartas em camadas cada vez menores, com uma reinando acima de todas, onde examinando-se bem via-se que eram cartões de crédito....

3-“Crônica da Casa Assassinada”, adaptação de Dib Carneiro Neto da obra homônima de Lúcio Cardoso, com direção de Gabriel Villela- Teatro Maison de France- Rio de Janeiro

Um dos caminhos do Teatro brasileiro, muito em voga nos anos 80/90 é o chamado Teatro de diretor, onde o trabalho autoral dele era bastante significativo e evidente (algo que Antunes Filho fez na maioria de suas montagens e encontrou em Gerald Thomas, Gabriel Villela, Ulisses Cruz, Antonio Abujamra, Antônio Araújo, Aderbal Freire-Filho, Moacir Góes, Márcio Vianna, dentre outros, grande expressão). Hoje esta forma legítima de também se fazer Teatro é um tanto estigmatizada por alguns, pois tenderia a eclipsar o que o Teatro tem de melhor que é o trabalho dos atores (lembro-me do magnífico “Guerra Santa” de Luiz Alberto de Abreu dirigido por Villela onde Beatriz Segal era convidada especial, mas coadjuvante no meio de vários atores, algo que não se esperaria de uma dama do Teatro...).

O fato é que os vários espetáculos que assisti destes diretores-autores, se realmente encantavam muito pela inventividade cênica, não deixavam de apresentar grandes desempenhos, como Matheus Nachtergaale em “O Livro de Jó”, Luís Melo em “Gilgamesh”, Guta Stresser em “O Casamento”, Eduardo Moreira em “A Rua da Amargura”, Rubens Correa em “O Futuro Dura Muito Tempo”, Sérgio Britto e Tônia Carrero” em “Quartett” etc.

Com a encenação de“Crônica da Casa Assassinada”, Gabriel Villela volta ( no Rio de Janeiro) a um trabalho bastante autoral e reconhecível, com suas raízes mineiras, certo barroquismo, mas que de forma alguma eclipsa o trabalho dos atores e a força do texto. Xuxa Lopes (Nina), Sérgio Rufino (Timóteo) estão à altura dos grande desempenhos de Norma Benguell e Carlos Kroeber nestes mesmos papéis no clássico filme “A Casa Assassinada”( 1971) de Paulo César Saraceni, mas em chaves dramáticas e de texto diversas.

A rigor, a peça retrata o universo, a asfixia, a dramaticidade e a poética do romance de Lúcio Cardoso de uma forma ainda mais contundente do que o filme e isto em enxutos 70 minutos, onde reinam uma beleza de cenários, figurinos, uma coreografia dos corpos (incluindo muitas cenas de sexo ousadas e belíssimas), bem como a inquietante poética da sordidez do texto, com grande impacto.

Num texto com uma cronologia propositadamente não muito clara para evidenciar o “eterno retorno” das problemáticas ali em jogo, temos a carioca Nina, com suas roupas provocantemente coloridas, que volta quinze anos depois ao seio da família interiorana mineira Menezes que já tinha sido abalada em seus alicerces de religiosidade e repressões no passado por ela e tem novamente seus valores colocados em xeque. Nina, que agora está doente, não é a causa da decadência da família. Ela é um agente catalizador de uma desestruturação familiar que já estava em curso. O marido, o irmão, o cunhado, a cunhada, o filho (filho?) com quem pratica às claras uma relação incestuosa mental pelo gosto pela transgressão, os narradores (um padre, um médico e um farmacêutico, que não deixam de mostrar também um pouco de suas taras), tudo forma um conjunto de hipocrisias, desejos mal assimilados e difusos, num sagrado que se confunde com o profano, numa repressão constante onde ainda que tudo esteja aos cacos tenta-se estabelecer a ordem familiar.

Timóteo, o irmão homossexual que é escondido de todos, quando aparece é uma espécie de bobo da corte, que com sua sabedoria, fala coisas que outros não teriam coragem, com aguçada ironia, inclusive lembrando as contradições bíblicas em relação ao homoerotismo (numa parte é exaltado, noutra é algo amaldiçoado).

Personagens simulam masturbação, enquanto contam histórias, dialogam ou monologam, evidenciando o animal reprimido sedento de sexo que no fundo todos somos em maior ou menor grau. Só a empregada Betty (Maria do Carmo Soares, em ótima composição) parece acreditar que a família que serve ainda tem salvação.

Nina transou no passado com Alberto (Hélio Souto Junior), marido de Ana (Leticia Teixeira), irmão do marido e gerou um filho. Só com Nina morta, Ana numa patética cena, mas de grande força dramática, revela junto ao corpo inerte que também tinha tido um filho na época e que numa troca de crianças, André que Nina pensava que era seu filho, era de fato o filho dela. Onde está a maior perversidade: no incesto consensual de Nina e André que no fundo não era incesto ou no martírio de culpas que Ana queria induzir nos dois?

Impossível não lembrarmos “Álbum de Família” de Nelson Rodrigues. Mas enquanto neste há uma objetividade cortante (não isenta de poesia dramática), em “Crônica da Casa Assassinada” temos mais lirismo em meio à uma dramaticidade exemplar.

A família tenta se reconstituir à mesa. O corpo de Nina em primeiro plano. Uma ária envolve a cena. Somos aos poucos devolvidos à nossa realidade. Soube de casais que abandonaram a peça em outras sessões. Mas quem assistiu a tudo passou a conhecer melhor um tanto do lado sombrio do ser humano ( que todos nós temos) e de suas tentativas de superação, muitas vezes vãs, como insetos que se dirigem a uma lâmpada.

A peça traz à tona ideias de um dos papas da anti-psiquiatria que foi Ronald D. Lang. Como mostra em “Sobre Loucos e Sãos”, estes limites são bastante tênues e muitas vezes a loucura não está só nos indivíduos, mas nas instituições, como é a patriarcal, tradicional família mineira, escudada em seus escapulários, terços e crucifixos.

Ken Loach tem uma obra-prima baseada em Lang pouco lembrada hoje que é “Vida em Família” (1971) em que mostra que o que pensamos ser uma pessoa esquizofrênica revela um sintoma maior: uma família esquizofrênica. Ao final temos a “mulher problema” exposta diante de uma plateia, para observação e estudos como se fosse algo sem vida. O que dizer também deste ato? É saudável e ético? Inesquecível e atordoante. Numa passagem pouco comentada de “A Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick, vemos o quanto a família de Alex, “o monstro a ser domesticado pelo Estado”, é desestruturada. Como o Estado vai se mostrar depois, com uma lavagem cerebral criminosa.

“Crônica da Casa Assassinada” é tão rico em simbolismos e em todos os aspectos que merece ser revisitado para enriquecermos nossas percepções. Depois de “Memória da Cana” de Newton Moreno não imaginava que fosse ver tão logo outro espetáculo teatral tão instigante, forte e bem realizado de fio a pavio.

Ps Com “Porto das Caixas”, “A Casa Assassinada” e “O Viajante”, Paulo César Saraceni fez uma trilogia dedicada à Lúcio Cardoso que foi seu amigo. Nunca vi (mas vou corrigir isto...) nem o primeiro nem o último. Mas vi o trailer de “O Viajante” e uma cena nunca mais esqueço: o personagem de Marília Pera, sufocada pela localidade repressora e castradora onde vive, diz ao viajante, em desespero: “Me tire daqui!”. Já outros filmes de Saraceni, hoje pouco lembrados, vi com grande prazer: como “Anchieta, José do Brasil”, “Ao Sul do Meu Corpo” ( adaptação de um dos contos de “Três Mulheres de Três PPPês” de Paulo Emílio Salles Gomes). Seu “Noca da Portela” nunca foi lançado, absurdo total pela importância do diretor. Já de “ O Gerente” (2011), exibido no Festival de Tiradentes, onde o crítico Sérgio Alpendre o considerou num patamar qualitativo bem acima dos demais filmes, de novos cineastas, não se tem nenhuma notícia em termos de exibição. Absurdos da cultura brasileira dos quais muitas pessoas nem tem consciência ou acabam se acostumando.

4- “Minhas Tardes Com Margueritte” (França/ 2010) de Jean Becker

Este é mais um caso de título em português enganoso. O original “La tête en friche” que é “A cabeça Inculta” tem muito mais a ver com a estrutura do filme, onde os encontros de Margueritte de 95 anos ( Gisèle Casadesus, ótima) com Germain (Gérard Depardieu, ainda nos surpreendendo), a amizade e admiração mútuas que surgem num banco de jardim, onde até os pombos tem nomes, é muito importante no filme mas não é o centro. Aonde o filme se concentra é nas condições de vida de Germain, seja com a mãe que o despreza, tanto no passado como no presente, com os amigos, com a namorada motorista de ônibus e com a velha senhora.

O título “Minhas Tardes Com Margueritte” acompanhado do cartaz do filme, sugere algo muito arriscado a cair na pieguice, na excessiva dose de açúcar, nas lágrimas fáceis ambicionadas na plateia, o que de forma alguma é o caso da obra, bastante sóbria, sem deixar de ser comovente, como foi “Conversas com Meu Jardineiro” ( também com mudanças mútuas) de Jean Becker, encontro de um pintor em crise e solitário (Daniel Auteil) que deixa Paris e vai para sua casa de campo, encontrando na visão de mundo do jardineiro (Jean-Oierre Darroussin) elementos para redimensionar seus trabalhos com a arte.

Germain em flasbacks muito bem inseridos na narrativa é visto como uma criança maltratada pela mãe e na escola. Mas mesmo a mãe não suporta ver o filho receber um tapa do amante e o expulsa de casa com energia e violência. Como todo ser reprimido, Germain acaba desenvolvendo sensibilidade especial, apesar do aparente retardamento mental. Isto o torna mais propício a entender a sabedoria e experiência da leitora atenta de Camus e outros autores que é Margueritte, que lê obras em voz alta para ele. Se de início German emula o que aprende com ela, de forma atabalhoada, artificial e pedante, aos poucos vai realmente adquirindo prazer e gosto pela Literatura e a grande façanha do filme é tornar isto crível cinematograficamente, contando para isto com grande trabalho dos dois atores.

É a personalidade especial de Germain e seu aprendizado que o fará tomar atitudes surpreendentes ao final que outros, viciados na rotina e na indiferença, não tomariam.

“Minhas Tardes Com Margueritte” é uma bem vinda lufada de ar puro ao Cinema diante de tantos filmes um tanto niilistas em face ao estado das coisas no mundo contemporâneo. Sem forçação de barra, mas com consistência, nos mostra personagens também transgressores das condições de vida a que a sociedade os empurram, lembrando Sartre: “ o que importa não é o que fizeram com você, mas o que você faz daquilo que fizeram com você”. Um filme adorável no melhor sentido da palavra. Oxigenador. Também precisamos ver filmes assim. Não dá para nos defrontarmos só com asfixias críticas da realidade, ainda que necessárias para não enfiarmos a cabeça na areia como avestruzes. Ninguém aguenta e/ou merece “tanta realidade”, mas “Minhas Tardes Com Margueritte”, passos adiante do bom “Conversas com Meu Jardineiro”, também é um lado da realidade que muitas vezes nos passa despercebido, como o fantástico, luminoso e imprescindível “Bagdá Café” (Alemanha/1982) de Percy Adlon, num tom bem maior, nos mostra.

O mundo hoje está tão enlouquecido (o Brasil não é exceção, muito pelo contrário), numa “terceira guerra mundial branca não declarada”, que às vezes ( nem sempre, claro) é melhor agir como aquela criança de “Esperança e Glória” de John Boorman, que ao ver sua escola bombardeada pelos nazistas diz: “Obrigado Adolf!” ( Por favor, hein? Isto pretende ser uma metáfora poética; não venham me estigmatizar como fizeram com Lars Von Trier no Festival de Cannes 2011 com suas declarações bastante infelizes, mesmo depois que ele pediu desculpas; sua obra, demolidora de convenções, opressões, automatismos, hipocrisias etc. prova que de nazista não tem nada ).

5- “Quebrando o Tabu” (Brasil/2011) de Fernando Grostein Andrade

"Quebrando Tabu" é um doc tese de Fernando Grostein Andrade que aponta para os horrores da "Guerra Total às Drogas" e "Tolerância Zero" ( um fracasso histórico), que, a rigor, é uma "Guerra às Pessoas". O filme enfatiza aquilo que é óbvio, mas tem sido negligenciado em muitas partes: o grande viciado em drogas deve ser tratado por ser doente e não criminalizado. Já os pequenos, não há por que punir também. Essas e outras visões progressistas são mostradas de forma ampla com entrevistas e imagens de vários países, inclusive com criativas animações.

Fernando Henrique Cardoso, como "cicerone" está em seu melhor elemento (a sociologia). Tanto ele, quanto Bill Clinton e Jimmy Carter fazem suas mea-culpa, admitindo que durante seus governos poderiam ter tomado atitudes diferentes do "Guerra às Drogas", mas na época de poder não entendiam a abrangência da questão. Há também entrevistas preciosas como as com Dráuzio Varella e até mesmo um depoimento lúcido e sincero de Paulo Coelho sobre a época em que consumia drogas. Um escritor que passou por prisões de segurança máxima, diz que se nesta situação não se controla as drogas, imaginem do lado de fora...

Um doc muito bom. Mesmo que seja de tese. Não tenho nada contra este caminho possível do documentário (O premiado com o Oscar em 2011 “Trabalho Interno” é muito bom e também é um filme tese, ao seu modo). Os grupos que não gostarem, que façam outro com a antítese. Prefiro um doc imperfeito como este de Grostein ( diretor também de "Coração Vagabundo" sobre Caetano Veloso), do que o silêncio em termos de Doc que João Moreira Salles se impôs, desde a obra-prima "Santiago" de 2008. Parece que se não tiver uma obra-prima na cabeça não filma. E ele tem prestígio e recursos para filmar o que quiser, me parece. Pra mim ele está se perdendo, atrelado à produção da Piauí, uma revista que não me seduz. Toda vez que a folheio, lembro-me que não li ainda em parte ou no todo a revista Caros Amigos do mês. Piauí me soa como uma revista de sofisticadas abobrinhas, com alguns artigos de exceção, mas posso estar enganado, pois não a leio. E se é para ler textos longos como os que ela apresenta, prefiro livros. Tenho pelo menos "uns trinta" argumentos de roteiro que João poderia desenvolver e filmar.... Dou de graça....Ou seja, temas para ele filmar não faltam...

Há argumente contra o filme de que há trabalhos sérios e fortes na área de saúde de viciados que não aparecem no filme e que Fernando Henrique esconde. O fato é que o filme nos fala de uma situação mais global de grande equívoco de não descriminalização do consumo de drogas, do fracasso da atitude “Guerra às Drogas”, algo que por mais avanços pontuais que haja no Brasil, não há políticas de Estado, amplas e detalhadas sobre a questão como há na Holanda e Portugal (!), por exemplo. Com relação aos EUA é muito bem lembrado que há muitas prisões privatizadas, de forma que a desestigmatização e não prisão de usuários, seria contraproducente para os altos lucros desejados e que se conquista atualmente com as inúmeras pessoas presas pelo consumo de drogas.

No Brasil, segundo Dráuzio, há pessoas ainda presas por ninharias ligadas às drogas jogadas em prisões indignas de qualquer pessoa, sendo suas vidas e de familiares desestruturadas. Há que se definir limites entre o que é consumidor e traficante como também “traficante eventual” e traficante mesmo. Um jovem que compra e distribui maconha para os amigos, ganhando alguma coisa é traficante?

Por levantar esta e outras questões de forma nada hipócrita e lúcida, “Quebrando o Tabu”, ganhando maior visibilidade, pelo prestígio de Fernando Henrique que se arrisca neste tema espinhoso (ele chega a comentar que perguntam por que ele não fica cuidando dos netinhos, dos bisnetos, com bom humor), é um doc de suprema importância, mesmo que formalmente não inove. Há momentos no cinema em que o conteúdo fala mais alto que qualquer experimentação estética. Os fanáticos por esta devem passar longe do filme. Já as pessoas que querem ver os direitos de cidadania das pessoas mais respeitados e ampliados não devem perdê-lo.

A César, o que é de César. Se o político Fernando Henrique Cardoso me trouxe muitas decepções (sendo eu até educado aqui), este que vemos, atuante numa causa nobre, é um ser ressuscitado pra mim. Que abrace outras causas necessárias, como tem feito especialmente o ex-presidente Jimmy Carter dos EUA. Nem só de polpudas recompensas financeiras para palestras (às vezes em condições e contatos suspeitos) deve viver um ex-presidente....

Ps. Há em O Globo de 15 de junho, quarta-feira última, mais um extraordinário artigo imperdível da coluna semanal de Francisco Bosco (a mais bela composição de João Bosco, mas sem Aldir....), inspirado pelo filme “Quebrando o Tabu” : “Política das Drogas”, um banho de lucidez, que pode ser lido no link adiante:

http://sergyovitro.blogspot.com/2011/06/politica-das-drogas-francisco-bosco.html

6- "Tudo que o Céu Permite" de Douglas Sirk (EUA/1955) (disponível em DVD pela Versátil)- Mostra Paralela aos filmes de Pedro Almodóvar- Caixa Cultural-RJ

“Tudo Que o Céu Permite” é uma das obras-prima do melodrama de um dos seus maiores especialistas, senão o maior, o alemão Douglas Sirk que radicado nos EUA realizou vários filmes por lá do gênero. Simplesmente sublime. Não é difícil entender as influências dele no Cinema de Pedro Almodóvar, que também procura (mas misturando gêneros, incluindo o melodrama) extrair o sublime das situações melodramáticas, além de outras. É interessante notar também que há um particular bem claro na razão do por que este filme, além da apuradíssima estética, seduziu bastante, tanto o homossexual Almodóvar e outros como Rainer Werner Fassbinder e Todd Haynes ( foi em "Tudo que o Céu Permite", sua história e sua estética, que este se inspirou para o belíssimo "Longe do Paraiso"(2002) ambientado na década de 50, com Julliane Moore e um jardineiro negro apaixonados e ela com marido em crise profunda com a homossexualidade que vem a ele de início quase como um ataque epilético, até realmente encontrar-se).

O conflito básico entre os heterossexuais Cary (Jane Wyman) e Ron (Rock Hudson) em “Tudo que o Céu Permite”, que se apaixonam, com um fundo de “diferença de classes”, mostrado com força rara no Cinema, lembra o dilema por que passam todos os homossexuais, em maior ou menor grau, que é uma luta muito grande entre seus próprios desejos e sentimentos mais profundos e o que as convenções sociais, familiares, religiosas etc. desejam que estes desejos e sentimentos inalienáveis e vitais sejam.

Vendo Rock Hudson como com homem bastante viril, "acima de qualquer suspeita", vivendo um heterossexual de vida independente e que se apaixona por uma mulher (e a seduz com grande intensidade), um pouco mais velha, não dá pra esquecer que durante muitos anos escondeu do grande público sua homossexualidade, vivenciando-a só entre amigos e namorados, revelando-a a todos, só numa situação limite que foi sua doença, uma das primeiras vítimas famosas da Aids, numa época sem os recursos da medicina de hoje. O público (principalmente o da época, 1955), jamais "embarcaria" na história se soubesse de sua verdadeira inclinação erótica. Para termos Rock Hudson em vários grandes personagens de sua carreira era vital que ele escondesse sua homossexualidade (o que acontece muito ainda hoje, tanto no Brasil como no exterior). Um drama interior dele que daria um grande filme de ficção. Um ótimo DOC já foi feito, “Rock Hudson - Belo e Enigmático” (EUA/2009) de Andrew Davies e André Schäfer.

Ainda hoje em Hollywood os problemas de um astro que “sai do armário” são muitos. Rupert Everett, ator que estava em ascensão, chegando até a filmar com Francesco Rossi, “Crônica de Uma Morte Anunciada”, declarou que os bons papéis minguaram a partir do momento em que se declarou homossexual. Kevin Spacey até hoje quando indagado sobre sua sexualidade responde que a segunda emenda da constituição americana lhe dá o direito de não responder...No Brasil o novelista Sílvio de Abreu aconselhou os atores homossexuais a não se revelarem enquanto tal.

Em relação a Tudo que o Céu Permite (tradução do título original) somos limitados pelo destino, mas com relação ao que queremos nos permitir, sendo legítimo e possível, mas humanos não permitem, sejam de “gravata, batina ou avental etc.”, temos que passar “com um trator por cima”, senão seremos devorados pelas convenções e preconceitos sociais, sejam familiares ou da sociedade em que vivemos.

Conforme já tinha nos mostrado Martin Scorsese em seu fundamental doc “Viagem Pessoal ao Cinema Americano” (EUA/ 1995), imprescindível em qualquer escola de Cinema ou para o autoditada, Douglas Sirk, “um contrabandista”, faz em “Tudo que o Céu Permite” de uma simples televisão (em seus primórdios), dada de presente pelos filhos à mãe viúva Cary, uma das coisas mais aterradoras do Cinema. É assistir para crer.

Ps1Muito bom assistir DVD projetado na Sala 2 da Caixa Cultural-RJ. Depois de certo tempo chegamos a ter a impressão de estarmos mesmo vendo o filme num formato original, com projeção não digital, quando o filme nos envolve. Muito mais agradável que a, de certo modo, limitada Sala 2 do CCBB-RJ para DVDs. Mas esta também cumpre seu papel e depois de certo tempo superamos certa asfixia inicial.

Ps2 Em “A Anarquia da Fantasia”, Rainer Werner Fassbinder ( Jorge Zahar Editor, 1988), que se define como um “anarquista romântico”, muito apropriadamente, conversa com Douglas Sirk, depois que este volta para a Alemanha. As influências do mestre são então mais esclarecidas e nítidas. É também um livro fundamental para quem quiser conhecer mais a obra deste genial autor de múltiplas facetas que é Fassbinder, “um artista que morreu consumido pela sua própria arte”, bem cedo, mas com obra quantitativa e qualitativamente fantástica, impressionante, conforme bem se expressou o crítico de Teatro Macksen Luis no “falecido”( nas bancas) Jornal do Brasil.

“Posso Dormir Quando Estiver Morto” de Harry Baer ( Editora Brasiliense/ 1985) é outro livro sobre Fassbinder indispensável para conhecê-lo melhor e à sua obra. A questão da homossexualidade ainda é tão tabu em certas mentes, que vi um bom doc sobre Fassbinder, que em nenhum momento toca nesta questão. Sabermos que morreu de overdose de comprimidos, drogas e álcool podemos, mas sabermos de sua (bi)homossexualidade, tema que ele abordou em vários filmes ( com mais potência em “Querelle”- Alemanha/1982), não podemos...Somos infantis para isto e/ou esta” mácula” não pode ser colocada em sua biocinegrafia.

7- “No Olho da Rua” de Rogério Correa (Brasil/2010) e “Família Braz- Dois Tempos” (Brasil/2011) de Arthur Fontes e Dorrit Harazim

Com “No Olho da Rua”, com trabalho majestoso de Murilo Rosa, temos "o desemprego como ele é", um filme doloroso e urgente. Uma história aparentemente simples (um metalúrgico é despedido depois de 20 anos de dedicação a uma fábrica, para atender novas convenções patronais, convenientes e trabalhistas, reage de forma visceral, não passiva, ao seu infortúnio, tendo já um filho, uma mulher com nova grávida- que no fundo o despreza- e amigos “problemáticos”), vai adquirindo contornos cada vez mais trágicos. Um retrato da atual desorganização, acomodação e cooptação sindical (de modo geral), do fanatismo e hipocrisia de correntes evangélicas, dos subempregos humilhantes etc., num roteiro muito bom de Di Moretti e uma direção bastante segura de Rogério Correa, em quem vale a pena prestar atenção daqui em diante.

Mesmo um filme com alguns problemas de pieguice, “Orquestra de Meninos” de Paulo Thiago, o que tem de melhor é o trabalho minucioso e emocionado de Murilo Rosa. Quase que fui assistir a “Aparecida-O Milagre” de Tizuka Yamasaki só para conferir o trabalho dele. Quase. O filme evaporou-se rápido do circuito. Em “No Olho da Rua” o metalúrgico Otoniel (Murilo) vai perdendo a fé em Deus e nos homens, progressiva e galopantemente, vivenciando na própria pele os mitos de Caim e Abel e do O Livro de Jó, sem nenhum amparo religioso. Junto com Caio Blat em “Bróder” de Jefferson De, Murilo Rosa tem o melhor trabalho de ator do Cinema Brasileiro que vi este ano até o momento.

“No Olho da Rua” mostra o lado avesso de “Família Braz-Dois Tempos” de Arthur Fontes e Dorrit Harazim, doc vencedor do É Tudo Verdade 2011 (a meu ver injustamente, pois assisti a docs bem melhores concorrendo, como "Carne, Osso", de Caio Cavechini/ Carlos Juliano Barros e “Tancredo: a Travessia” de Sílvio Tendler). “Família Braz-Dois Tempos” não chega a ser propriamente chapa-branca. É quase, apesar de suas inegáveis qualidades cinematográficas, espontaneidade e sinceridade dos depoimentos e do sempre instigante confronto entre dois tempos da vida de pessoas, ainda que depois de “Cabra Marcado Pra Morrer”, talvez nada mais assim nos surpreenda muito doravante e supere este em força, contundência, qualidade cinematográfica e de documento histórico.

Confrontados “No Olho da Rua” e “Família Braz-Dois Tempos”, o primeiro, longe de qualquer visão idílica e higienizadora da sociedade brasileira contemporânea, nos mostra que muitas vezes a ficção pode ser mais verdadeira do que aquilo que se supõe ser “Tudo é Verdade”, mas que, a rigor, é um wisfull thinking que promove um recorte conveniente da realidade. Neste sentido a família Braz posando com seus quatro carros, 10 anos depois do primeiro encontro chega a ser algo quase que pornográfico. Os autores se defendem alegando que por morarem em Brasilândia, bairro superpovoado de São Paulo, onde transporte ainda é muito ruim, precisam de carros. Mas quatro?

Já parte da crítica rotula o filme sobre os Braz, como um “retrato da ascensão da nova classe média” (o que os diretores em matéria de O Globo também negam; tudo seria muito mais fruto do trabalho intenso da família do que de uma conjuntura econômica favorável, o que é menos mal, mas neste caso as imagens e depoimentos dão uma conotação que eles não esperavam ). Para considerações mais gerais é bom lembrar que com UM ponto (como mostra a matemática e a estatística elementares) não se faz nenhuma curva com significado econômico...Temos que ter amostras de várias cidades do país, de diferentes portes, da área rural à urbana, dos centros e das periferias variadas, favelas diversas etc...E mesmo assim estamos sujeitos a erros. Tem aquela velha história da Estatística rondando: o indivíduo está com a cabeça no congelador da geladeira e os pés na bacia de água escaldante. Na média vai bem....

And last but not least (sobre “Dois Tempos”), uma família que morava há dez anos em Brasilândia, um lugar bastante inóspito, com uma paisagem imensa de casas assustadora e dez anos depois continua ali morando, não pode ser considerada nova classe média. Carros representam uma cortina de fumaça para a pobreza, que não é extrema, mas não deixa de ser pobreza.

“No Olho da Rua” se filia a uma vertente do Cinema Mundial que aborda facetas do trabalho num mundo corporativo (num novo prédio construído ao lado de onde moro, aluga-se “espaços corporativos” e não mais escritórios....), como “O Corte” de Costa Gravas, “A Agenda” de Laurent Cantet, “Segundas ao Sol” de Fernando León de Aranoa, dentre outros. Os bastante interessantes trabalhos de Carlos Reichenbach, “Falsa Loura” e o melhor “Garotas do ABC” abordam o mundo proletário fabril brasileiro contemporâneo por outro viés: o diretor apresenta uma coloração geral dos ambientes e pretende ir além dos problemas trabalhistas.

Ps1 Um amigo que trabalha num Banco Estatal importante, trabalhou um dia por três que nem um cão, sem tempo nem de ir ao banheiro. Ao fim do dia o gerente perguntou quantos Cartões Especiais tinham sido vendidos. Ele disse que, muito atarefado, não conseguiu vender nenhum. Acabou ouvindo em retorno que o trabalho daquele dia não tinha valido nada! ( sic)....É um caso nítido de assédio moral, tão frequente como o bullying escolar do qual se fala tanto hoje. Mas se ele processar o Banco corre o risco de ser perseguido pelo resto da vida no trabalho. Algumas pessoas só entram com processos quando se aposentam. Está aí um tema que o Cinema Brasileiro, seja em ficção ou doc tem que abordar. Existe também em curso uma favelização das relações de trabalho em várias áreas, com uma fachada de modernidade para enfrentar os novos tempos “competitivos e globalizados”. ”No Olho da Rua” toca nesta ferida com força, mas é pouco para uma cinematografia.

Um conhecido, doutor e professor universitário com pós-doutorado prefere estacionar no patamar acadêmico que atingiu porque já conhece as “cobras-criadas” que o circundam e algumas formas de defesa. Se “subir na carreira” terá que enfrentar outras “cobras-criadas” mais poderosas e perigosas...Alguém precisa também fazer uma ficção ou doc inspirado neste serpentário. “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?” de Edward Albee, que, em parte, tematiza o ambiente universitário perde....

Um juíz que conheço chega a fazer performances dignas do Teatro do absurdo de Ionesco no trabalho para ser entendido. Etc...etc...etc...

Em suma: a contaminação e a ética rasteira é bem mais ampla do que se pensa e divulga.

Ps2 Muito bom o Cine Glória-RJ, de modo geral, infelizmente ainda muito pouco frequentado. Além de ter uma programação com estreia exclusiva de filmes como “No Olho da Rua”, tem uma programação de filmes brasileiros bem interessante, que as pessoas podem ter perdido nos circuitos. Embaixo, nos subterrâneos da bela “Praça do São João Batista flechado e da cabeçorra do Getúlio”, uma das poucas sem as odiosas grades na Zona Sul carioca, fizeram um ótimo aproveitamento do espaço. Quem passa por ali e não conhece, não imagina o espaço agradável e cultural que tem embaixo, apesar da escadaria intimidadora. Seria uma pena se ele fechasse por falta de público. Já “No Olho da Rua” por provavelmente ter tido baixa bilheteria no primeiro final de semana foi retirado de cartaz, sem chance de uma segunda semana, algo comum que acontece com o Cinema Brasileiro e até com o alternativo estrangeiro. Mas é um trabalho que merecia e foi registrado aqui, torcendo para que tenha nova chance ou seja mais visto em DVD.

8- “Chantal Akerman, de Cá” (Brasil/2010) de Leonardo Luiz Ferreira e Gustavo Beck

De início quando a tela fica escura por algum tempo, com som de elevador subindo e depois com o plano de média distância da cadeira e da mesa solitárias, numa sala do CCBB-RJ, com câmera postada fixa do lado de fora da porta, por uns bons momentos, temi pelo filme e sua ambição (“Vai ser ela lá e eu cá, sem maior envolvimento.”- pensei). Mas foi só Chantal chegar, começar a falar, que logo me senti fisgado pelo filme, entendi, aceitei e curti a opção de enquadramento, focando-se em Chantal e deixando o entrevistador Leonardo em extracampo.

Chantal se mostra uma artista bastante consciente e gostei muito de confirmar uma ideia que já tinha: muitas opções que cineastas tomam que acreditamos sejam conceitos bem demarcados são frutos da interação consciente&inconsciente, dando-se grande relevância a um sentimento forte de que aquele é o melhor enquadramento ou movimento de câmera mais adequado, ou seja, algo que vem mais da forte intuição do que da razão.

Com ótimas perguntas vai-se construindo um belo mosaico do que seria o Planeta Chantal. Planeta porque, a rigor, com poucas exceções, não se tem uma visão do Cinema, mas do Cinema de Chantal e suas afinidades, num universo em que outras possibilidades de opções e expressões são muitas, quando não infinitas.

Só pelos seus cineastas totens que são Godard, Murnau, Bresson, Dreyer (o primeiro é sua maior influência, que vem desde os 15 anos) e outros avan-guard como Stan Brakhage, Jonas Mekas, Michael Snow, e Andy Warhol (ela, a rigor, não vê assim tanta influência no seu trabalho destes últimos) já se tem noção do terreno onde estamos pisando, principalmente para mim, que dela só conheço um episódio de “O Estado do Mundo” (2007), com vários cineastas, com resultados de modo geral ruins, que me trouxe um cartão de visitas desagradável de Chantal, ao termos um pretensioso longuíssimo plano fixo de um edifício oriental com luzes neon em profusão, enquadrado de longe. Mas como seus filmes se fixam em pessoas, de modo geral, muitas vezes em atividades cotidianas (“o tempo é á única coisa que temos realmente”), acredito que deva gostar dos trabalhos dela.

Fiquei muito curioso para assistir principalmente “A Prisioneira”, por ser uma adaptação bastante “estudada” de um dos volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, que teria tido em Luchino Visconti (que sonhava com este projeto como um todo), o seu maior exegeta/esteta no Cinema. Uma das grandes perdas irremediáveis em relação a filmes não feitos do Cinema, como também é o “Napoleão” que Stanley Kubrick desejava fazer.

Em sua crítica em O Globo, Ruy Gardnier considera “A Prisioneira” uma das obras primas de Chantal, o que aumenta ainda mais minha curiosidade. Só não concordo com ela quando diz não gostar de nenhuma adaptação de Proust que tenha visto. Sem considerar uma obra-prima (o que seria um problema de certo nível) é muito bom “Um Amor de Swann” (1984) de Volker Schlöndorff, com Jerome Irons e Ornella Mutti, transmitindo com bastante apuro e sensibilidade, o que é passar anos dedicados a uma paixão e depois descobrir que não valeu a pena, que o objeto desta obsessão não merecia (e isto sem “entulhar” elementos proustianos como Chantal diz). O que não vi e ainda vou tentar ver é a adaptação de Raul Ruiz para “O Tempo Redescoberto”.

Mas não importa se concordamos ou não com o que Chantal revela no filme de Leonardo&Beck. Importa é que eles conseguem passar num tempo curto, um tanto da visão de mundo e do Cinema dela. Enquanto faz isto tudo é muito bom (especialmente para mim que sou vidrados em entrevistas áudio-visuais e é uma das poucas coisas que vejo na televisão, não por esnobismo, mas por questão de prioridades).

Aonde “Chantal Akerman, de Cá” decepciona é na duração. Num trabalho que visasse o Cinema prioritariamente (segundo Leonardo não foi o caso; esta foi uma decisão a posteriori) , não só a televisão, muita coisa ainda poderia ser perguntado ou discutido com ela (neste último aspecto faltou uma maior interação: perguntas eram feitas e passava-se a outras, não havia reformulações e questionamentos, havendo uma excessiva reverência; neste sentido o cigarro que pedem a ela que apague duas vezes, mas ela não faz, é significativo da vontade de não incomodar a diretora). Com o material que se tinha daria tranquilamente para pelo menos mais vinte minutos de filme (1:20 h de metragem total), justificando mais, arrumar-se, sair de casa à noite, pegar uma condução e ir num cinema acanhado como o Jóia, às 21:00, para assistir a um filme mais robusto. O que se assiste é muito bom, mas eu pelo menos fiquei com “gosto de quero mais”. Se Chantal questiona tanto o tempo no Cinema (acredita que temos que sentir cada segundo e não, “não ver o tempo passar”, o que seria um passatempo, algo que dá muita discussão), o filme em questão que mimetiza o trabalho dela, com plano fixo longo, poderia ter transgredido mais e nos ampliar a visão de mundo e de Cinema de Chantal.

Algo que poderia ter sido contestado é a separação rígida que ela faz entre Cinema artístico e Cinema comercial, quando décadas de Cinema, com as obras de Hitchcock, Polanski, Spielberg, Kubrick, até o Bergman dos extraordinários “Cenas de Um Casamento” e “Fanny e Alexandre”, dentre outros, já nos mostraram que arte e comércio não se excluem necessariamente. Seu nível de exigência a faz ir pouco ao Cinema (uma vez ao ano). Só em Festivais, vê uns 20 filmes. Conhece um pouco do Cinema Asiático contemporâneo, mas não consegue destacar nenhum grande nome do Cinema de hoje, o que é flagrante injustiça e sinal eloquente do isolamento a que se impõe, fixada que deve estar em seus tótens Godard, Murnau,Bresson, Dreyer etc. Para um dos diretores, Leonardo Ferreira a ausência de interação se deve ao projeto original de uma hora e à noção de captar os silêncios e gestos dela entre as perguntas com expressividade. Faz sentido. Mas ainda lamento a duração e falta de feedbacks.

“Chantal Akerman, de Cá” nos conduz muito bem ao Planeta Chantal e se defeito tem é não acreditar mais na sua proposta e ser um filme tão curto para seu potencial. Mas é claro que vale a pena se arrumar, enfrentar o trânsito, a solidão de Copacabana à noite e a ida ao Cinema Jóia, ainda que no sábado 11 de junho houvesse só eu e mais uma pessoa como espectadores. O filme merece, claro, algo muito diferente disso e outras semanas no IMS, Cine Glória, Espaço Sesc-Botafogo 3 devem ser batalhadas. Nesta última quinta termina terminou sua temporada no Jóia- Copacabana dentro da Mostra da nova distribuidora Vitrine. Vamos torcer para que como “Estrada Para Ythaca” tenha sobrevida em outro cinema.

Ps. A Mostra Chantal Akerman no CCBB-RJ coincidiu com uma Retrospectiva Marlon Brando na Caixa Cultural e eu dei prioridade à Mostra deste que foi provavelmente o melhor ator que o Cinema já teve (além do mais belo...). Revi e vi filmes nunca antes vistos como um pouco conhecido e extraordinário dueto Marlon Brando& Anna Magnani em “Vidas em Fuga”(1959), baseado em Tennessee Williams, dirigido por Sidney Lumet, um dos diretores que melhor soube fazer adaptações teatrais para o Cinema ( seu “Longa Jornada Noite Adentro”, baseado em Eugene O”Neal, com Katharine Hepburn, Jason Robards, Ralph Richardson, Jeanne Barr, Dean Stockwell é uma das grandes obras-primas( atordoantes) da História do Cinema; Bárbara Heliodora fez a melhor e mais adequada tradução para o título da peça: “Longa Jornada de Um Dia Para Dentro da Noite”).

9- “Uma Doce Mentira” (França/2009) de Pierre Salvadori (Festival Varilux de Cinema Francês- 2011)- Está comprado, com cartaz e legendas em português, devendo ser exibido no circuito se não houver reviravoltas ( o que às vezes acontece)

Quem é Pierre Salvadori? Nunca tinha ouvido falar ou lido nada sobre ele. Fui ao Cinema atraído pelo carisma de Audrey Tatou, que se revelou uma estrela em “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” de Jean-Pierre Jeunet, um dos “demiurgos” do cinema contemporâneo (criador de universos singulares), que só não fez aqui um grande filme porque exagerou um tanto na dose de açúcar).

No entanto, apesar de Salvadori ser pra mim um completo desconhecido, sua comédia romântica é bastante original, dinâmica, com ótimas situações e tiradas cômicas, que além do time cômico aliciante de Tatou, conta um ótimo trabalho de Nathalie Baye, alternado momentos depressivos com outros eufóricos&luminosos, com grande eficiência e sensibilidade.

Emilie ( Tatou), sócia de um salão de cabeleireiro manda uma carta anônima que recebeu que revela grande paixão por ela, para sua mãe que precisa melhorar muito sua autoestima, mergulhada que está em forte crise emocional, pois não se acostuma com a ideia de que seu marido, separado já há quatro anos, largando-a por uma jovem de 20 anos, não tenha a menor intenção de reconciliação. A filha, ciente de que o pai quer o divórcio para se casar com a companheira agora grávida, passa a escrever outras cartas anônimas para a mãe e muitas confusões se instalam, dado que o primeiro missivista anônimo é o pintor poliglota impetuoso (Sami Bouajila, não tão bem quanto em “As Testemunhas” de André Téchiné) que trabalha no salão.

O filme tem ótimo ritmo, não se sente o tempo passar e não temos ao final a sensação de termos jogado uma partida de baralho: algumas questões como o amor e a solidão na velhice, a necessidade de transgredir a própria timidez, os altos e baixos da autoestima, a dificuldade de reconhecer a importância de quem nos está perto etc. ficam.

Para Chantal Akerman, que se declara exigente no filme de Leonardo&Beck ( comentado no item anterior), quando lhe dizem que um filme “não é ruim” ela não vai ver, pois isto é um sinal de que o filme ”não é excelente” e prefere ficar lendo em casa. Neste sentido ela parece ter razão. O problema aqui é que de um filme péssimo a uma obra-prima há uma gama infinita de possibilidades e para termos prazer em nossas idas aos Cinemas não precisamos estar apenas diante de filmes extraordinários. Filmes bons e muito bons (como é o caso de “Uma Doce Mentira” e do delicioso “Copacabana” de Marc Fitoussi, com Isabelle Huppert- divina como sempre- aqui numa chave cômico-dramática, também no Festival Varilux 2011, devendo estrear) também justificam a saída de casa.

Chantal assim como Bressane, Rogério Sganzerla e principalmente Godard comungam de certo tédio em relação ao Cinema que não é feito segundo os ditames experimentais com que gostam de trabalhar e assistir. É uma visão de Cinema limitada e ao seu modo, preconceituosa. O caso de Godard que declarou que do Cinema Contemporâneo muito pouca coisa lhe interessava, sendo que a exceção seria “Brown Bunny” de Vincent Gallo, um filme muito bom (não uma obra-prima) é sintomático. Até mesmo Glauber Rocha nos seus últimos anos de vida, quando brigava para valorizarem mais “A Idade da Terra”, um filme que se valoriza mais com o tempo, fez uma odiosa lista dos cineastas que considerava neoacadêmicos, dentre eles Bernardo Bertolucci (de tantos filmes extraordinários) e Nagisa Oshima ( idem), dentre outras injustiças.

Resumo da Ópera: não gostaria de frequentar só uma Cinemateca ou Cinema de Centro Cultural com curadoria de Chantal, Bressane, Sganzerla, Godard e Glauber....Grandes teóricos de seus próprios Cinemas, são limitados em relação ao Cinema “dos outros”.

Também acho um equívoco quando Erick Rocha (que realiza filmes dos quais gosto bastante) e outros organizavam a “Mostra Cinema Que Pensa- Cinema e Política” no Festival do Rio, com filmes que “instigariam ao pensamento”, como se as demais áreas do Festival não tivessem vários filmes, que das mais variadas formas convidam também os espectadores aos mais estimulantes pensamentos.

10- “Saturno em Oposição” (Itália/ França/Turquia/2007) de Ferzan Ozpeteck

O turco radicado na Itália Ferzan Ozpetck tem feito alguns filmes perpassados pela temática do homoerotismo em suas variantes, sem que não deixe de agregar outros temas. É o caso de filmes que tivemos oportunidade de assistir no circuito brasileiro como “Banho Turco”, “Um Amor Quase Perfeito” (onde uma mulher depois que o marido morre, descobre que ele tinha um homem como amante e deste procura se aproximar), “O Primeiro que Disse” (exibido em 2011, já comentando no Blog) e agora um de 2007 que chega aqui, embalado pelo sucesso de público do segundo: “Saturno em Oposição”

Em “Saturno em Oposição”, o casal Davide (Pierfrancesco Favino, um escritor) e Lorenzo (Luca Argentero) vive rodeado de amigos como Antônio (Stefano Accorsi), um bancário que é casado com a psicóloga anti-tabagista Angélica (Margherita Buy), mas é amante da florista Laura (Isabella Ferrari).Temos ainda a decidida tradutora Turca Neval (Serra Yilmaz), bem como a obsessiva astróloga Roberta (Ambra Angiolini), viciada em cocaína, dentre outros companheiros. Estamos diante de um caso típico de uma “família” dos homossexuais, algo muito mais constituído de laços afetivos e espirituais do que de laços de sangue. A entrada em cena do pai de Lorenzo e da sua companheira vai evidenciar mais este abismo, pois este expulsou o filho quando soube de sua homossexualidade.

Misturando gays, heteros, etnias, idades variadas, “Saturno em Oposição” aponta para a amizade como um dos grandes fatores a dar conforto a nossas vidas e seus flagelos e em alguns casos o único (algo que vivenciei também na prática todos estes anos). Com a doença de Lorenzo, Davide controla o baque (aparentemente, veremos) pela solidariedade dos amigos, sendo que alguns se revezam no hospital. Ao mesmo tempo estes amigos, principalmente Antônio, sentem maior urgência de reformularem suas vidas.

Com uma apresentação um tanto apressada de muitos personagens, onde se instala certa confusão e o desenvolvimento um tanto insuficiente de alguns deles e seus conflitos, sendo depois “abandonados”, o filme não avança mais como poderia. Mas mesmo assim é um bom filme, com belo retrato de perda e tentativas de superação e a força da solidariedade de amigos nesta circunstância (que é a rigor, o que nos resta, num mundo tão atomizado, com tantos individualismos e suas cascas protetoras).

“O Direito de Amar” (EUA/2009) de Tom Ford nos mostra um professor universitário (Colin Firth, tão sensacional quanto em “O Discurso do Rei”) que perde o companheiro e perde o rumo da vida. A dor aqui nos é mostrada de forma lancinante, o que não acontece com Davide que interioriza muito seus sentimentos, até uma situação de explosão. Mas existe uma diferença brutal: enquanto o professor tem, há rigor, só uma amiga (Julianne Moore) e um estudante que dele se aproxima, Davide é rodeado deles.

O Cinema de Ferzan Ozpeteck (de quem vimos também “A Janela da Frente”) não está entre os melhores que a Itália nos oferece hoje, como o de Nanni Moretti, Gabriele Crialese, Marco Bellocchio, Gianni Amelio, Gabriele Salvatores e outros), mas é algo que merece ser acompanhado e ter uma distribuição mais regular no Brasil ( se não fosse por “O Primeiro que Disse” ter feito relativamente grande sucesso, “Saturno em Oposição” de 2007 não teria sido importado). A obra de Ozpeteck tem grande comunicabilidade com o público, passando longe de ser rasa. O circuito também precisa de filmes médios assim. Mas “Um Amor Quase Perfeito” (“Le Fate Ignoranti”), dentre os que vi dele, é o mais bem resolvido, talvez por concentrar mais o conflito básico, estando num patamar acima dos demais.

11- “Namorados Para Sempre” (EUA/2010) de Derek Cianfrance

É impressionante como aparecem novos diretores ótimos, mas que depois não se ouve falar mais deles. Espero que Derek Cianfrance, a julgar por “Namorados Para Sempre”, em que também é co-roteirista, tenha uma carreira promissora pela frente.

Derek se aventura por uma seara já percorrida magistralmente (e que talvez nunca mais seja superada) por Ingmar Bergman em “Cenas de Um Casamento”, onde de uma forma assombrosa e simples (enquanto estética, relativamente a seus outros filmes) espiava a alma de um casal nos seus altos ( pouco tempo no início do filme), baixos e grandes baixos, quando a relação começa a desmoronar, quando o marido conta que surgiu uma amante. E Derek consegue adicionar nova estética e elementos neste tema já tão trabalhado e que no Brasil encontrou em “Eu Sei que Vou Te Amar” de Arnaldo Jabor a sua maior expressão. Em Literatura brasileira é magistral o conto “O Topo e o Fundo” de Sérgio Sant'Anna (desculpem-me não revelar o livro de contos onde este se encontra, pois o conheci de forma avulsa numa Roda de Leituras do Estação das Letras, coordenado pela incansável Susana Vargas, lido pelo próprio Sérgio).

Dean (Ryan Gosling) e Cindy (Michelle Williams) começam a sentir os abalos na relação amorosa, de onde geraram uma filha. A partir daí as tentativas de melhoria (muito mais por iniciativa dele), incluindo ida a um motel de quarto futurista kitsh que expressa a decadência da relação, se dão como tiros na lua, atingindo patamares cada vez mais dramáticos, mesmo que acreditem que o sexo ( mostrado aqui de forma não puritana, ao contrário do que acontece na maioria dos filmes americanos atuais) seja regenerador, enquanto que esta tentativa exasperada e frustrada de prazer evidencia o abismo que está sendo construído entre os dois. O grande e simples lance de dramaturgia do filme é confrontar este futuro de desagregação familiar, com cenas em que os primeiros contatos dos dois vão sendo feitos e acompanhamos a evolução do namoro. Este clima idílico em paralelo (com caracterização física também muito bem trabalhada por/em Ryan Gosling), só acentua ainda mais a dramaticidade de se querer recuperar sentimentos perdidos com o poder deletério do tempo.

O título brasileiro para "Blue Valentine", "Namorados Para Sempre", é uma das propagandas mais enganosas que a titulagem brasileira já fez. Num oportunismo sem igual, o filme foi lançado no fim de semana do dia dos namorados, esta convenção social que muitos levam a sério. Os casais que o foram comemorar vendo o filme, devem ter saído arrasados. Os que vão se casar talvez pensem bem mais...

Além da direção e roteiro excelentes, o que sobressai ainda mais são os grandiosos desempenhos de Michelle Williams e Ryan Gosling, arrebatadoramente dolorosos. Ela concorreu ao Globo de Ouro e ao Oscar. Ele ao Globo de Ouro. A concorrência era muito forte. Mas se tivessem ganhado estes prêmios, seria algo altamente pertinente.

E que faro teve Ang Lee ao escalar o elenco de “Brokeback Mountain”: tanto Heath Ledger, Jake Gyllenhaal, Anne Hathaway e Michelle Williams se mostraram astros de primeira grandeza, um prazer já garantido ao irmos ver filmes com eles. Pena que Heath tenha morrido tão cedo. Mas deixou além do caubói gay de “Brokeback Mountain”, um trabalho antológico que é o Coringa, o que “Batman, Cavaleiro das Trevas” de Cristopher Nolan tem de melhor. Recebeu um Oscar póstumo de coadjuvante mais do que merecido.

“Namorados Para Sempre” não culpabiliza nenhum dos protagonistas pela relação que se esvai como água no torvelinho do ralo. Mostra inclusive um momento inesquecível que foi um turning point decisivo para suas vidas no passado. “Não há o que perdoar, por isso é que deve haver mais compaixão”- nos lembra Gil em “Drão”, uma canção sábia sobre uma separação amorosa.

“Namorados Para Sempre” é um filme, como bem definiu André Miranda em O Globo, quase que de terror. Uma visão nada idílica das relações amorosas onde a única certeza que se tem são os bons momentos que se está vivendo no presente. Numa cena crucial, Dean lembra a Cindy que ela prometeu que eles estariam juntos na alegria e na tristeza. “Eu estou triste agora”- diz ele. Contada pode ser piegas, mas vista dentro do contexto, é algo arrasador e pungente, tocante como todo o filme.

Para “Namorados Para Sempre” vale também a epígrafe que Jabor colocou em “Eu Sei Que Vou Te Amar”, um verso do poeta Chacal: “Nosso amor tão puro pulou o muro”.

Vale o clichê: imperdível! Um dos melhores filmes do ano até então.

12- “O Gato Branco” de Jô Bilac, direção de João Fonseca- Teatro Sérgio Porto- Rio de Janeiro (aqui sem spoilers significativos)

Cheguei um tanto atrasado à dramaturgia de Jô Bilac (perdi “Cachorro” e “Savana Glacial”), mas ao assistir “O Matador de Santas”, ele ganhou alguém que vai acompanhar suas obras para sempre daqui em diante. “O Matador de Santas” alia o cômico ao dramático como muitos tentam, mas são poucos os que sabem fazer, tem humor cáustico, desenvolvimento acumulativo surpreendente, diálogos afiados, referências, mas originalidade com visão pessoal do mundo, não algo “emprestado” etc. Essas e outras qualidades estão também presentes neste surpreendente “O Gato Branco”.

As referências maiores aqui seriam Agatha Christie e Hitchcock, na criação de um policial de um suspense contínuo, com mistérios a serem desvendados. Mas há também um clima de asfixia quase que surreal a la Luis Buñuel que também se instala. Do mestre Hitch há realmente o suspense, mas enquanto este, de modo geral, com exceções como “Festim Diabólico”, trabalha muito mais com inventividade na concepção das imagens do que em seus saborosos diálogos, “O Gato Branco”, com um belo barco como cenário, ainda que crie belas imagens coreografadas, investe muito mais no sabor dos diálogos ligeiros e cortantes.

Seis pessoas recebem uma carta com um recorte de jornal para jantarem e fazerem um cruzeiro num barco, onde alguém será assassinado. Estas são as regras do jogo expostas desde o início. Todas comparecem. Uma sucessão de eventos e discussões conduzirá um texto que se emaranha em implausibilidades a fazerem todo sentido com a evolução dramatúrgica e nisto está a grandeza do texto.

Além de ser um ótimo divertissement , temos todo um jogo teatral social que as pessoas usam como escudos protetores e que vão sendo desnudados, com grandes surpresas.

Num elenco muito bom, destaca-se Paloma Duarte como Vic, uma professora de escola primária com ares de estrela de cinema, procurando evadir-se de sua profissão da qual sente certa vergonha. Os demais atores não ficam muito atrás. Há desde o médico mais maduro Arthur, procurando sempre mostrar sensatez (Caminho Bevilacqua) ao advogado arrogante Michel (Bruno Ferrari). Mas o que é verdade ou invenção neste sucessivo baile de máscaras? Terão mesmo estes nomes e estas ocupações?

“O Gato Branco”, sem atingir a pujança de “Crônica da Casa Assassinada” (já comentado no item 3), tem direção muito inspirada de João Fonseca, momentos em que o texto exige mais bastante empenho dos atores e estes correspondem muito bem, é profissionalíssimo (no melhor sentido da palavra), levanta questões éticas delicadas e dá ao espectador muito mais do que respostas às indagações de ordem policial. Como perdê-lo? Mas como pede um ator ao final: não contem o desfecho a ninguém.

13- “O Jogo das Contas de Vidro” de Hermann Hesse (Editora Record)

Último romance escrito por Hermann Hesse, publicado em 1943, nos mostra uma comunidade mística e mítica, Castália, de um futuro mais longínquo, onde se dedicam ao jogo de avelórios (contas miúdas de vidro através das quais se procura pela Totalidade que pode haver por trás do significado de tantas pequenas e grandes coisas que geram mistérios para o homem; enfim “uma tentativa de percepção da correlação entre todos os elementos que compõe o Universo, percepção da unidade”, conforme Bernardo Maciel em http://www.recantodasletras.com.br/poesiasespiritualistas/1477027

Dois amigos acabam se separando. Enquanto um vai para Castália, isolando-se das questões e problemas materiais do mundo, o outro passa a ser um comerciante. Mas depois de muitos anos quando até Castália passa a sofrer abalos econômicos, aquele que viveu vida monástica volta para “o mundo” e reencontra o amigo. Pelas suas trocas de experiências se sentem ambos fracassados. A corda do instrumento ou foi esticada demais, arrebentando ou ficou muito frouxa, gerando um som muito ruim.

Numa fase muito importante de minha vida, anos depois dos movimentos hippies, li tudo que pude de Hermann Hesse, com grande encantamento: “Demian”, “Siddharta/ Sidarta” (que gerou filme estupendo de Conrad Rooks- Alemanha/1972, que precisa ser mais conhecido), “O Lobo da Estepe”, “Narciso e Goldmund”, “Contos”, “Poemas” etc. Mas o que mais marcou foi justamente “O Jogo das Contas de Vidro”. Depois de uma fase Dostoiévski, que virou do avesso meu materialismo, com a mirada de “cristão torturado” que o autor tem, que se não me aproximou do cristianismo, afastou-me do ateísmo, ler Hesse com toda sua paciência e beleza narrar estas aventuras espirituais, mas sem dogmatismos e cegueiras, foi um deslumbramento.

Como Brecht nas questões sociais com seu poético, sólido e genial didatismo, Hesse tem estas qualidades para as questões espirituais. Nunca considerei certo didatismo um problema na arte, mas sim uma solução que só os grandes artistas como os dois resolvem bem. Quando surgiu Paulo Coelho no Brasil, fiquei contente com a ideia de que aos poucos as pessoas passassem a se interessar mais a fundo por questões espirituais e chegassem até a ler Hermann Hesse. O que parece ter acontecido é que quem lê Paulo Coelho quer cada vez mais ler Paulo Coelho...É como aquela história: quem joga xadrez demais acaba desenvolvendo cada vez mais sua capacidade....de jogar xadrez...

Num mundo onde temos o horror que é Wall Street e congêneres , os fundamentalismos cristãos e muçulmanos, a arrogância e violência escudada no judaísmo fundamentalista de Israel contra os palestinos, a submissão passiva à ideia de castas inferiores e os banhos sagrados no Ganges com pedaços de cadáveres boiando na Índia, as perseguições aos tibetanos, a China acreditando que pode obter desenvolvimento econômico, mantendo forte tirania ditatorial etc., a re(descoberta) da obra de Hermann Hesse e principalmente de “O Jogo das Contas de Vidro” torna-se vital e essencial. Sua obra não resolve os impasses do mundo contemporâneo. Mas o melhor encaminhamento destes passa por sua obra fundamental, imortal.

Viver é afinar o instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro”´- verso de Walter Franco popularizado por Leila Pinheiro. O grande desafio é em tudo na vida tentar buscar este equilíbrio, ainda que não o atinjamos perfeitamente. Mas quem não o procura, muito pelo contrário, estará muito distante dele. Outro desafio é atingir ou estar no limiar deste equilíbrio, sem roçar a mediocridade e a indiferença. Um perigo em que muitos ditos espiritualistas caem.

Curiosa e nada surpreendentemente, quando me dispus a que jogassem búzios pra mim, me lembrei de imediato do jogo de avelórios de Hesse. Mas estas experiências serão mais desenvolvidas em posts futuros.

14- Um Tanto de MPB

14.1 João Gilberto, 80 anos

Todos os parabéns do mundo são poucos para comemorar e homenagear João Gilberto em seus 80 anos completados na semana retrasada. Sua grandeza artística e importância tanto no Brasil quanto no exterior é inegável e evidente. Muito do que se faz hoje em MPB, veio de João e suas revoluções implantadas direta e indiretamente, tanto no canto como na forma de tocar o violão. Creio que isto é de modo geral, pacífico, ainda que haja sempre os estraga-prazeres.

Mas é bom reconhecer também que há artistas que não tendo obrigação de seguir nenhuma linha evolutiva linear (eu acredito muito em afinidades artísticas e espirituais temporais num eterno retorno em espiral do que nesta suposta linha evolutiva), não devam nada a João. O trabalho de um Antônio Nóbrega tem muito mais a ver com os estudos de Mário de Andrade do que com João Gilberto. Paulinho da Viola existiria muito bem sem ele: sua obra dialoga e evolui dentro da tradição histórica do samba. Elis Regina, ao contrário de Nara Leão, tem muito mais a ver com a trajetória de Ângela Maria e Cauby Peixoto, conforme já declarou, do que com vestígios de João Gilberto. Maria Bethânia, tanto em termos de repertório quanto de trabalho com a voz, tem muito de Dalva de Oliveira e pouco ou nada de João. As trajetórias artísticas grandiosas de Mônica Salmaso e Renato Braz passam longe dele. Etc. etc,

Não tenho nada a ver com a vida e as idiossincrasias de João Gilberto, mas, como imenso admirador de sua obra (o primeiro LP que comprei na vida e ouvi sem parar foi “Amoroso”, com arranjos belíssimos de Klaus Ogermann; anos depois quando tive mais dinheiro comprei todos seus LPs lançados, na Modern Sound de Copacabana, hoje fechada, infelizmente, e os ouvi até dizer chega), mas acredito que suas manias ( algumas até cultuadas por admiradores seus, imantando mais a mitologia que o cerca) o prejudicou em sua trajetória artística que foi gloriosa mas tinha potencial para muito mais.

Regravar “Chega de Saudade”, “Desafinado” duas, três vezes é bom. Mas só muitos especialistas vão notar sutilezas evolutivas numa quarta, quinta vez. Ficar depurando canções já gravadas como um monge trapista procurando a perfeição (inatingível...) incorre no equívoco existencial do personagem de Hesse comentado a propósito de “O Jogo das Contas de Vidro” no item 13. Ouvindo “João Voz e Violão” (1999)”, CD produzido por Caetano Veloso, com Camila Pitanga fazendo significativamente psiu na capa de frente, é algo sublime mas vem a inquietação: será que não chega de Chega de Saudade e Desafinado ( como de Eu vim da Bahia)?

Sem estas obsessões e isolamentos, João poderia passar longe de experiências negativas do grande cantor que é Emílio Santiago (que exagerou demais na quantidade de suas sucessivas aquarelas, angariando antipatias e eclipsando grandes trabalhos seus como os dedicados a João Donato e Dick Farney- este na forma de cantar,“cantor de travesseiro” maravilhoso, antecipa um pouco a modernidade de João) e ter gravado alguns CDs a mais estupendos, com repertórios de todas as épocas, incluindo até “Faz Parte do Meu Show”, bossa nova by Cazuza. Numa de suas idiossincrasias João enamorou-se de “Me Chama” de Lobão. Não que esta canção não seja boa (nela João enxergou a carência profunda), mas poderia ter dirigido este faro para outros compositores da geração de Lobão e outras. E Lobão ainda ficou insatisfeito, pois João cortou “mágica no absurdo”, conforme comentou Caetano em sua coluna num alentado Segundo Caderno de O Globo só em homenagem a João.

Assim como me atrevi a oferecer argumentos para João Moreira Salles filmar, fico imaginando quantas canções que conheço que ficariam extraordinárias se João as interpretasse. Como ficariam mais belos os sambas modernos de Adriana Calcanhotto (que, aliás, os canta muito bem em “O Micróbio do Samba”) na voz de João Gilberto! E outras músicas que não samba, na voz de João, como ficaram magníficas Besame Mucho, Estate, S Wonderful etc. Sem contar que muitos grandes mestres históricos brasileiros tem músicas ainda a ser descobertas. D. Ivone Lara declarou que não quer compor mais, pois não quer ter músicas na gaveta. Aqui temos horror mesmo no absurdo da cultura brasileira.

Estamos em 2011 e não há disponíveis ainda para comprar em CDs, os três essenciais primeiros LPs de João Gilberto, incluindo o marco “Chega de Saudade” de 50 anos atrás. Eu que guardo os LPs, mas não tenho aparelho e agulha para tocá-lo ( já tentei comprar mas só achei preços extorsivos), me sinto frustrado em não poder mais ouvi-los. Além do público em geral, há uma quantidade imensa de pessoas das novas gerações, incluindo músicos e cantores que precisam/merecem conhecer bem estes trabalhos. E no mercado até agora nada. Há um impasse relativo a remasterização que não seria boa, que se arrasta por anos! Alguém tem que ceder. O grande e maior prejuízo é não podermos ouvir estes trabalhos. Existem vários LPs lançados em anos em torno de “Chega de Saudade” que foram remasterizados e estão no mercado de CDs. Será que os artistas e/ou herdeiros que assim o permitiram foram irresponsáveis com as obras e com o público? Por que estas coisas só acontecem com João?

Até mesmo a Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova, vendida em bancas de jornais, primorosamente organizada por Ruy Castro, tem uma fortíssima lacuna. Adivinhem...Não tem volume dedicado a João Gilberto. Ele que regravou tantas músicas depois dos três primeiros álbuns em litígio, não poderia, como todos os outros detentores de direitos, ter negociado sua inclusão? Haja idiossincrasias! E a mitologia cresce e aí somos até tentados a pensar que há uma escassez induzida da “mercadoria” para elevação de preços quando ofertada nestes shows para happy few em Teatros Municipais, com preços bem salgados e grande disputa por ingressos. Há até quem vá, imagino, não porque goste muito de João, mas mais para mostrar aos outros um troféu: um tíquete.

Cancelar shows por estar gripado e/ou sem boa voz, eu entendo, mas por que num show tão anunciado e bem agendado no Teatro Municipal de São Paulo em comemoração aos 50 anos da Bossa Nova, ninguém planejou que ele tinha de jantar antes: alegou que atrasou uma hora e meia porque estava com muita fome e precisou jantar....

Nos jornais surgem notícias como “proprietária quer despejar João Gilberto”. Mas será que não pode haver uma conversa séria e franca? Parece que os alugueis são pagos religiosamente, mora outra pessoa lá, ele em outro apartamento do prédio. Mas mesmo assim por que recusar-se a uma conversa como qualquer mortal? Aliás, com tanto sucesso no Brasil e no exterior, mesmo gravando relativamente pouco para meu gosto e desejo, haveria necessidade de alugar apartamento neste estágio da vida? Por que não comprar?

João tem amigos realmente, mesmo que sejam poucos? Ou tem só idólatras, súditos e caudatários da mitologia toda que se criou em torno dele? Amigos de verdade existem para sacudir a gente quando precisamos. Há um forte limite entre o respeito ao outro e a indiferença. Temo que em relação a João e suas manias que o acabam limitando, haja mais o segundo e nefasto componente. Conheço pessoas cultas e sensíveis, amantes da MPB, que não podem nem ouvir falar em João. Está longe de ser meu caso. Mas este fenômeno de desagrado tem as suas razões.

Glauber Rocha não era perfeccionista como João é até hoje. Do ponto de vista técnico, muitos trabalhos exponenciais dele e antológicos são inferiores, creio que até mesmo em relação a filmes da Vera Cruz (e nada aqui contra ela; sua experiência de estúdios deveria ser retomada mas esta é outra história). Palmas para Glauber por ter incorporado certa precariedade em sua estética revolucionária. Mas temo que Paulo Francis de tantos equívocos no fim da vida, tenha razão ao escrever que Glauber fora abandonado pelos amigos nos últimos anos, quando estava bastante irascível e que muitos tenham ido chorar lágrimas de crocodilo em seu enterro. Eu ouvi, não li nem me contaram, o psicanalista Eduardo Mascarenhas dizendo que quando Glauber procurou a psicanálise já era tarde.....Cadê os amigos neste período de formação de um processo de autodestruição?

João Gilberto ainda tem muita vida pela frente (basta olharmos Manoel de Oliveira e sua criatividade incessante). Que os verdadeiros amigos procurem dialogar mais com ele e se necessário sacudi-lo, “desrespeitá-lo”. Caso contrário, temo até que aconteça com ele o que vimos com o escritor João Antônio, uma grande mácula na classe de escritores brasileiros: morreu sozinho em seu apartamento e só descobriram que tinha algo de errado uma semana depois (!), arrombando a porta e encontrando seu corpo inerte em decomposição. A deusa Fortuna tem seus caprichos. Assim como ela dá, ela retira. Se não fosse assim não seria Fortuna. Isto aprendi com Marilena Chauí num seminário organizado por Adauto Novaes. João está abusando da deusa Fortuna. Só grandes amigos podem alertá-lo. Missão para Caetano Veloso, Nelson Motta, Miúcha, Bebel Gilberto? Quem mais se habilita? O melhor presente que as pessoas mais próximas podem dar a ele, nestes 80 anos, como parece não ter acontecido com Glauber, é enxergar muito mais a pessoa João do que o mito João Gilberto.

Sinto que tenha entrado demais na vida de João do que pretenderia. Mas não consegui. São fantasmas que me assaltam como grande admirador dele. E ao contrário dele que pensa que “a pressa é inimiga da perfeição”, meu lema é “A perfeição é inimiga da realização”. Se fosse perfeccionista este blog, que modéstia à parte, tem os seus méritos e leitores, não existiria, bem como meus inúmeros “fantasmas de gaveta” que vou aprimorar (mas não a ponto de inviabilizá-los) e publicar (estou encalacrado num problema de herança e um capital para investimento nesta área não chega, mas vai chegar...), já tendo dado algumas amostras aqui no Blog, o que há alguns posts não faço, mas vou retomar esta iniciativa.

14.2 “Baita Negão”, “Virgínia Rosa e Comandante Monsueto” – SESCSP- WWW.sescsp.org.br

Já tinha ouvido falar muito bem de Virgínia Rosa, mas são tantas as cantoras por conhecer, que não a conhecia. Sabendo deste projeto com músicas de Monsueto (grande compositor, não exaltado como mereceria) não resisti e encomendei este tributo do SESCSP, com preço bem abaixo da média em termos de CD.

A voz doce e quente de Vírgínia, dentre outras qualidades, ampliando o repertório de clássicos mais conhecidos (já gravados por Nina Becker, Marisa Monte, Alaíde Costa, Milton Nascimento, Caetano Veloso etc.), chegando a músicas que nunca tinha ouvido antes fazem deste CD um encantamento a que não se resiste a fazer várias audições e depois ainda retomar. Para cada faixa há um produtor musical diferente o que traz mais arrojo ao trabalho. Numa delas Martinho da Vila não resiste e comparece para homenagear o mestre junto com Virgínia (em “Eu Quero Essa Mulher Assim Mesmo”)

Monsueto Menezes foi ator, pintor e um baita compositor. Uma música sua para um poema de Thiago de Mello, inspirada no poema “Madrugada Camponesa”, com mudanças mútuas, que é “Faz Escuro Mas eu Canto” é sublime, como outras de letras mais simples, mas de notável poética de grande observador do cotidiano das pessoas simples que deve ter conhecido na Favela do Pinto e outras experiências.

Monsueto é uma das mais puras expressões de um dos clássicos instantâneos de Caetano&Gil, já cantado por tantos ( de Ivan Lins a João Gilberto- quando este quer, grava novas grandes composições, além de repetir/ retrabalhar os fetiches amuletos-, começando pelos próprios Caetano /Gil em “Tropicália 2” ) que é “Desde que o Samba é Samba”: “ a lágrima clara sobre a pele escura”. Em algumas músicas há misturas de alegria, humor e dor, outras dor simplesmente ( como “Lamento das Lavadeiras”, “Me Deixe em Paz”, “A Fonte Secou”) .

Atentemos para a poesia simples, mas contundente de Monsueto nesta coleção de versos destacados:

“Samba na balança pra pesar o seu valor/ Samba na balança para o samba ser doutor”; “Desencanada, desenganada, imaginada e abocanhada/ Desajustada, desconfiada, deslocada, adoidada/ Drogada, infeccionada, largada, invocada/ Desengonçada, desarrumada, desleixada, imaculada”/....Eu quero essa mulher assim mesmo”; “Se você não me queria/ Não devia me procurar/ Não devia me iludir/ Nem deixar eu me apaixonar”; “Eu não sou água/Pra me tratares assim/ Só na hora da sede/ É que procuras por mim/ A fonte secou”; “Não vou me preocupar em ver/ Seu caso não é de ver pra crer: tá na cara...”; “Trabalho, um tantão assim/Cansaço, é bastante sim/ A roupa, um montão assim/ Dinheiro, um tiquinho assim”; “Grande vulto da nação não nasceu na cidade não/ Nasceu nos cafundó do Judas bem lá dentro do sertão”; “Eu dei à saudade apenas pousada/ Ela pensou que fosse moradia/ Ah, coitada! ficou tão desapontada/ Clareou dia, foi despejada”; “O deus da chuva faz chover quando quer/ O deus do vento faz ventar quando quer/ Eu caí nos braços de Morfeu/ E ela se entregou a Lúcifer”; “O nosso amor não fecha pra balanço/ Não fecha pra descanso/ Não respeita feriado/ O nosso amor é um nó molhado”; “Quem sofre fica acordado/ defendendo o coração/ Madrugada da esperança/ Já estou vendo uma criança/ Trazendo a aurora na mão”; “Mas o francês tem de aprender meu samba/ Ô, de qualquer maneira/ Porque não posso transferir para Montmartre/ Minha querida Mangueira”; “Se não tem papel pintado/ Com o retrato do Cabral/ O nosso amor acaba mal”; Maria Baiana/ E quebra o coco de cócoras/ E rala o coco de cócoras/ E acende o fogo de cócoras/ E faz cocada de cócoras”; “Governo é bom/ Prefeito é bom/ Preço do feijão tá tudo “bão”/ Eu não sou delator, não quero confusão/ Eu não quero encrencas com o Cosme e Damião” ; “Vocês querem saber/ O que é ziriguidum/ Ziriguidum/ É coisa assim/ Que só se faz/ Com pandeiro e tamborim”.

“Baita Negão” é uma baita produção com uma baita cantora, sobre um baita compositor, com baitas parceiros, baitas arranjos. Enfim um baita CD. Se você o encomendar ou achar numa loja e comprar, vai fazer uma baita aquisição para baitas audições.

14.3 “Piano & Voz”- Cesar Camargo Mariano e Pedro Mariano ( Trama)

Fica-se procurando por jovens grandes cantores na MPB, eles estão já algum tempo na cara da gente e não percebemos. Nunca tinha prestado muita atenção em Pedro Mariano. Comprei “Intuição” (Trama), considerei os arranjos muito bons mas a bateria, principalmente, sufoca a voz de Pedro para melhor a avaliarmos, perceber suas qualidades e singularidades. Quando se solta mais como em “20 anos Blues” soa luminoso.

Adoro a formação piano e voz que já nos deu grandes obras-primas da MPB como “Voz e Suor” com Nana Caymmi e Cesar Camargo Mariano (1983- EMI-Odeon) e “Piano e Voz”- André Mehmari e Ná Ozzetti (MCD). Quando vi este trabalho conjunto de pai e filho nesta formação na Travessa do CCBB-RJ comprei imediatamente e tive uma grande surpresa, ficando quase que envergonhado de minha ignorância até então: como canta bem Pedro Mariano, agora com sua voz em destaque com a competência e sensibilidade para envolver as canções de César que já conhecia! E agora temos um repertório de clássicos (como “Se Eu Quiser Falar Com Deus”, aqui sublime mesmo já tendo ouvido Elis Regina e o próprio compositor Gilberto Gil a interpretarem divinamente) e ótimas de Jair de Oliveira& César Camargo. Talvez as interpretações de “Intuição” tenham também mais força do que suponho, mas estão um tanto eclipsadas pela quase que onipresença dos arranjos. Questão de ouvir mais e ainda procurar por outros trabalhos de Pedro Mariano.

Há quem se refira a nepotismo neste duo. Se existir, que abençoado “nepotismo”! De “Caso Sério” de Rita Lee/Roberto de Carvalho, por exemplo, já nos exaurimos de tanto ouvir. Com Pedro Mariano ganha um gosto não suspeitado antes (uma certa sobriedade em meio à picardia), como Ná Ozzetti faz em seu belíssimo tributo a Rita Lee em “LoveLee Rita”, com canções dela desde os Mutantes, mais um imenso CD pouco comentado ( Não vou cansar de ressaltar isso em “Um Tanto de MPB”).

Aqui, uma ideia do repertório e de uma poética básica, que contém Tom Jobim, Noel Rosa/Vadico, Djavan, Abel Silva/Ivan Lins, Lulu Santos etc.

“Não sei se o acaso quis brincar/ Ou foi a vida que escolheu/ Por ironia fez cruzar/ O meu caminho com o seu”; “Mas o teu amor me cura/ De uma loucura qualquer/ É encostar no teu peito/ E se isto for um defeito, por mim tudo bem”; “Vamos seguir/ Reinventar o espaço/ Juntos manter o passo/ Não ter cansaço/ Não crer no fim”; “Eu fico pensando em nós dois/ Cada um na sua/ Perdidos na cidade nua/ Empapuçados de amor”; “Eu poso pros fotógrafos, e distribuo autógrafos/ A todas as pequenas lá na praia de manhã/ Um argentino disse, me vendo em Copacabana:/ ‘No hay fuerza sobre-humana que detenga este Tarzan”; “Não é nenhuma análise/ É só um apelo de quem viveu de perto a dor/ A gente sofre, a gente explica/ Mas não resolve, só complica”; “Na minha opinião/ Isto é dupla traição/ Se você não sabe pedir perdão/ Volta que eu quero morrer de alegria/ Depois agradecer”; “Quando existe alguém que tem saudade de outro alguém/ E esse outro alguém não entender/ Deixe esse novo amor chegar/ Mesmo que depois seja imprescindível chorar”;”Pode apostar, amor esperto/ É par com par/ Que se embaralha pra dar certo/ Amor assim bom de se jogar/ Não pode empatar”; Seu eu quiser falar com Deus/ Tenho que aceitar a dor/ Tenho que comer o pão/ Que o diabo amassou/ Tenho que virar um cão/ Tenho que lamber o chão/ Dos palácios, dos castelos/ Suntuosos do meu sonho/ Tenho que me ver tristonho/ Tenho que me achar medonho/ E apesar de um mal tamanho/ Alegrar meu coração”.

Tendo um contato tardio com este belíssimo trabalho, lembro-me que estou em falta com outros filhos/filhas de artistas grandiosos, que não vou citar aqui por certo pudor de minha ignorância e preconceito. Mas claro que de Moreno Veloso, sendo filho de quem é, eu corri atrás. Vi um show fantástico dele como mestre de cerimônias de uma homenagem a Assis Valente no Sesc-Copacabana, além de já ter ouvido muitas belas composições suas.Mas preciso e quero conhecer mais seus trabalhos.

Muito intrigante esta questão do DNA musical transmitido. Muitas vezes “filho de peixe, peixinho é”. Não incorram em erros meus: corram para comprar, pelo menos, por enquanto, este duo fascinante e emocionante entre pai e filho. É uma homenagem nada paternalista que podemos fazer à memória da mãe e ao talento dos dois.

Ps Quem quiser ouvir um trabalho solo de Cesar Camargo Mariano, com algumas participações especiais, procure conhecer o arrojado e pujante “Mitos” (Sony Music/Compact Disc)

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Nelson Rodrigues de Souza