sábado, 28 de fevereiro de 2009

Poema Erótico do Cinéfilo


O Amor em Fuga de Truffaut.
O Amor à Morte de Resnais.
O Amor Bruxo de Saura.
O Amor à Tarde de Rohmer.
O Amor Custa Caro dos Coen.
O Amor é Mais Frio Que a Morte de Fasssbinder.

Um Amor Tão Frágil de Goretta.
Um Amor Diferente de Adlon.
Um Amor de Swann de Schlöndorff.


Tabu de Murnau!
Fantasia de Disney!
Possessão de Zulavsky!
Zero de Conduta de Vigo!
A Causa Secreta de Bianchi!
Jogo de Emoções de Mamet!
Ondas do Destino de Von Trier!
A Lira do Delírio de Lima Júnior!
Gritos e Sussurros de Bergman!
Carne Trêmula de Almodóvar!
Intimidade de Chéreau!
Shortbus de Cameron Mitchell!
Desejo, Perigo de Lee!
Sob o Domínio do Medo de Peckimpah!
Corpos Ardentes de Kasdan!
O Gosto da Cereja de Kiarostami!
Quanto Mais Quente Melhor de Wilder!
Esse Obscuro Objeto do Desejo de Buñuel!
Na Companhia de Homens de La Bute!
Amor à Flor da Pele de Kar-wai!
Eu Não Quero Dormir Sozinho de Ming-liang!
O Império dos Sentidos de Oshima!
Um Vírus Não Tem Moral de Von Praunhein!
Dois na Cama Numa Noite de Chuva de Wertmuller!
O Medo do Goleiro Diante do Pênalti de Wenders!
O Ataque do Presente Contra o Restante do Tempo de Kluge!

Chuvas de Verão de Cacá?
Noite Vazia de Khouri?
Post-Coitum, Animal Triste de Roüan?
A Grande Ilusão de Renoir?
A Rotina Tem Seu Encanto de Ozu?
Sexo, Mentiras e Vídeo-Tapes de Soderbergh?
Feios, Sujos e Malvados de Scola?
O Homem que Caiu na Terra de Roeg?
E La Nave Va de Fellini?

A Rosa Púrpura do Cairo de Allen?

São mais que filmes que vi,
São filmes que vivi.


Nelson Rodrigues de Souza

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Sortilégios da Memória Contra a Miséria Material e Espiritual


Em 1989, Joãsinho Trinta arrebatou o sambódromo com a originalidade e impacto de seus enredo “"Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia", onde várias facetas da miséria brasileira, com áreas teatralmente coreografadas ( o que hoje ficou mais comum) eram cruamente expostas mas sem prejuízo da alegria inerente ao Carnaval.

“Quem Quem Ser Um Milionário?”, produção anglo-americana de 2008, dirigida por Danny Boyle, tendo como co-diretor Loveleen Tandan, baseado no livro Q&A de
Vikas Swarup, roteirizado por Simon Beaufoy (do sucesso contagiante “Ou Tudo ou Nada”), com trilha sonora arrebatadora de A.R. Rahman (dentre outros elementos fílmicos bastante felizes), é uma experiência incomum no cinema contemporâneo ao mesclar os truques melodramáticos e muita música de Bollywood, a precisão técnica e arte de contar histórias dos melhores exemplares de Hollywood , bem como o espírito do chamado cinema independente que trabalha às vezes com câmeras ágeis, atores muitas vezes pouco ou nada conhecidos, bastante realismo, dentre outros recursos.

O melhor de toda esta experiência, entretanto, é que se ela nos remete ao trabalho antológico de Joãsinho Trinta que não folclorizou o Brasil, roçando suas feridas, mas mantendo a alegria, o mesmo faz Danny Boyle que nos traça um retrato das contradições fortes de uma Índia moderna onde há favelas que se transformaram em prédios comerciais num sinal de pujança econômica e ainda tem arraigados costumes religiosos que criam castas rígidas, onde alguém como o protagonista de 18 anos Jamal Malik (Dev Patel) por ter nascido numa classe bastante inferior, ao ir ganhando sucessivamente um concurso de perguntas e respostas na TV indiana, “Quem Quer Ser um Milionário?”, tem sua idoneidade contestada, pois nas suas condições de origem só um trapaceiro poderia estar na iminência de obter tal deslocamento social e tender a tornar-se um milionário.

Na publicidade e no início do filme têm-se perguntas aparentemente bobas, mas que o roteiro magnífico resolve muito bem. “James Malick está a uma pergunta de conseguir 20 milhões de rúpias: a) ele é um trapaceiro, b) ele é sortudo, c) ele é um gênio?, d) é o destino”. Outra questão também permeia a narrativa em vários planos superpostos com grande habilidade: “O que faz alguém encontrar um amor perdido?: a)dinheiro, b)sorte,c) esperteza, d) destino. Numa montagem ( de Chris Dickens) das mais extraordinárias vistas no cinema em muitos anos, uma fotografia que capta muito bem matizes do esplendor e da miséria convivendo juntos e uma direção não menos que brilhante, além do engenhoso roteiro, com rendimento notável de todos os atores ( não é à toa que o filme ganhou o prêmio da classe dos atores americanos pelo conjunto), “Quem Quer Ser Um Milionário”, aliando as convenções e inverossimilhanças de fábulas, com fortes cenas de tom realista, de forma a beirarem o surreal, um filme que teria seu título original Slumdog Millionaire forte traduzido por “Milionário Favelado” muito mais adequadamente, esbanja sensibilidade e competência narrativa para tratar das questões levantadas.

O fato de Jamal trabalhar servindo chá num call-center em Mumbai, antiga Bombaim (sabendo nós que muitos serviços americanos foram terceirizados para call-centers indianos, a baixo custo, numa destas loucuras do mundo globalizado) é bastante significativo das contradições sociais gritantes desta nova Índia que causa (ou causava?) grande admiração de mentalidades exclusivamente economicistas.

Logo de início já vemos Jamal ser torturado pelo brutamontes Sargento Srinivas( Saurabh Shukla) a serviço do policial inspetor (Irrfan Khan) com a acusação de que é um trapaceiro por ter ganho muito dinheiro no programa de televisão mesmo com sua origem social precária, desconfiados, que ele se comunica com um chip oculto com alguém na platéia, dentre outras suspeitas. Como Jamal resiste em sua inocência mesmo sob tortura, o inspetor o interroga com menos impaciência e aí flashbacks quase que proustianos surgem de forma a contar fatos importantes de sua vida como a fuga de policiais até chegar à escola a tempo de uma significativa lição; a morte da mãe por fanáticos anti-muçulmanos; as armadilhas criadas por um cafetão da miséria de crianças, que dá acolhida a ele, seu irmão Salim, à fixação afetiva de Jamal, Latika e os coloca para mendigarem, Maman (Ankur Vikal ); os sucessivos desaparecimento da amada Latika (Freida Pinto, quando adulta) em regimes infernais de dominação; os truques para ganhar dinheiro como guia improvisado no Taj Mahal; o poder emergente de Javed (Mahesh Manjrekar); o encurralamento cada vez maior do irmão Salim (Madhur Mittal, como adulto) nas malhas da marginalidade, dentre outros dramas pesados.

É destas vivências que Jamal tira as respostas para o diretor do programa de televisão Prem Kumar (Anil Kapoor), acompanhado por uma platéia típica de auditório ávida por emoções baratas e uma multidão de miseráveis pela Índia que projetam seus sonhos impossíveis de ascensão social nele, algo que vemos também no Brasil, de certo modo, com os famigerados reality-shows. É a experiência como gato escaldado que fará Jamal vencer uma situação bastante delicada.

Em seu Blog http://blog.estadao.com.br/blog/zanin/ , sobre Cinema,Cultura& Afins, talvez o mais prodigioso e instigante blog de cinema do país, Luiz Zanin, que é crítico do O Estado de São Paulo, a propósito de “Quem Quer Ser Um Milionário?”, de uma forma muito feliz e oportuna, nos lembra da pedagogia de Paulo Freire, um homem de livros que não acreditava somente na cultura livresca, mas também na força das vivências. Tanto é que era contra uma cartilha de alfabetização única para o país inteiro e sim entusiasta de cartilhas adequadas ao meio social onde as crianças vivem, o que sempre acaba atraindo a desconfiança de mentalidades que se tornaram reacionárias como o Paulo Francis do fim da vida que alegava que Freire queria sim é transmitir ideologias esquerdistas.

Que Freire (assim como acontece com Augusto Boal com seu Teatro do Oprimido) tenha sido muitíssimo mais conhecido no exterior do que no seu próprio país, onde nunca teve um cargo político de peso para transformar em realidade suas idéias, nos dá um quadro eloqüente e sintomático de nossas elites que ainda detém o mando e lucram com o analfabetismo crônico e o analfabetismo funcional, para se perpetuarem no poder.

Um verso maravilhoso de Chico César da belíssima Beradêro, “E a cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire”, nos dá conta das contradições do Brasil, suas forças ocultas de superação de adversidades históricas, de uma forma que lembra também a Índia que o filme nos apresenta, onde Jamal, com sua comovente integridade, está muito mais interessado em descobrir o paradeiro de sua amada Latika e retirá-la do Inferno, do que em vencer o jogo de milhões em está envolvido.

“Quem Quer Ser Um Milionário?” certamente bebeu nas águas de “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles”, outro filme extraordinário. Mas se no início estas aproximações são ressaltadas, no conjunto o filme se descola, mantendo grande originalidade, remetendo-se também ao ritmo narrativo de “Trainspotting-Sem Limites”(1996), um grande filme de Boyle sobre a devastação que o consumo de heroína provoca num grupo de amigos, “sem empregos, sem cartões de crédito, etc” em Edimburgo, Inglaterra. Há neste filme atual também aspectos do não tão bem sucedido “Caiu do Céu”(2004), onde Boyle realiza uma fábula sobre duas crianças que preocupam-se em gastar uma bolada encontrada antes que as notas fiquem obsoletas com a chegada do euro. Mas a presente obra representa o apogeu criativo de Danny Boyle e se Fernando Meirelles contribuiu com algumas centelhas para isto, ponto para os dois diretores.

Os atores que vivem Jamal, Salim e Latika em três fases da vida (infância, adolescência, vida adulta) estão todos particularmente bastante inspirados, transparecendo autenticidade, sendo muito bem dirigidos. O restante do elenco também se mostra impecável. O apresentador de televisão encontra o tom certo para o suspense contínuo com sua voz de comunicador de simpatia dissimulada. Os marginais e policiais brutais não são caricaturas ( Maman numa visão lombrosiana, que é sempre enganosa, passa por um indivíduo afável), imprimindo forte realismo em meio a tantos encantamentos.

“Quem Quer Ser Um Milionário?”, produto bastante feliz da globalização do cinema ( o que em alguns casos resulta em filmes anódinos), falado em inglês e parte em hindi, é uma celebração da arte cinematográfica em todos os seus meios expressivos.É uma festa para os sentidos com muitos elementos para reflexão. É uma lufada de ar puro para a alma, um grande sopro espiritual, uma elegia à vida e ao amor em meio a tantas perversidades e materialismo. Há quem veja no filme sinais fáceis de sintonia com o otimismo da era Obama. Mas há uma diferença fundamental: enquanto Obama é alguém eleito pelo povo que vem da elite americana que pode subverter suas propostas, por mais que se ressalte sua condição de primeiro negro a chegar à Casa Branca, Jamal com sua inquebrantável honestidade de propósitos vem das classes submersas na sociedade indiana por preconceitos sociais atávicos, travestidos de determinismo espiritual kármico.

O filme ganhou 8 Oscars dentre os dez em que concorria: Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado, Edição, Fotografia, Trilha Sonora, Canção Original ("Jai Ho", deliciosamente evocada durante os letreiros finais) e Som. Ganhou 4 Globos de Ouro, nas categorias de Melhor Filme - Drama, Diretor, Roteiro e Trilha Sonora. Ganhou 7 prêmios no BAFTA, nas categorias de Filme, Diretor, Fotografia, Edição, Roteiro Adaptado, Trilha Sonora e Som .Venceu prêmios dos sindicatos americanos de produtores, diretores, montadores, fotografia e atores, além de algumas associações de críticos. Enfim, foi uma avalanche merecida de prêmios. Mesmo assim o filme tem encontrado fortes detratores no Brasil que ou minimizam esta importância toda ou ainda o consideram um péssimo filme. Mesmo com o impulso generoso de respeitar as diferenças há algo mais forte em mim que me faz lamentar este injusto desprezo. O que reforça o teor do post de janeiro “Enfrentando dois fantasmas: o público e a crítica”.

“O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa”. Sejamos por pelo menos duas horas deuses também. E levemos estes reflexos poderosos para nosso cotidiano, para a vida que segue.

Nelson Rodrigues de Souza

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O Inútil Imprescindível- Um Conto Sobre Desejos



O Inútil Imprescindível

Passeando irrequieta por uma passarela do Aterro, atordoada pelo rumor estridente das buzinas e a corrida alucinada dos carros, Sara lembrou-se do desabafo de um professor seu: “Fazer cinema no Brasil é uma arte que é como construir estátuas de ouro”. Sara só se descolou da lembrança dos frustrantes revezes em seu projeto nos últimos dias, quando observou um movimento frenético de corpos na ramagem próxima. Constatando a presença de um dissimulado casal de amantes a tolhida cineasta mergulhou novamente nas suas labirínticas dores, debruçou-se na grade da passarela e deitou os olhos sobre a neurótica paisagem. “A única realidade do cinema brasileiro foi o pornô”- eis mais uma das reminiscências que agora insistiam em aguçar-lhe o espírito. Não poderia imaginar ao iniciar um filme sobre Santos Dumont que logo se veria contaminada pelas angústias que queria retratar.

A tarde já dera o máximo de si naquela sexta-feira e Sara foi afastada do torpor por uma voz inesperada: “Assim você cai lá embaixo!”. Quem a interpelava era um rapaz de olhos ávidos, fisionomia em que predominava um amigável sorriso com os dentes bem alvos e o corpo já de um homem ainda que um ar juvenil denunciasse os reais vinte e um anos que tinha. “Só estava contemplando a movimentação”, observou Sara, envergonhada. Ela devolveu-lhe a ponderação dele alegando que era perigoso ficar por ali naquelas circunstâncias eróticas e como ambos infringiram as normas da boa segurança pessoal só lhes restou se apresentarem e caminharem para um barzinho da cidade, segundo sugestão de Lucas. Sara simpatizou com o estranho, sentiu que ele não lhe inspirava cuidados como certos estranhos suspeitos e ambos trataram logo de quebrar o gelo que se instalara durante os passos iniciais da caminhada.

- Você também me parece bem triste – respondeu Sara, quando Lucas perguntou-lhe se ela estava muito triste com alguma coisa.

Lucas estranhou quando a companhia apresentou-se como uma cineasta. Para ele essa era uma profissão que só se via no cinema. Não poderia imaginar que na heterogênea clientela do Aterro encontraria alguém dessa atividade. O seu trabalho de digitador numa firma o tolhia demais na sua criatividade para imaginar que alguém conseguisse viver criando. Foi com certo espanto e incredulidade que ele a ouviu relatar as vicissitudes que atravancaram o desenvolvimento do seu primeiro longa metragem. Sara estava fazendo um filme sobre Santos Dumont, um terço da obra tinha sido rodada, gastou bem mais do que esperava, o resto do financiamento não veio e os componentes da equipe e atores tinham outros compromissos e se dispersaram.

Sara perguntou-lhe se ele costumava ir ao cinema, se ele iria ver um filme sobre Santos Dumont. Lucas foi sincero: “De vez em quando eu vou ver um filme, mas vou mais no Orly pois lá tem “pegação”... Não sei não se eu iria ver um filme sobre Santos Dumont. Eu tenho vontade é de fazer uma viagem de avião.

Intrigada com a audácia do rapaz Sara quis inteirar-se mais detalhadamente da vida que ele levava:

- Você vai muito a esses lugares?

- Gostar mesmo de ir eu não gosto. Mas com pouco de dinheiro que a gente tem, quando pinta a carência não tem outro jeito.

- Eu sinto que você não está bem, está melancólico.

- É que hoje terminei de vez um namoro que eu tinha. Eu estou pensando até em mudar do apartamento em que nós moramos, mas não sei ainda. Ele quer que eu fique lá como amigo, mas eu não sei não.

A revelação desses outros problemas suscitou no espírito de Sara uma nova curiosidade. Por alguns momentos se esqueceria de seu frustrado projeto.

- Eu tento compreender, ser a mais generosa possível, mas eu não consigo. Como é que rapazes bonitos como você, simpáticos, o corpo bem cuidado, desprezam tantas mulheres que devem se sentir atraídas e vocês mergulham nessas aventuras aqui no Aterro ou em cinemas suspeitos? Convenhamos, não é um desperdício?

- A vida tem muitos mistérios. Eu também não posso entender como é que uma mulher ainda cheia de vida como você pensa em se jogar de uma passarela porque o filme ou sei lá o que não deu certo.

- Eu não sou louca de me jogar lá de cima! – disse Sara irritada. Eu só estava observando os carros. Quem quer se matar vai a outro lugar. Ali é muito baixo.

- Pois a impressão que eu tive é que você ia se jogar.

- Eu estou aborrecida sim, mas não a esse ponto.

- O meu trabalho também está uma droga, mas eu não esquento não. Vou levando. O que eu não dispenso mesmo é transar do jeito que eu gosto. Esse prazer ninguém me tira!

- Você não sente falta de aprender, de freqüentar teatros, cinemas, ler bons livros?

- O Celso andou me carregando para esses lugares. Enquanto ele pagava tudo bem, mas depois que a gente decidiu rachar tudo, o meu dinheiro não dá para essas coisas. Eu não tenho conseguido nem ir a todos os bailes pré-carnavalescos e ensaios de escola de samba que eu quero.

- Para você cultura então é supérflua, não vale a pena investir?

- Eu tenho as minhas prioridades. Tem tanta coisa que eu gostaria de fazer e não posso. Viajar... Que pelo menos eu possa morar, comer e fazer amor que ninguém é de ferro!

- Você não sente certo vazio nestas suas relações? Você não tem vontade de ter um filho? Não me interprete mal. Não é que eu acredite que o sexo só tenha sentido na procriação, mas é que depois de certo tempo de vida em comum com alguém a gente sente falta de uma criança para selar a união. A gente quer ter um filho com a pessoa que ama. Você não se sente frustrado?

Agora foi Lucas quem se irritou. Sentindo-a assustada ele moderou o tom da resposta:

- O dia em que eu tiver muito dinheiro eu vou ter um filho sim. Mas eu tenho de encontrar uma mulher que tenha uma boa cabeça e me aceite como sou!

Envergonhados um com o outro caminharam então em direção ao Amarelinho, calados. O silêncio foi quebrado quando Lucas fez questão de mostrar os michês que faziam ponto na calçada. “Por enquanto eu ainda não preciso dessa vida” – disse ele brincando.

Sara sorriu nervosamente. Lucas fez questão de uma mesa mais ao fundo: “Ali na frente os mendigos não nos deixam em paz”. Quando ele quis conhecer um pouco das atribulações afetivas de Sara, antes que ela respondesse, a conversa foi interrompida por Celso. Sara foi apresentada, pediu-lhes licença por alguns instantes e foi ao toalete feminino. A razão pela qual Celso o procurou tanto pela cidade era por ter visto as malas prontas e queria a todo custo demovê-lo da idéia de sair do apartamento.

- Não vai me dizer que você vai viver em Marechal Hermes com os seus pais? Além das limitações óbvias, você teria o maior problema de condução. Porque não podemos continuar como amigos? Você pode muito bem ficar no apartamento.

Lucas ficou de pensar melhor na proposta. Com a volta de Sara, a pedidos, pois pretendia despedir-se deles, instalou-se à mesa um novo clima. Como a curiosidade de Celso em relação à cultura era maior, a cineasta explicou mais detalhadamente o filme que pretendia fazer:

- A história se passa em julho de 1932, no Guarujá. Santos Dumont recebe notícias do emprego de teco-tecos na Revolução Paulista de 32 e como já estava deprimido desde o retorno da Europa no ano anterior se desespera. Antes do gesto fatal a sua vida passa-lhe pela cabeça como um filme. Aparecem então imagens não cronológicas de sua vida: o primeiro vôo mecânico do mundo devidamente homologado no 14 bis a 23 de outubro de 1906 ( a minha intenção era com efeitos especiais dar a idéia de um aeroplano voando a uma altura entre dois e três metros numa distancia de 60 metros), os inventos que criou anteriormente (em dez anos planejou mais de vinte), as façanhas posteriores ao 14 bis (ele criou um precursor do hidro-avião, foi o primeiro a obter carta de piloto de balão dirigível, monoplano e biplano), a vez em que em 1898 aplicou motor pela primeira vez a um modelo de balão, a viagem que fez com a família para a Europa em 1891, o abalo no sistema nervoso por ter eclodido a primeira guerra, quando o avião começou a ser utilizado como arma, a polêmica com os irmãos Wright, os livros que publicou. Uma das imagens recorrentes seria ele quando garoto, lendo Julio Verne, principalmente “Vinte Mil Léguas Submarinas”.

Sara se empolga. Celso e Lucas imaginam-se diante de uma tela.

- Mas o meu filme se concentraria mesmo é nos últimos momentos. Santos Dumont deliraria e como um personagem do Glauber diria à la Ernesto Sábato: “Eu queria ser um gigante técnico, não um infante ético!”. “Será que a decência e a ciência são demais para uma só pessoa?” A ultima imagem seria Santos Dumont na atualidade diante da Usina Nuclear de Angra dos Reis. Ali ele se despediria de nós.

- Vamos pedir mais uma rodada de cerveja – insistiu Lucas para elevar o astral.

Sara com o copo pressionando fortemente o queixo fez questão de acrescentar que iria terminar esse filme. Lucas ouviu-a sem conseguir disfarçar o enfado, Celso prestou-lhe a maior atenção. Como ela quisesse ouvi-los agora, o novo interlocutor sentiu-se compelido a falar do seu emprego:

- O meu trabalho é mais tranqüilo, mais seguro. As pessoas agora se conscientizaram do valor que tem um bom preparo físico e estão procurando em grande escala a nossa academia. Não tenho do que me queixar não. Meus amores é que são meus problemas – acrescentou rindo, olhando para o companheiro.

Sara inquietou-se com o novo estranho que agora se desvendava para ela. Contemplou-o detalhadamente e embora reconhecesse nele traços mais delicados do que os do colega, o ar de quem foi bem criado, tratado, não poderia conceber tratar-se de mais um homossexual. Convidada a conhecer o apartamento de ambos no Flamengo, ela os acompanhou num misto de curiosidade, receio e fascinação. Prestando mais atenção na compleição física dos rapazes é que ela lembrou-se do quanto estava descuidando do próprio corpo. Ciente de que Celso não fumava, bebia pouco e obsessivamente cuidava de sua comida natural ela descobriu-se envelhecida para os seus parcos trinta anos. Ao chegarem, Lucas, por ter bebido bastante e com sonolência, foi logo dormir. Examinando-a detidamente o belo anfitrião Celso observou:

- Você é uma mulher bonita. Só que está muito maltratada. Precisa se cuidar. Desde o momento que lhe conheci até agora você já fumou vários cigarros!

- Pois vocês dois também não exagerem na ginástica senão vão ficar com bíceps horrorosos de Mister Universo! Aquilo eu já acho ridículo.

- Não se preocupe. Eu não mergulho fundo como você. Eu me interesso por tudo um pouco. Você pode me encontrar fazendo ginástica, dando aula, no cinema, no teatro, lendo (ultimamente eu tenho me interessado pelo espiritualismo). De tudo eu gosto um pouquinho. O que eu não consigo fazer é entregar a vida a uma coisa assim como você. Pra mim a vida está adiante de tudo!

- Eu hoje estou muito cansada. Eu gostei muito de vocês. Meu apartamento em Copacabana está uma zona. A gente discute essas coisas outro dia.

- Por que você não dorme aqui?

Quando Celso dela se aproximou, abraçou e beijou-a dizendo-lhe que ela estava carente demais naquela noite para dormir sozinha, ela experimentou desencontradas emoções. O impulso inicial era desvencilhar-se, mas não resistiu. Sentiu-se forte em tê-lo despertado para o amor. Apenas ousou murmurar “Mas e Lucas?” “Lucas e eu terminamos tudo. Quando eu disse a você que gosto de tudo um pouco eu não estava mentindo! Não se preocupe com Lucas”.

A impulsiva cineasta mergulhou nesse enredo que o destino lhe preparou com a mesma pertinácia habitual. As visitas ao novo cenário foram freqüentes. Por algum tempo tratou de esquecer o filme inacabado e se dedicou aos dois. Um tanto incomodada por estar namorando Celso agora ela procurou tratar o ex-companheiro do amante com mais cuidado e carinho para não tê-lo como desafeto. Lucas ouvia as sugestões que ela lhe dava para que ele redimensionasse a sua vida, as exortações para que ele estudasse, não se conformasse com o emprego que tinha, pois merecia muito mais. Eles muitas vezes lançavam-lhe observações que a desconcertava. Quando discutiram uma peça que acabaram de assistir, “Heda Gabler” de Ibsen, Lucas foi incisivo: “Não vi nada demais. Eu não entendo pra que a gente entrar nessa correria para se arrumar, chegar mais cedo para obter um bom lugar e assistir essa encenação. O que a gente viu no palco eu vejo todo dia lá no trabalho. O fingimento é o mesmo!”

Quando Sara manifestou o seu espanto com a bissexualidade do amigo, em meio a complicadas teorias que os dois amantes procuravam tecer, Lucas exprimiu-se de forma sintética: “Ele é uma pessoa que não vive sem pai e mãe!” Dentre vários temas, Sara criticava o namorado por apaziguar facilmente a consciência e acreditar que a miséria não é conseqüência apenas de mazelas sociais – “Existem razões transcendentais que explicam isso. Um miserável está depurando o seu karma. Se algo mudar na estrutura social esse sofrimento que já ocorreu, que é irremediável como é que se explica? Não é uma questão apenas de luta de classes. A vida não teria sentido sem essas razões”. Lucas por outro lado, saia pela tangente: ”Eu não sou um miserável, mas também não sou lá muito privilegiado. Eu me considero suspeito para opinar...”

Instigada pelos hábitos dos novos amigos, Sara mesmo com todo tédio que os exaustivos exercícios lhe inspiravam acompanhou-os durante algumas horas por dia na academia para combater as gorduras salientes e perseguir o modelo vigente de elegância: quanto mais esguia melhor. Como se sentisse impotente para levar adiante seu projeto cinematográfico e o dinheiro que lhe sobrou ainda lhe permitia alguns meses de aluguel e comida, tratou de não se desesperar e cuidar um pouco mais de si. Precisaria estar em forma quando se envolvesse numa nova peleja com o celulóide ou a câmera digital. Quando mostrou a câmera leve que tinha aos amigos lembrou-se dos filmes de John Cassavetes, de baixo custo, envolvendo familiares, amigos e se não fosse por insistência dos dois que estavam mais curiosos a respeito de cinema, ela não se estenderia no assunto dado que lhe incomodava ainda a recordação dos desapontamentos recentes. Ao vir à tona a questão do erotismo no cinema ela deixou claro que o que mais a repelia nos filmes pornôs que as pessoas viam em casa, além dos feios e grosseiros enquadramentos era a falta de amor. Se o casal realmente representasse estar se amando, se a cópula não fosse tão repugnantemente animal, mecânica, o efeito seria outro. Tais malabarismos só seriam perdoáveis se aparecessem de uma forma crítica em relação à sensaboria das relações do mundo dito real. Mesmo se reprimindo, ela volta e meia se surpreendia falando dos filmes. A tal ponto que Celso chamou-lhe a atenção por ela não reverenciar a beleza das paisagens, como o entardecer na praia, o luar de verão e ser tocada somente pelas imagens “falsas”. Assumindo o fanatismo ela os escandalizou a ponto de dizer que um mar de plástico de Fellini lhe emocionava mais que até mesmo uma tarde de sol e chuva invadida por um arco-íris. Lucas reforçando suas preferências lembrou-lhes que além do mais “a natureza oferece seus espetáculos de graça”.

Ao contemplar os amantes envolvidos em mais uma de suas discussões intermináveis (Sara desprezava os dvds alegando que assistir a um mesmo filme na tela pequena e depois no cinema é como passar da masturbação a uma relação sexual), Lucas abandonou a companhia da televisão e descobriu-se vasculhando a estante de Celso, procurando algo para ler. A vertiginosa profusão de títulos o angustiou: sentia vontade de começar algo que ele não sabia bem o que era e muito menos por onde. O título “Fragmentos de Um Discurso Amoroso” foi decisivo para a sua escolha. Sem deixar espaço para nenhum comentário irônico, iniciou a leitura com ar decidido, disposto a percorrer o itinerário traçado por Roland Barthes até o fim, de qualquer maneira. Orgulhoso, não perguntaria nem pediria nenhuma sugestão aos colegas. Enquanto os outros dois se pulverizavam com suas refregas ele treinaria, indiferente às disputas.

Sara não se conformava com o ecletismo do companheiro. Sentia-se incomodada com sua visão de mundo, com a maneira como acreditava que a otimização do bem estar pessoal físico e psíquico era a ideologia máxima. Quando Celso se valeu até de teorias freudianas como o instinto de morte, o reino de Tânatos, para explicar por que as pessoas, segundo ele, se deixam levar em arriscadas empreitadas alegando exacerbada coragem quando o que existe na realidade é sujeição aos impulsos autodestrutivos, ela reagiu prontamente como se a crítica lhe encaixasse como uma luva. “Eu amo a vida! A questão é que o meu trabalho é a minha vida” – observou enfática. Quando ela revidou que ele roçava apenas a superfície das coisas, não se entregando decisivamente a nada, fazendo das sucessivas atividades uma fonte de auto-engano, ele lembrou-lhe, pedindo-lhe que perdoasse a falta de originalidade, que apenas o tempo poderia responder qual a posição mais defensável.

Ainda que os dois às vezes se excedessem nas críticas lançadas um ao outro, eles sentiam que o relacionamento era profícuo, não viveriam juntos impunemente. Dos homens todos que conheceu nenhum a impregnara com tais carinhos e cuidados ao se amarem. Sem que ela nada pedisse, ele lhe adivinhava os pontos mais sensíveis e transbordava de afeto, longe da postura impositiva, egoísta e apressada de antigos amantes. Daí o tremor que lhe arrepiou o corpo quando Celso deixou de amá-la com o mesmo ardor, um mês depois de terem se descoberto. Os gestos carinhosos e o tacto continuavam os mesmos, mas ela sentia um ar de enfado, um toque quase burocrático a comandar os movimentos por mais generosos que eles se insinuassem. No café da manhã Sara, inebriada de sono, confusa, acreditou ver Celso servir o leite a Lucas com uma gentileza mais calorosa. Para ela os olhos de Lucas cintilavam mais satisfeitos nesse momento e uma irrefreável e dolorosa dúvida martelou-lhe a mente: “Teriam os dois amigos recuperado a atração desvanecida?”. Não foi uma vez apenas que ela sonhou com os dois amigos se amando sem se preocuparem com a sua presença, aguçando mesmo o frêmito ao perceberem-na por perto. Quando voltou de uns desgastantes e irrealizados contactos profissionais e deparou-se com Lucas sorvendo “Narciso e Goldmund”, um dos livros preferidos do amigo, acreditou não ter mais dúvidas. Logo se vexou com suas suspeitas, pois que mal havia que lhe fosse indicado um bom livro? Além do mais, ela e o amante já tinham se referido tanto a este romance de Herman Hesse que poderiam muito bem ter incitado a curiosidade do iniciado das letras. Mesmo assim ao se revirarem no sofá enquanto trocavam as novidades de mais um dia, teve a impressão que Lucas os observava por detrás do volume que disfarçava ler de forma compenetrada. Ao tomarem banho olhou-se detalhadamente no espelho e reconheceu dois ou três fiozinhos brancos nos cabelos e assustou-se. O corpo estava mais delgado, mas estava longe ainda do que desejava: a partir de manhã seguinte intensificaria os exercícios. Quando Lucas trouxe-lhes a toalha que esqueceram, sua impressão foi de que este demorou mais do que deveria na entrega ao amigo. A prodigiosa nudez do amante era um espetáculo que só a ela convinha.

Vendo Lucas quase ao fim do romance, Sara interrogou-lhe sobre o que achara. Ela não conteve o riso sarcástico quando ele lamentou não ter sido uma história de homossexuais como supusera no início, mas depois logo leria “Morte em Veneza” do mesmo autor. Sara esmerou-se em desabrida crueldade para chamar-lhe a atenção de que foi Thomas Mann e não outro quem escreveu este livro. O rapaz sem perder a empáfia respondeu-lhe: “Esses alemães são todos a mesma coisa!”.

Ao pressionar o companheiro, recriminando-o por não se comportar mais como nas primeiras relações ele admitiu que mudara sim:

- Acredite-me Sara, eu ainda gosto muito de você, mas eu sinto a nossa relação incompleta. Você me atrai sexualmente como poucas mulheres que conheci. É uma conjugação de corpo e espírito, uma aura que me fascina. Mas eu sinto falta das relações homossexuais que tinha. Este é um lado meu que eu não posso negligenciar. Eu me sinto mutilado com a exigência velada de fidelidade que você me faz. Você é possessiva até com o seu trabalho. A sua obsessão por um cinema de autor é uma medida boa desse seu zelo!

- Pois então você ainda não esqueceu Lucas! Vamos, admita que você ainda gosta dele. Ele eu sei que continua todo insinuante! - insistiu Sara, disposta a redefinir sua combalida relação.

- Eu não vou desmentir não. É um fato inegável. Mas porque criarmos uma tempestade em copo d’água com isso? É uma coisa tão natural, A atração está no ar. Para que nos castrarmos? Pense bem Sara, não me queira mal por isso!

Será que eu sou alguém tão descartável assim? Quando você se cansa, se enfastia, basta apelar para a sua porção-mulher e pronto? Um novo parceiro é possível... Será que você não entende que essa sua busca é estéril, vazia, inócua, inútil, vã? Sem certo sacrifício você não chegará a lugar nenhum!

O acusado companheiro inquietou-se com a agressividade e cobrança perpetrada por Sara, alterou o tom respeitoso que lhe dedicara até então e a fustigou, nervoso, alterado:

- Cada um tem a meta que lhe apraz. Eu lhe garanto que meus desejos homossexuais são mais consistentes do que os seus filmes. É a vida pulsando! Não é um simulacro de vida!

Sem dar tempo a Celso de se arrepender por ter desprezado os filmes que ela tanto amava, Sara apossou-se de sua bolsa e saiu em disparada atropelando Lucas que examinava os livros na estante.

Agoniados com a ausência prolongada de Sara, os dois amigos após ligarem para os lugares possíveis de acolherem-na, o apartamento dela inclusive, se sentiram na obrigação de procurá-la pela cidade. Chegaram até ao requinte de verificar se a impulsiva cineasta não passeava pela passarela do Aterro do Flamengo. No bar que costumavam freqüentar, também ela não foi encontrada.

Quando Sara voltou à uma hora da manhã, exausta, carregando uma pesada caixa, os dois cavalheiros suspiraram aliviados com a entrada de tão aguardada dama. “Eu preciso conversar com vocês dois. Por favor me ouçam!”. Enquanto desatou os nós das caixas e pediu-lhes que a ajudassem a arrumar os spots de iluminação que tinha emprestado de um colega, para ver se ainda estavam funcionando, iniciou o relato do seu presente estado de ânimo:

- Quando eu os conheci e me dei conta da relação homossexual de vocês o que mais me incomodou foi a descoberta de que homens como vocês pudessem viver dispensando mulheres assim como eu. Eu que já tinha sido humilhada demais na minha investida profissional não poderia permitir que duas criaturas charmosas assim, de gestos delicados, sem o tom pesado habitual dos machões convencionais, fossem deixar-me de lado inapelavelmente. Celso, quando nos tocamos pela primeira vez eu estava precisando muito de carinho, sentia-me frágil. Aos poucos eu fui me envolvendo cada vez mais, mas o que me atraiu em você foi o cuidado a mais, certa benevolência, paciência que nenhum outro homem havia me dado antes. Mas hoje, eu percebo que o que eu amo mesmo é essa parte delicada, é um sentimento ainda frágil, incompleto. Compreenda, eu já estava farta de lidar com aqueles trogloditas machistas. Mas eu tenho a certeza agora que vocês dois juntos são algo muito mais sensato. Eu já estou farta daqueles sacrificantes exercícios físicos. Eu vou levá-los agora no meu ritmo. Lucas, eu acredito que você deve estar também enjoado dessas leituras que se impôs. Vá com menor sede ao pote! É ridícula essa nossa concorrência... Vamos, eu quero ver vocês dois juntos!Vamos! Eu pensei muito antes de voltar aqui!

Mesmo envergonhados, mas comovidos por tê-la de volta sã e salva, não se viam no direito de desapontá-la. Abraçaram-se um tanto tímidos.

- Vamos abracem-se bem forte. Façam de conta que eu não estou aqui. Só vocês dois e uma paixão.

Os dois relutaram, mas depois a obedeceram. Sara continuou dirigindo-os:

- Celso mostre que você pode pelo menos uma vez na vida se entregar totalmente a algo, a alguém. Vai fundo! – insistiu Sara num corrosivo desafio.

Os reconciliados amantes intensificaram os afagos, Sara apossou-se de sua câmera, iluminou-os e iniciou a filmagem, pedindo-lhes que se descontraíssem:

- Não dêem e menor importância à minha presença. Façam o que tem vontade. Eu agora quero apenas os seus sussurros sejam audíveis. Ação!

E filmou-os pacientemente, desde o desnudamento ao muito aliciante balé que se desenvolveu numa frenética coreografia de pernas entrelaçadas, orelhas mordidas, pelos eriçados, beijos generalizados, culminado com o jorro duplo do intempestivo sêmen, como projéteis lançados ao vento inimigo. Sara acometeu-se de tal volúpia que não distinguiu mais que vontade lhe era mais determinada: o desejo de terminar de vez uma relação que lhe acarretava sofrimento ou o desejo de fazer um filme, ainda que curto. Enquanto filmava teve um insight sobre as angústias de Santos Dumont, o que aprimoraria seu filme quando o retomasse. De qualquer modo sacrificara mais uma vez sua vida ao imponderável.

Nelson Rodrigues de Souza

Um filme onde se vende armas como se fossem pães quentinhos


Um filme lançado em 2005, disponível em DVD, muito pouco visto e mal comentado, mesmo sendo extraordinário, é “O Senhor das Armas” de Andrew Niccols. Sua candente atualidade e pertinência vêm do fato de tratar com argúcia e técnica impecável de um problema que pelo andar da carruagem ainda vai nos afetar por um bom tempo: a fabricação de armas em massa e seus corolários. Há hoje uma demora inquietante para se resolver a situação do Iraque e os conflitos do Afeganistão aumentam, com forte presença americana. Claro que o poder das indústrias de armamentos é um dos fatores fortes que está por trás destes dilemas. Como complemento a este estado das coisas, temos o ciclópico cinismo dos novos velhos tempos, conforme matéria de O Globo de 16 de fevereiro de 2009, onde se lê: “EUA trocam cidadania por serviço militar- Carentes de recrutas para as guerras no Iraque e Afeganistão, os EUA vão oferecer cidadania americana a emigrantes qualificados, com pelo menos dois anos de residência, que se alistem nas forças armadas.”

"O Senhor das Armas" é simplesmente um dos melhores filmes americanos de teor fortemente político a chegar às telas brasileiras nos últimos anos. Com direção do roteirista Niccols, escritor do também excepcional "O Show de Truman" de Peter Weir, temos agora um ácido retrato do mundo contemporâneo, em sua falta de ética globalizada, onde os imperativos do lucro a qualquer preço fazem do personagem pragmático e hiper-individualista, de discreto e venenoso charme, Yuri Orlov (Nicolas Cage, num dos seus melhores trabalhos, um dos produtores do filme), um traficante internacional de armas que aproveita as guerras e tentativas de revoluções mundo afora (abortadas ou não), para vender seus produtos letais, com a voracidade dos abutres por carne putrefata.

Narrado pelo protagonista, criando um distanciamento da história que a torna uma fábula cruel, com cortante ironia, o filme avança de forma bastante dinâmica, esculpindo um cipoal de perversidades e corrupções, onde um gesto grandioso só se manifesta num ato de desespero suicida.

Yuri vem de uma família imigrante falsamente judia e ao presenciar um atentado da máfia tem um insight: porque não ganhar a vida com armas? Seu irmão é envolvido num negócio inescrupuloso, mas as seqüelas do poder econômico recém-adquirido e seus vícios, com o sentimento de onipotência, o transformam num cocainômano, tirando-o temporariamente do circuito da contravenção. Solitário, com uma mulher que ignora seus negócios nocivos, Yuri tentará manter-se no ofício, ainda que um agente da Interpol, Jack (Ethan Hawke) esteja sempre em seu encalço, procurando provas concretas dos seus atos ilícitos, paradoxalmente "lícitos", com uma boa dose de esperteza e maquiagens, como passaportes falsos, etc.

"O Show de Truman" exigia certo grau maior de "suspensão da descrença" para ser fruído como uma fábula inquietante que era, premonitória da abulia coletiva, do fascínio do mundo virtual que tenta tomar o lugar da vida real e da proliferação dos famigerados reality-shows que infestam as televisões hoje em dia, onde se vive não a própria vida, mas a vida dos outros. "O Senhor das Armas" não pode ser visto também, sob uma ótica estritamente realista. O que emerge desta operação, a que o espectador é convidado, é um dos mais atordoantes painéis sobre a desvalorização das vidas humanas, a banalização da violência como uma força motriz das sociedades, com um sarcasmo que nos lembra o fundamental "A Laranja Mecânica" de Stanley Kubrick.

Tudo no filme é brilhante: roteiro; diálogos, pensatas retóricas e falaciosas do narrador protagonista, fotografia, direção, montagem, interpretações e o que é melhor, com meticulosa transparência, sem hermetismos, mas sempre contundente. "O Jardineiro Fiel" de Fernando Meirelles tem quase todos estes predicados também (aliás são filmes que tematicamente se complementam e ajudam a entender melhor os flagelos por que passa o continente africano e outras plagas), mas tem certas lacunas no roteiro, pois chega a ser inviável e tortuoso tentar entender todos os meandros da teia de corrupção e andanças, com a qual se defronta o diplomata vivido por Ralph Fiennes. É um problema que também afeta “Syriana- A Industria do Petróleo” de Stephen Gaghan com George Clooney como um agente veterano da CIA que aos poucos vai descobrindo com sua vida está contaminada pelas engrenagens suspeitas da organização. Já no filme de Niccols tudo é cristalino, mas sem nenhum didatismo chato.

Depois do controvertido, mas excepcional "Tiros em Columbine" de Michael Moore, não se imaginava que o cinema fosse abordar tão cedo e tão bem, a questão das armas com tanta virulência e de forma oportuna, ainda que de um novo ângulo. É o que acontece aqui com o “O Senhor das Armas”. O protagonista é de um cinismo atroz. Sua logística assassina de executivo de "coração de uva-passa" (valendo-me aqui de uma expressão de Luis Fernando Veríssimo) é avassaladora. Claro que não nos convence, se formos lúcidos e não oportunistas. Mas em outros setores que não os dos armamentos, como as indústrias farmacêuticas, o mundo das finanças ( e num grau menor, a política de juros dos bancos brasileiros e do Banco Central), despejo de empregados e cortes de direitos pelas empresas, ampliando as legiões de excluídos, etc., grassa no fundo o mesmo espírito de razão cínica, tema bastante estudado pelo psicanalista Jurandir Freire Costa, o que Yuri leva ao paroxismo. O filme neste sentido transcende o universo da produção de armas, com correlações que se pode fazer com aspectos da política brasileira, americana e mundial.

O filme, entretanto, não é cínico como seu personagem e trabalha um tema de alto teor político com muita arte. Há cenas belíssimas. Da abertura desconcertante que acompanha a trajetória de uma bala ao desmantelamento surreal de um avião por famélicos africanos, dentre outras, temos uma estética apuradíssima, que confirma Niccol não apenas como um grande roteirista, mas um grande diretor.

A história foi baseada em traficantes de armas reais e faz referências aos tráficos oficiais de artefatos mortíferos (travestidos de comércios legítimos), que no fundo são mais perigosos que as atividades clandestinas de Yuri.

Há quem acredite que o filme lance tanto argumentos a favor do desarmamento que foi discutido no Brasil, como para o armamento de pessoas comuns. Não concordo. Ao mostrar a devastação provocada pelo mundo das armas, o filme deixa inequivocamente um grande alerta: armas existem para serem usadas e em mãos inábeis ou corrompidas (a maioria), fatalmente ampliam o terror e as misérias que se apossam de nossa civilização combalida, nestes tempos pós-utópicos, que estão muito, mas muito longe, do que pregavam aqueles que sonhavam com um Era de Aquarius. Hoje o lema tem sido: "crie desamor e faça a guerra...". Alguma solução realmente inovadora e eficaz à vista?

Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Duelos na Sala dos Espelhos- Um Conto


Duelos na Sala dos Espelhos

Quando a psicóloga Janaína, na minha presença, explicou as regras do jogo para aqueles quatro candidatos ao emprego, finalistas de um longo processo, dois deles empataram na intensidade do brilho do olhar, mas as razões para essa luminosidade seriam explicadas mais tarde, motivações estas que se revelariam totalmente divergentes.

A proposta era clara e simples:

“Vocês serão divididos em dois grupos: um representará uma tribo de índios, o outro uma expedição civilizadora. A terra em que os índios moram tem petróleo. Os brancos estão interessados em explorá-lo e em troca oferecem todos os benefícios para os índios: uma nova terra (que seria uma reserva indígena), roupas, alimentação, escolas, serviços de saúde, habitação moderna, etc. Quem quer ser branco? Quem quer ser índio? Se houver incompatibilidade a gente resolve por sorteio.”

O número 2.014 resolveu sem pestanejar ser branco ao mesmo tempo em que o 2.017 escolheu ser índio, sem titubeios também. Os demais é que se mostraram um tanto indecisos. Depois de certa pausa, refletiram e ambos desejavam ser brancos, problema este que teve de ser resolvido por sorteio. Desta forma o 2.016 foi auxiliar o 2.014 e o 2015 o 2.017. Pares contra ímpares! (Que curiosa coincidência!).

Sem mais perda de tempo, os adversários iniciaram a contenda:

2.014 – Nós estamos aqui em missão de paz! Nossos técnicos descobriram que a terra de vocês tem petróleo, uma coisa que para vocês não tem o menor valor, mas pra gente é de maior importância.

2.016 – Vejam, nós lhes damos o que temos de melhor em troca das suas terras. Nova terra, escola, hospital, casas com luz e água encanada...

2.014 – Calma, não se afobe que você assusta os índios. Assustados eles ficam perigosos.

2.017 – Bem doutores... (É assim que devemos chamar-lhes, não?) Nós não estamos nem um pouco interessado nas suas benesses.

2.014 – Para um índio, o senhor fala palavras bonitas demais.

2.017 – Como eu ia dizendo, nós não estamos interessados nas suas bugigangas. Nós fazemos tudo o que precisamos. Entregar as nossas terras em troca de escola, hospital, etc. Escola para que? Para vocês nos impingirem os seus deuses, as suas línguas, os seus vícios? Hospital para que? Para nos curarmos das doenças que vocês nos trazem? O melhor é mantê-los a distância!.... E afinal trabalharíamos em quê, longe de nossas terras, da nossa fauna e flora?

2.014 – Vocês ganhariam uma reserva controlada por nós. Não permitiríamos que ninguém invadisse os seus novos domínios. Vocês poderiam viver da exploração de madeira, por exemplo.

2.017 – E quando ela acabasse nos tornaríamos mendigos... Não... Não, muito obrigado...

2.014 – O senhor dramatiza demais as coisas. Parece-me parente espiritual de uns brancos nossos conhecidos como sindicalistas.

2.017 – Pelo menos há sinal de gente decente dentre os civilizados.

2.014 – O que os senhores entendem de decência, civilização, moral? São capazes de costumes bárbaros: comer carne humana, flagelo com ossos, sacrifícios de crianças! São capazes até, de encerrar uma adolescente por anos a fio num recinto em breu completo!

2.016 – Sem falar na poligamia e relações incestuosas.

2.017 – Refutar as suas blasfêmias é tão fácil que eu deixo esta tarefa para o meu colega, se ele quiser responder, naturalmente. Caso contrário, eu mesmo rebato com duas ou três penadas.

2.015 – Senhores, deixemos essas discussões antropológicas de lado e tratemos de negócios, que é o que nos prontificamos a fazer. Qual é a extensão da terra que nos oferece em troca? É tão grande como a que temos?

2.014 – Hã...Sim!A terra seria um pouquinho menor, mas isso será compensado com as comodidades todas que nós poderemos lhe dar: DVDs, celulares, geladeira, fogões a gás, etc.

2.015 – Nós estaríamos interessados também em automóveis, tratores...

2.014 – Claro, claro, o que vocês pedirem.

O candidato 2.017 olhou para o seu companheiro “de tribo” com tal veemência que os olhos ameaçavam saltar das órbitas. Era como se um ritual antropofágico viesse a ter inicio.

2.017 – Olha aqui camarada, não sei a quem de nossa tribo você puxou... Temo que o seu contato com o mundo dito civilizado já tenha sido precoce! Você quer ver a nossa tribo dizimada pela diplomacia desses cavalheiros peçonhentos?

2.014 – Para um índio, o senhor utiliza palavras um tanto exóticas: camarada... não sei não...

2.016 – Será que já existe índio socialista?

2.014 – Eu não queria dizer isso diretamente, mas o meu colega não é muito sutil.

2.017 – Que alívio! Quer dizer que os brancos não são todos como vocês, predatórios desse jeito... Quando essa outra raça de vocês vier falar com a gente, quem sabe poderemos discutir melhor essa coisa do petróleo...

2.014 – O senhor não está sendo nada democrático! O outro representante da sua tribo está interessado em um acordo conosco. Logo não há porque a sua palavra tenha de ser a última!

2.015 – Vocês têm de entender, o companheiro aqui é muito apegado às nossas tradições. Ele tem dificuldade para compreender os avanços de uma sociedade moderna como a de vocês e necessidade que nós temos também de mudar.

2.014 – Então seria interessante que o senhor expusesse as nossas ofertas ao povo todo de sua tribo e ressaltasse, é claro, as limitações intelectuais desse outro representante. O seu povo certamente se arrependeria do imerecido poder que lhe concedeu. Uma pessoa retrógrada assim não pode conduzir o destino de um povo!

2.017 – Se minha tribo optasse em sã consciência pelas suas quinquilharias, eu iria em busca de outras em que pudesse viver... Nem que fosse uma inimiga nossa secular!

2.014 – O senhor fugiria é com medo do escalpelamento!

2.017 – Olha aqui meu senhor, pensando bem não há esse perigo. Esse meu colega aqui é um possuído por maus espíritos. Minha tribo não se deixaria enganar!

2.014 – Eu acredito que quem deve estar possuído por maus espíritos seja o senhor. Só aqui, já somos maioria (três contra um!).

2.017 – Olha, nós já conhecemos a sua proposta. Tem alguma coisa a mais a declarar? Nós enviaremos essa proposta à nossa tribo e em reunião extraordinária decidiremos. Mas eu tenho certeza que será um não categórico! Os senhores não levarão uma negativa de imediato, simplesmente, para mostrar-lhes que não sou autoritário!

2.014 – Eu não teria essa certeza! Eu acharia interessante o senhor já ir procurando um novo trabalho... Ser líder não é uma profissão adequada para o senhor. O senhor se encurrala todo em um labirinto ético. Não é uma política viável!

2.016 – Temos uma proposta adicional: os senhores terão passagens grátis nesses “pássaros de fogo” para poderem conhecer os seus colegas americanos, por exemplo.

2.017 – Não, muito obrigado. O nosso mundo é muito pequeno, mas nele cabem todos os nossos sonhos.

Janaína nem se perturbou. Anotou as notas baixas para todos os candidatos, ainda que tenha dado uma nota um pouquinho maior ao 2.014. As suas severas ressalvas ao candidato foram as mesmas que eu fiz: tem um pavio curto demais, entraria em atrito fácil com os nossos clientes. O 2.016 foi deveras afoito. Já o 2.015 foi imprudente e precipitado demais: assim como entregou de bandeja a terra dos índios, ele poderia dilapidar o patrimônio de nossa empresa!

Eu não resisti e contrariando os procedimentos usuais do nosso trabalho, fui conversar com o rapaz de número 2.017 para saber por que é que depois de uma semana de uma batelada de testes psicotécnicos dos mais variados tipos, ele jogou fora com a sua indisciplina, uma oportunidade tão cobiçada. Sua resposta foi lacônica e, como era de se esperar, irreverente: “Eu ainda não estou morrendo de fome”. Eu teimoso, ainda insisti: “O senhor não tem mulher, filhos para sustentar?”. “Graças a Deus, não!” – respondeu.

A vontade que eu tenho agora é de lhe dar dez com louvor e ao mesmo tempo pedir à colega Janaína que reexamine a sua avaliação. “Não façamos mais testes por algum tempo! Este rapaz tem muita garra! Seria ótimo que ele aplicasse toda a sua energia em benefício de nossa organização! Eu seria seu Pigmalião e ele minha Galatéia. Eu o faria desistir de bolinar essa medíocre flautinha e vir então tocar todos os instrumentos de nossa orquestra! Inclusive os meus....” Mas este último detalhe eu não diria a Janaína...

No mínimo seria um ruído novo na nossa persistente monotonia.


Nelson Rodrigues de Souza

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Quando uma simples charge sugere um longo filme de terror


Charge do genial Angeli, publicada na Folha de São Paulo na seção de Opinião, segunda-feira de Carnaval, 23 de fevereiro de 2009.

Nelson Rodrigues de Souza

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Passeios da Alma- Um poema em homenagem ao legado de Harvey Milk


Passeios da Alma


Por mais que surjam leis mais avançadas
(Quando? Quando? Quando?)
E ainda: tem leis que pegam, leis que não pegam...),
Quem me devolverá os beijos
Que não dei nas ruas,
Nos bares, nos botecos, nos ônibus,
Nos metrôs, nas escolas, nas universidades?

Até quando desrespeitarão nossas diversidades?
Até quando nos cobrirão de adversidades?
Até quando choverá tantas maldades?
Quando andaremos livres nas cidades?
E mesmo que agora nada disso aconteça,
Há algo que dói para sempre,
Que nos faz sofrer coração e cabeça:
Os abraços fortes que não demos nas praças públicas,
E outras manifestações abertas de carinho,
Que poderiam ter cintilado no nosso caminho.

Imagine você meu amor,
Agarradinho a mim no Trem da Central,
Sem temores, nem sensações pudicas,
Tudo certo, nada imoral, tudo legal,
Sem violências físicas ou morais
Apenas exigência de direitos iguais.

E os poemas que não li em voz alta,
Pra você amor, no Largo da Carioca
Com a mesma ênfase dos pastores solitários.
Será que essa gente não se toca
Que são legítimos nossos itinerários,
Que em qualquer lugar nos assalta
A vontade de mostrar a todos
Que nos amamos, que somos flor do lodo
Que grassa por aí, feito de imensa miséria,
Ele sim pornográfico, uma coisa abjeta,
Essa desgraça nada secreta
Que salta aos nossos olhos e nos cega
De tanto horror e estupor!


E eles preocupados se você pega
Minha mão e a beija toda,
Mostra seu chamego, nosso amor,
Que não anda em linha reta,
Mas em curvas doces, sinuosas,
Que se tornaram malditas, perigosas
Sem nenhuma razão verdadeira de ser,
A não ser, o medo de viver, viver,
Que certas pessoas querem passar às outras,
Por não suportarem em si mesmas,
A solidão e o desamor que estão por detrás
De toda essa fachada que esconde infelicidades,
Perigosamente camufladas,
Que independe de qualquer idade,
Mas que lateja fundo, fundo
Diante do inexplicável, do invejável
Daquilo que é desviante neste mundo.
Um universo cheio de regras que aprisionam
Justamente as coisas que mais nos emocionam,
Tão genuíno amor, tão ousado desejo.

Amor, vamos fazer um teste!
Aqui e agora, aqui e agora!
Mesmo que haja quem conteste,
Mesmo que nos atirem pedras
E nos façam ir embora,
Humilhados e ofendidos,
Feridos como bandidos,
Como num tiroteio que medra.

Vamos dar um beijo público farto e demorado,
Uns vão gritar viados! Viados!...
Mas quero sentir o gostinho
De tornar visível todo nosso carinho,
Nosso jeitinho especial de viver,
De querer, querer, querer, querer.
Ah...o quereres....o quereres
Dos mais diversos seres!

Mas amor e se nos lincharem?
Será que são capazes?
Será que serão tão capatazes?
Será que os incomodaremos tanto?
Será que nos cobriremos de prantos?
Será que causaremos um enorme espanto?

Amor, fiquemos tranqüilos e suaves
Deixemos os cães passarem, passarem...
Vamos flanar com a leveza das aves,
Que pululam aqui e ali nos jardins.
Elevemos o nosso amor indestrutível,
Que deve ser infenso a todas essas crueldades,
Algo maior, sublime, incrível,
Que se torne alheio às essas atrocidades.

Mas confesso, tenho compreensível nostalgia,
De mais momentos felizes com você,
De devaneios, toques e alegrias,
Que não vivemos em público porque tememos
A reação dessa gente louca,
Que tem medo de beijo na boca
De dois homens apaixonados, enternecidos,
Mesmo, já bastante vividos, crescidos
Pra saber o que desejam, o que almejam.

Dê-me um beijinho rápido, rápido,
E vamos emocionados pelas ruas,
Com nossas almas livres, nuas,
Algo que não vêem porque não querem,
Uma coisa que pra eles é doído,
Mas que pra nós é fundamental, essencial,
Uma questão de vida e morte,
Azar deles, nossa sorte!


Nelson Rodrigues de Souza

Sementes do orgulho lançadas na floresta dos preconceitos


Em 27 de junho de 1969 frequentadores do Bar Stonewall em Nova York, no Greenwich Village, cansados de tantas humilhações com as batidas e ofensas usuais de policiais, reagiram veementemente, principalmente os travestis e passaram a enfrentar de cara a polícia. Durante três dias (até dia 29 que ficou conhecido como “Dia do Orgulho Gay”) houve confrontos mais generalizados com a polícia e direitos foram enfim conquistados, dentre eles, poder freqüentar bares e boates sem ser incomodado. Até a Associação Mundial de Psiquiatria (WPA) se reuniu e chegaram à conclusão (óbvia...) que homossexualidade não é uma doença, o que foi encampado pela Organização Mundial de Saúde.

“Milk- A Voz da Igualdade” (EUA/ 2008) de Gus Van Sant, cineasta assumidamente gay começa um pouco depois deste acontecimento histórico. Harvey Milk (Sean Penn) vivia em Nova York e trabalhava na área financeira. Em 1970 quando faz 40 anos, sente que tinha pouco do que se orgulhar da vida que viveu até então. No encontro com Scott (James Franco) acaba tendo a centelha de abandonar tudo e ir para São Francisco, onde pretende montar uma loja de materiais fotográficos e revelações.

“Milk”, o filme, começa com imagens documentais em preto e branco de gays “pegos em flagrante” numa boate sendo presos e algemados. É neste contexto que Harvey Milk, hostilizado por parte da vizinhança, passa a sentir que no bairro Castro onde se estabeleceu há a necessidade de sair do casulo e se envolver em lutas políticas, ainda mais quando tem ciência de que o senador John Briggs e a cantora religiosa Anita Bryant querem aprovar a proposição 6 que tem por objetivo impedir que o pessoal GLBT dê aulas, punindo também quem os apoiasse.

Com o trabalho do auxiliar direto Clive Jones (Emilie Hirsch, de “Na Natureza Selvagem) e depois de Anne (Alison Pill), lésbica politizada, após a saída de Scott, Milk vai costurando mais ainda sua candidatura ao cargo de Supervisor de São Francisco (algo análogo ao que é um vereador no Brasil). Para isto sente necessidade de ampliar os fundamentos de sua base eleitoral e passa a conquistar também heterossexuais para sua campanha. Consegue até o apoio de Jimmy Carter contra a proposição 6, sendo que esta também contava com a posição contrária do conservador Ronald Reagan.

Um novo namorado de Milk, Jack (Diego Luna), de temperamento instável, passa a lidar mal com o ativismo político do parceiro. Milk é eleito, a proposta é derrotada, mas mesmo num clima de festa Jack se isola. Gus Van Sant não faz uma hagiografia de Milk, pois além de mostrá-lo fazendo concessões políticas, pedindo um outing às pessoas que ele mesmo antes não teve coragem de fazer, o mostra de certa forma tão absorvido pela militância que descuida de sua vida amorosa, com desfecho trágico que dado o seu empenho com as causas políticas o impede até mesmo de chorar as lágrimas que o parceiro merecia. Além do mais, há alguns chavões em seus discursos políticos, mas não há político que se eleja sem um mínimo de pragmatismo e Milk sabe disso. Tanto é que uma das suas primeiras medidas é cortar a barba e bigode que lhe davam um ar hippie para se transformar numa “pessoa respeitável”, rosto limpo, usando terno.

De início Milk tenta compor politicamente com o Supervisor Dan White (Josh Brolin), casado, pai de filhos, defensor das tradições da família, mas que carrega em si, provavelmente, uma homossexualidade recalcada. Conforme já anunciado no início do filme tanto Milk como o prefeito de São Francisco George Moscone são assassinados e Dan é o agente desta tragédia que conforme os letreiros finais teve punição pífia.

“Milk”, o filme, logo de início nos mostra o protagonista como narrador de sua vida, sendo sua fala gravada para depois de sua morte, pois tem a premonição de que será morto, ficando somente 11 meses no cargo de Supervisor. Assim fica fortalecida a noção de que muito do que se conquistou depois em direitos para os homossexuais tem como semente o trabalho de Harvey Milk. Para o desfecho, o filme reserva uma de suas cenas mais tocantes, o que não se revelará aqui. Prestem atenção que nela Gus Van Sant faz uma aparição tal como Hitchcock em seus filmes, mas de forte teor simbólico e não como uma simples assinatura autoral.

Em 2008 aprovou-se a Proposição 8 que baniu a união civil de homossexuais da outrora liberal Califórnia, neste aspecto. Um retrocesso que necessita de pessoas de fibra como Harvey Milk como reação. Seu exemplo está dado. Terá seguidores?


Para quem só admira os trabalhos mais experimentais de Gus Van Sant, como “Elefante”, “Last Days” e “Paranoid Park”, todos eles olhares incomuns para seres marginalizados como Harvey Milk, o filme em questão pode decepcionar ainda que aqui e ali se encontre os toques mais evidentes do cineasta. Por exemplo, tem-se mudança de velocidade das cenas, uma delicada tessitura de imagens que nos faz confundir às vezes o ficcional do documental (imagens de “The Times of Harvey Milk”-1984, documentário premiado com o Oscar, de Rob Epstein, são utilizadas de forma belíssima e oportuna), com transições sutis de um trabalho de montagem, lento ou acelerado, que é sempre original e ressalta a dramaticidade do que é desejado.


Se lembrarmos, entretanto, que Gus Van Sant já assinou trabalhos como “Um Sonho Sem Limites”( irresistível em seu humor negro) e “Gênio Indomável” não é de forma alguma de se estranhar que o cineasta faça um filme, ao seu modo, mais relativa e convencionalmente formatado. Mas com toda elaboração formal mais simples que pode desapontar os fãs mais radicais, o que ressalta mesmo de “Milk”- o filme, é a grande vontade de trazer para o século XXI, num mundo tão distópico, a força da luta de Harvey Milk para sair da mediocridade de sua vida e emergir como uma grande personalidade batalhadora pelos direitos humanos mais básicos que ainda são negados em vários cantos do mundo. Van Sant passou a ter mais consciência de sua homossexualidade, saindo finalmente do armário, através das lutas de Milk. Durante anos pensou neste projeto e quando encontrou um roteiro à altura, o realizou. Pode-se apontar lacunas aqui e ali ( personagens que mereciam ser melhor desenvolvidos como o de Diego Luna e o de Josh Brolin, espantosamente indicado ao Oscar de Melhor Coadjuvante, quando está realmente muito bem é em “Onde os Fracos Não Tem Vez”) mas no conjunto “Milk” é um filme admirável que tinha que ser feito e o foi com bastante talento e integridade.

De Sean Penn, o que dizer? Simplesmente que ele como um dos maiores atores do nosso tempo está perfeito e muito à vontade no papel de Milk, camaleônico como é. Ele capta a delicadeza, os trejeitos e a firmeza obstinada de caráter, de metas e métodos do personagem. O duelo público verbal entre Milk e o senador é fantástico. Há cenas amorosas homoeróticas sem pudor, mas não no número que gays fanáticos talvez desejem, mas o suficiente para caracterizar a humanidade deste personagem. Tão igual aos outros por mais que seja tão diferente.

“Milk”, o filme, concorre a 8 Oscars, dentre eles: filme, diretor e ator. Que o preconceito tolo com o que se convencionou chamar de filmes do Oscar ( algo cada vez mais embaçado), não impeça ninguém de usufruir do prazer que é assistir este filme, que se não chega a ser essencial é mais do que necessário e urgente, num mundo de tantas pasmaceiras e conformismos.

No mundo GLBT brasileiro que acompanho através da imprensa e de um grupo Yahoo de discussões há uma pulverização muito grande de esforços, com lutas intestinas e desentendimentos mútuos, onde se critica até o fato de militantes gays ganharem dinheiro do Estado para suas militâncias. Há até quem critique a volumosa Parada Gay de São Paulo como promíscua e/ou manipulada, havendo até um carro dissidente que alega ter sofrido discriminação em 2008. Um espírito mais gregário como o de Harvey Milk está nos fazendo muita falta. Disperso e até certo ponto beligerante, o pessoal GLBT só tem a perder. O Rio de Janeiro, uma cidade visitada por GLBTs do mundo todo, até hoje não conseguiu eleger sequer um vereador gay. De certo modo o Rio de Janeiro, em alguns aspectos, está mais atrasado que São Francisco nos anos 70 pós Harvey Milk. Enquanto isso proliferam os assassinatos e agressões de gays no país e na cidade, ainda que leis de ordem municipal anti-homofobia tenham sido aprovadas e de difícil aplicação conforme a região em que se está. Experimentem vocês que forem gays, dar um bom beijo na boca do namorado num vagão cheio de um trem da Central do Brasil ou na muvuca do Largo da Carioca...Mas isto daria um “outro filme”...
Ps 27 de fevereiro de 2009
"Milk-A Voz da Igualdade" ganhou Oscar de melhor ator para Seann Penn e de roteiro original. Este último apesar de arestas comentadas é merecido. Seann Penn está extraordinário e merecia também o Oscar. Mas Mickey Rourke em "O Lutador" está também extraordinário. São duas formas diferentes de atuar. A de Seann Penn é mais camaleônica. Ele construiu um personagem bastante diferente de si. Já Mickey tem angústias com ponto de contacto com seu personagem. Isto não quer dizer que seu trabalho não tenha bastante elaboração e sensibilidade para atingir a maior intensidade e peculiaridades das dores existenciais do lutador fracassado. Lembremos que Darlene Glória na época em que atuava em "Toda Nudez Será Castigada" de Arnaldo Jabor vivia problemas pessoais intensos, os quais trouxe para seu personagem Geni. Isto não impede que tenha tido uma das interpretações mais viscerais e antológicas do cinema. O mais justo seria um Oscar ex-aequo para Seann e Mickey.
Nelson

Nelson Rodrigues de Souza

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Insustentável Leveza do Consumidor- Um conto. Um filme?


No início dos anos 80 fiz no Parque Laje, um curso de dramaturgia com João das Neves ( de “O Último Carro”, de muito sucesso de público e crítica) e outro em paralelo com Alberto Salvá ( de “Um Homem Sem Importância”, uma obra-prima do Cinema Brasileiro pouco ou quase nada comentada). Apesar dos estilos de aula diversos os dois confluíam para uma mesma técnica. Sugeriam aos alunos que antes escrevessem um conto para depois transformarem em uma peça ou roteiro. Cheguei a escrever dois textos: ironicamente João gostou do meu roteiro (“Só falta filmar”) e Alberto se comoveu muito com minha peça. Sentiu-se como o pai retratado ali e me disse que se ela fosse montada na Europa teriam uma boa idéia do que estava acontecendo no Brasil naquela época. Já João considerou minha peça apenas um happening. Não viu ali maiores qualidades. Já Alberto, acredito eu, não esperava que eu desenvolvesse todo um argumento dado, pois havia sugerido que cada um fizesse apenas uma parte. Talvez venha daí seu silêncio. Não apontou nenhum defeito nem qualidade no texto. Apenas calou-se. O final do filme que ele sugeriu eu abandonei e criei outro, mas o argumento realmente é dele e, se não em engano, tinha sido transformado em um episódio da série de televisão “Carga Pesada”. Um dia se filmarem o roteiro, certamente constará: argumento de Alberto Salvá.

Saí destes cursos embatucado e encucado. Por que vou esperar a sorte de ter minhas peças encenadas e roteiros filmados se posso escrever contos que já são obras acabadas? Assim depois uma temporada curta no curso de Português-Literatura na UERJ à noite, conforme já comentei em outro post, passei a ler contos desesperadamente, eu que já era fã do gênero. O conto me pareceu o gênero literário mais próximo do cinema. Já o romance, principalmente os mais caudalosos, se aproximam mais do cinema quando temos empreitadas como a de Rainer Werner Fassbinder como “Berlim Alexanderplatz”, adaptação em série para televisão, depois exibida nos cinemas, do famoso romance de Alfred Döblin, com mais de 12 de horas de duração. Isto não impede que tenhamos adaptações extraordinárias de romances para filmes bem mais curtos do que o de Fassbinder. Exemplo: “A Insustentável Leveza do Ser” de Philip Kaufman, que captou cinematograficamente a essência do romance de Milan Kundera, que é o que importa. Caso contrário vamos ficar eternamente lamentado, de forma elitista, que o filme é bom, mas o romance é muito melhor...


O conto a seguir foi escrito nos anos 80, mas foi devidamente atualizado para os dias hoje, acredito eu, sem prejuízo de sua pertinência. Na forma que adquiriu não está de forma alguma datado. Tirem suas próprias conclusões, como de habito.
Nelson



A Insustentável Leveza do Consumidor

Passei por aquele armazém de secos & molhados e olhei com desdém para o português que estava plantado no balcão, boquiaberto, inconformado com a escassez de fregueses. Também... Quem mandou não se adaptar aos novos tempos e continuar naquele exíguo espaço, abarrotado de prateleiras mesquinhas, onde para obtermos o que queremos, corremos o risco de derrubar incontáveis latinhas, empilhadas segundo a lógica de um castelo de cartas?

Cheguei na praça desejada que comportava uma Babel de mambembes comerciantes, esses mascates anacrônicos que teimam em expor suas bugigangas, algumas pirateadas e as rudimentares especiarias. Não perdi tempo neste sol escaldante para contemplar-lhes as prendas precárias e dirigi-me o mais depressa possível a esse supermercado supersimpático que há alguns meses faz a delicia dos moradores do bairro. Enxuguei o suor da testa e passei a usufruir as benesses de seu ar refrigerado regenerador.

Quem diria que por detrás desses edifícios já um tanto caducos, quase que num subterrâneo, estaria um templo de tal envergadura, aonde se pode comprar de tudo sem maiores atropelos e a preços bem mais razoáveis? De posse do carrinho iniciei o passeio pela seção de legumes e frutas, pretendendo dar-lhe prioridade sobre as demais. Não é que eu quisesse entrar numa onda de naturalista obcecado como tantos, mas simplesmente queria organizar dietas mais equilibradas, para ter o colesterol, os triglicerídeos e a glicose em níveis saudáveis.

Entrei na fila de carnes, frios e queijos, mas minha nascente irritação com a demora, não passou dos limites. Foi só o tempo de acompanhar aquele rock manero que tocava nos auto-falantes e fazia zunir os ouvidos dos freqüentadores, indistintamente, até mesmo dos caretas mais refratários ao gênero.Consegui carnes, enfim, para toda semana, mas magras, cortadas já para bifes e que deveriam ser preparadas numa grelha, sem gordura! Escolhi frangos em cortes e alguns poucos peixes, pois não é qualquer um que me agrada. Fiquei assustado com a idéia de que estes frangos tivessem muitos hormônios cancerígenos, mas o que se há de fazer? Não posso ficar paranóico.

Quando encerrei a lista dos produtos de limpeza, cuidando para que em todos os rótulos constasse a qualificação de biodegradável tive um contratempo, mas de somenos importância: ninguém ali sabia o que era rodo e em que lugar estava! Tentei explicar a um funcionário que era uma espécie de vassoura de água, mas não adiantou. Uma dona de casa, solícita, veio então em meu auxilio e localizou um exemplar junto aos baldes, pazinhas e piaçavas. Estava na cara! Não sei como fui tão lesado. Mas o funcionário tinha de saber do que se tratava. Deu-me vontade de fazer uma reclamação, mas desisti. Não ia me aborrecer no meu passeio e prossegui com a minha odisséia doméstica.

Estacionando em frente às bebidas lembrei com nostalgia dos tempos em que havia etiquetas de preços e sentia-me compelido a trocá-las e “fazer um ganho” faturando um Passaport a preço de banana, por exemplo. Afinal eles não acrescentam algo mais nos preços a pretexto de cobrir a expectativa de roubos que têm? Este meu gesto não seria já esperado? Mas minha má intenção sempre se diluía neste ponto mesmo. Eu nunca tive coragem de estragar o passeio com o suspense de um possível flagra humilhante.

Já estava quase chegando a um dos inúmeros caixas quando me lembrei que havia esquecido tanto a bolacha champagne (e sem ela eu ficaria sem o meu saboroso pavê que sei fazer como ninguém!) bem como o meu shampoo predileto com cheiro de frutas para cabelos oleosos. Lá fui eu de novo, com o carrinho entulhado de mercadorias, ansioso por corrigir meus deslizes.

Entrei, enfim, numa fila de caixa (como tinha gente neste supermercado!) e me aborreci um pouco com a demora. Ora porque justamente na fila que escolhi é que deveria aparecer um individuo todo complicado disposto a discutir uma possível incorreção no cômputo do troco e no cálculo do que comprou? Será que não confia na máquina registradora com suas leituras eletrônicas dos códigos? Para aperfeiçoar o sistema e corrigir essa injustiça comigo, deveriam fazer uma fila enorme única e um dos caixas que primeiro se desembaraçasse de um freguês receberia o outro que estivesse na “pole position”, algo que muitos bancos já estão fazendo há algum tempo. Será que aplicar esta logística aqui é tão difícil assim?

Quando estava na eminência de chegar a minha vez, eu como de hábito (claro, não era a primeira vez...) sutilmente saí da fila, fiz o gesto de quem esquece alguma coisa importante, fui sorrateiro ao fundo do “parque”, abandonei o carrinho cheio num canto sem que nenhum par de olhos me visse, tão interessados estavam todos em suas compras e dirigi-me de mãos abanando, conforme cheguei, a uma saída lateral.

Fritando esses peixes da baía que me deram, num óleo que resiste há semanas, com um foguinho amigo, aqui debaixo de uma passarela do Aterro do Flamengo, junto aos meus inefáveis companheiros, eu não dou pelota para o barulho ensurdecedor dos carros que cruzam alucinados a pista acima. Somos um povo realmente mais resistente ao ruído... Mas será que já secou a roupa nova que lavei na fonte, presente de um senhor distinto ao qual socorri logo ali num acidente sem maiores conseqüências? Amanhã deve fazer um lindo dia de sol e quero passear bem jeitosinho naquele “parque”. Cristo expulsou os vendilhões do templo, mas isso foi a dois mil e nove anos atrás! Agora são outros quinhentos... ou tostões.. ou nada?

Nelson Rodrigues de Souza








terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A violência nossa, ainda que recôndita, cães de palha que somos


Eu fui uma criança pacífica. Sempre envolvido com história em quadrinhos, livros didáticos (e mais tarde romances, contos e novelas), além da programação da televisão e o cinema. Nunca fui uma criança briguenta, violenta. Era de índole tranqüila e conciliadora, de modo geral. Isto não me impediu que em briga com meu irmão mais próximo chegasse um dia a morder a mão dele. Mas este rompante não era difícil de explicar.

Eu era aquele tipo de criança que tendia a viver isolada, voltada para os estudos. Chegava ao requinte de subir num pé de goiaba diariamente, contar em voz alta um seriado de super-heróis que imaginava e terminava todo dia com um gancho forte, o qual seria resolvido no dia seguinte. Com as demais crianças fazia algumas incursões ao largo de um córrego da região e ia com elas com um estilingue caçar passarinhos em meio a trilhas de bambuzais. Gostava desta aventura, mas atirava para errar. Não tinha coragem de matar um passarinho sequer. Jogar bola até que eu tentava, mas era um perna de pau. Decididamente esportes não era o meu forte.

Como o mundo das crianças não tem nada de inocente (quem duvida assista “Cria Cuervos” de Carlos Saura) a minha homossexualidade, mesmo que eu não fosse aquela criança tida como “pintosa”, era facilmente percebida pelas outras crianças e como eu era um aluno, modéstia à parte, muito inteligente e cheguei a ganhar até um prêmio como melhor aluno do curso primário, eu despertava ódio feroz em certos garotos que não me deixavam em paz.

Suportei os xingamentos de três deles na vizinhança por um longo tempo. Um dia, veio-me uma força que não sabia que tinha. Eram todos mais ou menos da minha idade e eu que não sabia nem o que era dar uma porrada, não suportando mais tanto achincalhe, peguei um deles pelas mãos, usei os pés dele como uma arma e bati nos outros dois, girando meu improvisado porrete. Enfim, dois deles receberam uma surra com as pernas de um dos companheiros, todos ficaram completamente assustados com minha reação e saíram então em debandada, sendo que nunca mais me incomodaram, nem ousaram se vingar.

De onde veio esta força, esta agressividade toda que não sabia que tinha?Como a adrenalina subiu tanto? Até hoje sou bastante controlado no que diz respeito a reações físicas, procurando resolver minhas pendengas pela força das palavras. Nisto sou forte mesmo. Sou de escorpião e minha linguagem é cortante. Já enfrentei meu pai com as palavras, de uma forma que meus irmãos mais velhos jamais ousaram. Cheguei a pensar que teria de sair imediatamente de casa, o que aconteceu um pouco mais tarde de uma forma menos conflituosa, mas esta não é a história que me importa aqui agora.

No meu trabalho o pessoal sabia que quando aprontavam alguma coisa, viria nem que fosse no dia seguinte, uma resposta contundente. Eles já preparavam os ouvidos. Mas no que diz respeito a embates físicos, o que aconteceu entre mim e as três crianças foi muito marcante e inusitado.

Sempre fui superdotado para Matemática, Letras e História. Para as Ciências não. Nesta última área aprendi o que fui obrigado a estudar, penando com os laboratórios e oficinas como se fosse um desastrado Woody Allen em suas comédias. Por isso sempre fui um Engenheiro atípico, voltado para áreas mais conceituais e matemáticas.

Quando assisti no final da adolescência “Sob o Domínio do Medo” (EUA/1971) de Sam Peckinpah “a Gestalt se fechou”. Eu saí do cinema, sem nenhum exagero, completamente sem rumo, “não sabia o que fazer do resto da minha vida”. Minha identificação com o matemático vivido por Dustin Hoffman foi total, visceral e bastante perturbadora.


David Summers (Dustin Hoffman) é um pacato matemático que se isola num sítio no interior da Inglaterra com sua mulher Amy (Susan George) para realizar seus estudos. Há pessoas que passam a trabalhar numa obra em sua garagem. Amy, entediada com o casamento acaba se envolvendo com os operários e é estuprada por um deles. Sendo a casa cercada e David envolvido num jogo de bastante intimidação e medo, ele apela para todos os recursos possíveis para defender a si e à esposa, numa orgia de violência, insuspeitada até então. A meia hora final é uma das mais marcantes da História do Cinema pela violência que o matemático consegue extrair de si, como se ela estivesse apenas adormecida, latente e precisasse de uma causa “nobre” para eclodir.

O grande mérito do filme é que se ele é inequivocamente violentíssimo, não há nenhuma gratuidade. É uma obra que a rigor sintoniza com as teorias freudianas de Id, Ego e Superego, sendo o primeiro as forças desconhecidas e impossíveis de dominar num certo estado, “um reservatório pulsional desorganizado”, sede de “paixões indomadas”, sede da “pulsão de vida e de morte”, numa visão mais simplificada, sem as contribuições que vieram de outros psicanalistas como Lacan e Melanie Klein, por exemplo. Mas com certeza é uma visão do ser humano que contrasta frontalmente com a do “homem bom por natureza” de Rousseau. Não é á toa que Freud afirma que sem repressão não há indivíduo, vida ou civilização e aqui temos uma verdade humana profunda e não uma teoria caudatária de totalitarismos. O antológico personagem Alex de “A Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick é Id em estado puro, sem nenhuma noção de Ego e Superego.

Vendo “Sob o Domínio do Medo” eu entendi de onde tirara a força que me fez enfrentar na infância aqueles garotos com tanta agressividade. Vi outros filmes de Peckinpah depois, como “Meu Ódio Será Tua Herança” em que as crianças brincando com formigas e escorpiões no início já dão o tom do que virá depois. Os banhos de sangue em câmera lenta do chamado “poeta da violência” são aqui mais fortes, mas “Sob o Domínio do Medo” permanece como uma das experiências cinematográficas formadoras. Se ainda tinha algum vestígio de ingenuidade, perdi isto para sempre depois de assisti-lo. Quando vi a versão extraordinária de Roman Polanski para “Macbeth” pouco tempo depois, aí já fiquei totalmente consciente das trevas inconscientes que trazemos dentro de nós.

Eu que me considero uma pessoa pacífica até hoje, entendo e não tenho o horror que a protagonista de “A Inglesa e o Duque” de Eric Rohmer tem em relação à Revolução Francesa. Claro que os descaminhos desta me incomodam bastante. Não tenho nenhuma simpatia pelo período de Terror instaurado por Robespierre, com a revolução comendo os seus próprios filhos, como tantas outras, mas não consigo lamentar os acontecimentos mais do que necessários que levaram à queda da Bastilha, pois nunca consegui aceitar a máxima cristã relativa a oferecer a outra face quando se apanha. Mas acredito que esta já é outra história. Fiquemos com o impacto de “Cães de Palha”, título original de “Sob o Domínio do Medo” que se apóia numa parábola poética de Lao Tse:

O universo não tem preferências
Todas as coisas lhes são iguais.
O céu e a terra não são humanos
Não tem qualquer piedade.
O sábio não tem predileções,
É impiedoso ao tratar as pessoas como cães de palha
que serão destruídos no sacrifício.
O sábio não tem predileções como os homens conhecem.

O universo é como o fole de uma forja,
que embora vazio fornece força.
Inesgotável.
Esvazia-se sem exaurir-se
Quanto mais trabalha, mais alento produz.

Muitas palavras se esgotam sem cessar
E conduzem inevitavelmente ao silêncio.
Quando mais falamos no Universo
Menos o compreendemos, o Tao.
O melhor é escutá-lo no silêncio.

O céu e a terra são imperecíveis
Se são imperecíveis é porque não dão vida a si mesmos.
E assim sendo, têm longa duração.
Por isso o sábio coloca-se em último lugar
e chega na frente de todos.
Quando esquece suas finalidades egoístas
Conquista a perfeição que nunca buscou
...
do Tao Te King.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Cacos do Muro Ainda Caindo Sobre Nós



Quando o muro de Berlim caiu em novembro de 1989, propagou-se pelo mundo todo o marketing da vitória do capitalismo contra o comunismo. Era o símbolo de uma era tal em que apareceu Francis Fukuyama para escrever “O Fim da História” e ganhar polpudas quantias pelo mundo afora dando palestras como se fosse o novo messias de um novo tempo, enterrando de vez qualquer tentativa de se construir sociedades em bases mais socialistas, mesmo que não fossem comunistas.

Quem já tivesse estudado um mínimo de História já sabia que esta foi, é e sempre será dinâmica com vários fatores econômicos, históricos, sociais, psicológicos,etc, em ação que a impulsionam muitas vezes para o inesperado, a surpresa ou até a catástrofe que se esperava como é o caso da vigente crise aguda da economia mundial.

O mundo precisou que uma professora francesa de Letras se dedicasse ao estudo das armadilhas da economia contemporânea para que se tivesse a real dimensão do que estávamos vivendo, sem perda de força literária: “O Horror Econômico”, Viviane Forrester, Edusp, 1997. Não que outros já não tivessem se insurgido contra as idéias precárias de Fukuyama. Mas a força do pequeno livro de Viviane é extraordinária. Ela nos relata de forma inigualável a dor da humilhação por se estar desempregado num mundo de capitais, empresas e empregos voláteis. Carlos Heitor Cony comenta com justeza no prefácio que este “admirável mundo novo” que Viviane desconstruía tem um quê de nazismo ao disseminar a lei do darwinismo social inveterado ou como diria Machado de Assis, o império do “ao vencedor as batatas”.

Dos filmes mais recentes, “A Questão Humana” (França/2007) de Nicolas Klotz foi aquele mais incisivo na abordagem do que estamos comentando, pois aproximou as técnicas de Recursos Humanos,onde se joga da forma mais leviana e pragmática possível com as emoções e as vidas das pessoas, de meios empregados pelo nazismo, com admiráveis interpretações de Mathieu Amalric, o psicólogo e Michel Lonsdale, um chefe que passa a ter atitudes estranhas e tem de ser investigado, algo que tem pontos de contacto com o que vemos, mas sem a mesma profundidade, em “Conduta de Risco”(EUA/2007) de Tony Gilroy, com George Clooney e Tom Wilkinson, também brilhantes.

Pouco depois da queda do muro o cineasta Volker Schlöndorff ( de “O Tambor”) declarou que se Rainer Werner Fassbinder fosse vivo já teria com certeza feito um filme sobre esta nova Alemanha, ele que foi aplicado “patologista” das neuroses e corrupções sociais e existenciais alemãs, como em “A Encruzilhada das Bestas Humanas”, “O Desespero de Verônica Voss”, dentre tantas obras-primas.

Mas há um filme de 1991 que com toda clareza esmiuçou e colocou em questão os impasses do mundo que se estava construindo, como se a vergonha estivesse de um lado só e a queda do muro simplesmente, estaria resolvendo os problemas mais sérios. Claro que a queda do muro veio até bem tarde, mas o oportunismo ideológico que se assistiu depois, que está culminando com esta crise atual gravíssima, a qual remete à Grande Depressão de 1929, enfim estas falácias todas,das quais Fukuyama foi um dos arautos, é algo enojante, para dizer o mínimo.

O filme em foco é “Queridas Amigas” de István Szabó de 1991, produção húngara. O filme não tem a força estética e política de “Mephisto” e “Coronel Redl” que formam com Hanussem (este não exibido no Brasil comercialmente) uma trilogia. Mas já estão esboçados em “Queridas Amigas” de uma forma bastante simples e metafórica, muitos dos dilemas que viveríamos depois. Emma e Böbe são duas amigas professoras que viviam de aulas de russo em Budapeste. Com a derrocada do regime comunista esta língua passa a ter pouca importância. Passam então a ter de “estudar” inglês rapidamente à tarde para darem aula na manhã seguinte, missão contaminada pela precariedade. Com salário deixando muito a desejar passam a morar juntas num quarto de um albergue onde vivem várias professoras na mesma situação que elas. Para complementarem o salário Emma passa a fazer faxina em casas de família e Böbe a sair com estrangeiros que encontra nos bares. O desespero toma conta das duas com diferentes efeitos nada confortáveis. Estão dispostas a tudo para não ter de voltar para o interior de onde vieram e passar a ter vidas apagadas e provincianas.

“Queridas Amigas” tem narrativa simples, despojada, sem maiores arroubos formais e uma força estética que se propõe objetiva e tão somente realçar os dramas vividos pelas amigas. Não chega a ser obra-prima como os dois filmes da trilogia exibidos no Brasil em circuitos, mas é um filme muito bom que hoje é um documento histórico extraordinário. Fassbinder não fez um filme sobre sua nova Alemanha, mas Szabó pode fazer um retrato 3x4 da sua Hungria, de forma tal que, ao seu modo, tocava em cordas sensíveis da luta pela sobrevivência que se passou a se travar no mundo todo, onde a troca de mercadorias e capitais é bem vinda, mas a circulação livre de pessoas não.

Sim a vergonha estava dos dois lados. Agora quando financistas americanos não têm nem a coragem moral de colocar os pés no Fórum de Davos, nos damos conta ( tardiamente?) de que os ferimentos aos quais estamos todos sendo submetidos, de uma forma ou de outra, são resultados dos cacos do muro derrubado que ainda caem violentamente sobre nós. Ri melhor quem ri por último. Mas a situação é tão séria que os mais lúcidos neste tempo todo não podem nem se dar a este luxo. Até rir disso tudo doe muito. E como!

Nelson Rodrigues de Souza


Ps.Deu em O Globo de hoje:

Empresário vira assaltante de banco

Endividado e à beira da falência, um empresário do setor de construção praticou quatro assaltos a bancos e, quando tentava seu quinto roubo, foi preso pela polícia da Catalunha. Ele atuava sozinho e causou prejuízo de 80 mil euros.

Esta história não dá um filme? Conforme canta Elis, repercutindo Billy Blanco: “O que dá pra rir dá pra chorar, questão só de peso e medida, problema de hora e lugar, mas tudo são coisas da vida.”

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ganharás o pão com o sangue do teu corpo e dos outros.


Nos últimos anos temos tido uma saudável retomada do tema dos losers da sociedade americana, algo que era muito comum no Cinema Americano dos anos 60/70 e início dos 80, como em “Corrida Contra o Destino” de Richard C. Sarafian”, “Taxi Driver” e Touro Indomável” de Martin Scorsese, “Dias de Paraíso” de Terence Malick, “Esta Mulher é Proibida” e “A Noite dos Desesperados” de Sidney Pollack, “Um Dia de Cão” de Sidney Lumet, dentre outros.

De 1999 para o novo milênio, temos como destaque “Beleza Americana” e “Foi Apenas Um Sonho” de Sam Mendes (este já comentado em post anterior), “Bug” de William Friedkin, “Antes Que o Diabo Saiba que Você Está Morto” de Sidney Lumet, “Menina de Ouro” de Clint Eastwood”, dentre outros.

Esta temática é saudável por que só encarando as fraturas e equívocos de uma sociedade (jogados para debaixo do tapete da História) de frente, sem medo ou pudores, tocando diretamente nas feridas, é que se pode estabelecer novos parâmetros de convivência social que realmente redimensionem esta sociedade e tenha benignos reflexos sobre o mundo.

“O Lutador” (EUA/ 2008) impressionante e virtuosístico (no seu melhor sentido) trabalho de Darren Aronofsky consegue, mesmo dentro desta tradição e do que tem sido retomado, manter uma grande singularidade. É um filme direto, econômico, certeiro, de candente autenticidade.

Aronofsky tem sido um saco de pancadas de certa parcela da crítica nos últimos anos, o que tem sido uma injustiça. “PI” realmente é um filme hermético demais, mas não se pode negar certa originalidade, sendo uma obra no mínimo instigante. “Réquiem Para Um sonho” com sua montagem super-acelerada, com sua estética que lembra a de Danny Boyle em “Trainspotting”, é uma obra brilhante em forma e conteúdo que ressalta o horror da dependência das drogas, com uma participação notável de Ellen Burstyn, alheia ao que acontece com o filho, viciada que está em pílulas para emagrecimento que a faça estar em forma convencional para participar de um programa dos sonhos na televisão americana. Nunca um filme mostrou tão bem que o consumo de drogas é um caso de saúde pública e não de repressão policial. “A Fonte da Vida” foi bastante vaiado no Festival de Veneza de dois anos atrás e recebeu muitas bolinhas pretas e críticas péssimas. Não era para tanto. O filme tem imagens belíssimas, mas se ressente de uma montagem que abarca tempos diversos com rapidez e torna o filme confuso. Para as histórias que pretende contar com suas ressonâncias cruzadas, a obra teria que ser um pouco maior. Sente-se que coisas importantes acabaram ficando na sala de montagem. Aguardemos uma visão do diretor para o Cinema e DVD.

Mickey Rourke, ator ícone de filmes de prestígio como “O Selvagem da Motocicleta”, “O Ano do Dragão”, “Coração Satânico”, aliando forte beleza e sensualidade com talento interpretativo era um dos atores mais promissores dos anos 80, ainda que tenha participado de escorregadelas feias como “Orquídea Selvagem”, um daqueles filmes com “olhar estrangeiro”, feito no Brasil, calcado em fortes estereótipos. Se tivesse prosseguido em sua carreira que de forma alguma, no conjunto, estava em decadência, haveria muito brilho pela frente. Por uma destas razões que só quem as vivencia pode bem explicar o porquê, ele largou tudo e foi ser lutador de boxe. Resultado: sofreu várias operações que extinguiu a beleza que apresentava em seu rosto, com muito botox de efeitos desastrosos e passou a ter um físico discutível porque excessivamente bombado por anabolizantes e outros recursos perigosos.

“O Lutador”, com o encontro de Aronofsky e Mickey foi consagrado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2008. Mas houve a perda inexplicável e não convincente do prêmio de melhor ator para Rourke, o que foi corrigido com a premiação de melhor ator (dramático) no Globo de Ouro, Bafta, associações de críticos e classes dos EUA, despontando como favorito para o Oscar a ser entregue em 22 de fevereiro nesta categoria. Assim temos uma autêntica redenção para a carreira do ator, uma volta por cima extraordinária e de certa forma, feitas as ressalvas já apresentadas, uma “redenção” também para o diretor Aronofsky, agora com um filme bastante prestigiado. Vamos ver como seus detratores “vão engolir” este sucesso....

Há quem considere que em “O Lutador”, Mickey Rourke não representa. Estaria sendo ele mesmo. Esta infâmia já atingiu Marcela Cartaxo em “A Hora da Estrela” de Susana Amaral e o futuro provou como ela é muito boa atriz mesmo, além do papel antológico de Macabéa criado por Clarice Lispector e vivido pela atriz com grande sagacidade na ênfase da ingenuidade personificada (“Ser feliz serve pra quê?”). Rourke traz realmente muito de sua trajetória para o personagem do lutador de telecatch Randy “Carneiro”Robinson, alguém que foi herói dos anos 80 ao vencer uma importante luta e no presente vive de lutas mambembes arranjadas para uma platéia sequiosa de sangue e muita marmelada, num circo macabro, um teatro da crueldade longe da grandeza que Antonin Artaud imaginava. Mas é nas reações do personagem às situações delicadas, dentro e fora do ringue, em que sobrevive miseravelmente numa situação de flagelo humano, que vemos o talento de Rourke, algo que não é novidade, atingindo agora seu apogeu. São comoventes suas tentativas de restabelecimento de relações com a filha lésbica que abandonou (Evan Rachel Wood) e sua dedicação amorosa à stripper também decadente como ele, com um filho para criar ( Marisa Tomei, excelente, justificando sua indicação ao Oscar de atriz coadjuvante).

Randy participa de lutas arranjadas que nem por isto deixam de ser violentíssimas. Numa delas chega a cortar o rosto com um pedaço de gilete escondido no pulso, para ampliar a orgia de sangue a ser derramado no ringue diante da platéia histérica por ver o circo pegar fogo e trazer-lhe emoções baratas e destrutivas num jogo que envolve sadismo e masoquismo. Noutra seqüencia vemos um adversário fake de Randy colocar dinheiro pregado ao rosto grampeando-o, num ato tremendamente simbólico da degradação humana a que estes seres estão sujeitos. O corpo de Randy também é grampeado pelo adversário. Estas cenas de lutas são magnificamente filmadas, com fartas doses de realismo e só podem estar envolvidas nelas atores talentosos, pois não se nota uso de recursos digitais, apenas de maquiagem e de destreza física.

Randy sofre um infarto, o que faz com que seu médico o proíba de lutar. Ele que já fazia bicos como carregador, agora passa a trabalhar num supermercado na parte de frios, queijos e carnes. Suas relações com a filha e a stripper ficam conturbadas. Ele não encontra o apoio afetivo que desesperadamente precisa, o que é mostrado com comovente, desabrida e genuína habilidade interpretativa do ator. Uma luta revanche que retoma aquela célebre que foi feita nos anos 80 está marcada e não é difícil prever que novos caminhos o filme tomará, até certo ponto. Mas o impacto provocado é fortíssimo de qualquer maneira e pode ser renovado nas diversas vezes em que se assistir ao filme.

Randy explicando por que a vida dele só tem sentido na luta e não “no mundo lá fora” é uma das mais pungentes seqüencias do Cinema Contemporâneo. Como corolário, isto vai fazer o filme terminar com um dos mais tristes, secos e belos “happies-ends” que o Cinema já nos apresentou recentemente.

“O Lutador” de Darren Aronofsky como quem não quer nada, com expressiva simplicidade e força narrativa, com direção e interpretações brilhantes é mais uma eloqüente ficha para o inventário de cicatrizes que o chamado sonho americano tem gerado. Comentar isto pode já ter virado um grande clichê. Mas como isto tem sido mal-resolvido na prática! Quando os EUA vão despertar realmente deste pesadelo travestido de nobreza exemplar? Enquanto esta situação perdurar novas abordagens como a deste atordoante e emocionante “O Lutador” precisam ser feitas. Suas imagens potentes desmentem qualquer retórica de discursos sedutores, mas com pés de barro camuflados.

Nelson Rodrigues de Souza