quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Seria a Crítica de Cinema no Brasil Heterocêntrica?


Vejamos o seguinte caso, tirado do Blog Canto do Inácio:

"A Bela Intrigante" é um filme difícil de recomendar: dura quatro horas e poucas coisas acontecem. E o que acontece não é, em princípio, tão emocionante: um pintor pinta seu modelo.

Mas seria delicado não recomendar esse filme sobre a arte e sua dificuldade. É a obra-prima de Jacques Rivette, um cineasta difícil que parece ter construído sua obra para chegar aí. Se não basta, a musa e modelo é musa de qualquer homem sensato, Emmanuelle Béart.

O primeiro argumento pode não colar. O segundo, é irrespondível.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 24 de maio de 1999)


Considero também uma obra-prima este filme de Jacques Rivette.Suas 4 horas não me cansaram de forma alguma e acho Emmanuelle Béart lindíssima mesmo. Mas e se eu disser que o que também me atrai bastante no filme é a sensualidade, elegância, beleza e a tensão criativa nervosa apaixonada de Michel Piccoli, como serei entendido?

Exaltar a beleza incontornável de musas como Marylin Monroe, Juliette Binoche, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Catherine Denuave, Ingrid Bergman, dentre outras é válido. Considerá-las uns fetichaços, ganha fáceis adesões entusiasmadas. Mas e se um crítico escrever que Montgomery Clift, Marlon Brando, James Dean, Richard Gere, Leonardo Di Caprio, Kevin Spacey, George Clooney, Terence Stamp, Marcello Mastroianni,dentre outros, são também fetichaços, como será visto?

Por que insistiram tanto que “O Segredo de Brokeback Mountain” de Ang Lee não era uma história de amor entre dois homens de fato e sim uma história de amor no seu sentido mais geral, arrefecendo a forte carga de homoerotismo do filme, sua problemática e implicações?

Por que precisamos chegar a um documentário ensaio como “O Celulóide Secreto” de Jeffrey Friedman e Robert Epsteisn para percebermos as filigranas de homofobia na História do Cinema? Não deveria ter havido antes críticos que ressaltassem aquilo que no documentário salta aos olhos: o escamoteamento em diversas facetas da homossexualidade no Cinema?

Por que um filme belíssimo como “Shortbus” de John Cameron Mitchel só teve, que eu saiba, suas grandes qualidades reconhecidas num comovente artigo no gueto a que confinaram o escritor João Silvério Trevisan que é a revista G Magazine, quando pelo seu histórico artístico já deveria ter colunas fixas em jornais de grande penetração?

Por que Paulo Francis escreveu impunemente sem que ninguém reagisse que Visconti transformou “Morte em Veneza” de Thomas Mann em um filme de “bicha velha”?

Por que num documentário sobre a vida e obra de Rainer Werner Fassbinder não se refere em nenhum momento à homossexualidade do diretor e ninguém comentou nada a respeito?

Por que os filmes que ganham o Teddy Bear no Festival de Berlim, o que melhor aborde a temática homoerótica, raramente são exibidos no Brasil e ninguém reclama?

Por que Sir Ian McKellen foi “garfado” no Oscar para melhor ator por seu excepcional trabalho em “Deuses e Monstros” de Bill Condon, tendo sido ganhador Roberto Benigni e ninguém escreveu nada a respeito desta grande injustiça? Comentou-se como era exagerado Roberto ganhar, mas não o quanto era desastroso Ian perder...

Por que nunca se viu um crítico cobrindo de cabo a rabo os festivais Mix Brasil organizados por André Fisher ou a Mostra Mundo Gay do Festival do Rio para salientar o que seria realmente imperdível, segundo seu gosto?

Por que Rodrigo Fonseca tascou bolinha preta e escreveu no JB que com “A Má Educação” cai a máscara de Pedro Almodóvar e, ao que eu saiba, a única personalidade que reagiu a esta ignomínia homofóbica foi o ator Sérgio Brito?

Por que não se vê nenhum crítico escrevendo a falta que faz no Cinema Brasileiro filmes que tratem a questão do homoerotismo em suas diversas especificidades e complexidades, que este é um tema muito pouco explorado ainda, com exceção de filmes como “Crônica da Casa Assassinada”, “Aqueles Dois” e poucos outros que existem sim, mas que estão bem aquém, quantitativa, qualitativa e relativamente aos anos em que já existe em processo cinema sendo feito no país?

Por que com exceção do ensaísta João Luiz Vieira em “O Cinema-Faca de Sérgio Biachi”, o cinema deste autor ainda é tão pouco analisado e reconhecido no país, com algumas obras de fortes observações sobre homoerotismo como na obra-prima imperfeita “Romance”?

Por que com exceção de Rubens Ewald Filho e Jean-Claude Bernardet, não se vê, não se viu crítico de cinema saindo do armário e declarando-se objetivamente homossexual?

Por que não há estudos claros sobre o modo como Visconti privilegia bastante também o rosto e a beleza dos homens em seus filmes?

Por que durante tanto tempo a homossexualidade não declarada de muitos críticos era sublimada no culto excessivo às divas de Hollywood?

Por que a nudez feminina é muito mais freqüente no cinema brasileiro ou estrangeiro do que a nudez masculina e isto é muito pouco comentado? Por que a cena ridícula de Harrison Ford em “Busca Frenética” saindo nu da cama para uma luta, segurando um ursinho para esconder a genitália não foi comentada, mesmo saindo de um cineasta tão importante e transgressivo como Polanski?

Por que o festival do Rio de Janeiro não tem feito uma boa curadoria para a Mostra Mundo Gay e isto não é motivo de crítica?

Por que ninguém comenta a falta que faz um documentário sobre o histórico da Parada GLBT de São Paulo, dado que depois da manifestação pelas Diretas Já!, este é o acontecimento político que mais reúne brasileiros em torno de uma causa?

Por que Eduardo Coutinho que gosta tanto de fazer documentários sobre o que não conhece para caminhar em direção a prazerosas descobertas, nunca procurou realizar um trabalho sobre como de fato vive o pessoal GLBT no país e ninguém comenta nada?

Por que não temos ainda filmes sobre a grande quantidade de assassinatos de pessoas GLBT no país, um dos locais do planeta em que mais isto acontece, documentários ou ficções e ninguém sente falta?

Por que ninguém especulou, ainda que com incertezas, sobre a sexualidade do protagonista constantemente angustiado de “Trinta Anos Esta Noite” de Louis Malle que acaba se suicidando?

Por que ninguém comentou uma provável e sutil homofobia do genial Hitchcock que sempre teve gosto em colocar psicopatas homossexuais, como os de “Pacto Sinistro”, “Rebecca, a Mulher Inesquecível”(num certo sentido), “Festim Diabólico”, em alguns de seus filmes? Neste último há algo deste teor na boca de James Stewart: “Ele (o assassinado) poderia amar como vocês (os assassinos) jamais poderiam...” Se o cineasta, grande mestre, era capaz de criar estas arestas por serem aparadas, imaginemos outros de menor expressão...

Por que nunca se teve uma retrospectiva da obra do cineasta alemão Rosa von Praunheim ( de “Um vírus não conhece moral”, “Não é o homossexual que é perverso mas a situação que ele vive”, dentre outros) no Brasil e ninguém sentiu falta?

Por que nunca se comentou a leitura homoerótica que se pode ter de “A Faca na Água”, obra-prima de Roman Polanski, num triângulo amoroso intercambiável, com a faca talvez sendo um símbolo fálico?

Por que uma leitura homoerótica de “O Gosto da Cereja” de Abbas Kiarostami empobreceria o filme ao invés de enriquecê-lo? Um homem anda de carro pra lá e pra cá a procura de alguém que o ajude a se suicidar, mas também poderia estar à procura de uma pegação que o salve....

Por que além de “Bent”, adaptação diluída da peça de sucesso de Martim Sherman, que perde a forte teatralidade no cinema, pouco se fez no écran para abordar as várias implicações do assassinato brutal de homossexuais em campos de concentração nazistas, onde usavam roupas com um triângulo rosa, sendo considerados de “classe” ainda inferior aos judeus? Por que ninguém sente a falta desta necessária vertente do cinema? Visconti fez “Os Deuses Malditos” mostrando o assassinato de homossexuais na “noite dos longos punhais”. Mas no fundo é um filme sobre a decadência de uma família aristocrática produtora de aço para armamentos bélicos.

Por que já se esqueceu que uma das cenas mais eróticas do cinema é a luta entre Oliver Reed e Alan Bates nus em “Mulheres Apaixonadas” de Ken Russell , adaptação fantástica de romance de D.H. Lawrence, que deu o Oscar de melhor atriz para Glenda Jackson?

Por que pouco se lembra o assassinato programado de Pasolini, mostrado em várias nuances em “Pasolini, um Delito Italiano” de Marco Túlio Giordano? Não deveria ser esta uma cobrança eterna até as autoridades italianas tomarem reais providências para revelar a verdade? O tanatológico e asfixiante “Saló- Os 120 dias de Sodoma” foi o testamento premonitório de Pier Paolo Pasolini de seu assassinato oficial pelo Estado italiano.


Enfim, perguntas não faltam, de maior ou menor relevância.

A resposta para a pergunta do título do post é relativamente fácil. Com raras exceções a crítica que se pratica no Brasil ( e provavelmente no mundo todo também ) é heterocêntrica sim! Que tal mudar esta situação? É o que estou tentando fazer aqui no Blog, dentre outras experimentações. Mas posso pagar um preço muito alto. Os leitores heterocêntricos e/ou homofóbicos podem querer me ignorar. Já o pessoal GLBT militante pode estar preocupado demais com a necessária militância por direitos e passar ao largo das questões culturais. Já o pessoal GLBT fashion pode estar preocupado mesmo é com a nova roupa para a próxima balada. Assim posso desagradar a gregos e troianos. Corro este risco. Mas vale a pena tentar algo diferente. É desta vontade que tiro minha força para continuar. Além do mais, existem muitos baianos que podem estar interessados.

Nelson Rodrigues de Souza

4 comentários:

  1. Ai Nelson,
    Sacode a caretice desta crítica cinemetográfica brasileira e quiçá mundial! Acho Sônia Braga linda e sensulíssima.Vi uma cena dela em "Testosterona" no "You Tube" onde ela arrasa neste quesito. Mas nunca lí nada sobre a sensualidade inerente de Jean-Paul Belmondo em tantos filme. Lembra dele correndo pelas ruas de Paris em "Acossado"? E ele está de calças, camisa e gravata! Mas isso não conta aos olhos da crítica, como você muito bem classifica, heterocêntrica. Que mais críticos amplie sua visão do erotismo ou tenham coragem de declarar a sua para que possamos viver em um mundo mais plural.

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  2. A questão que você levantou, e exemplificou muito bem, Nelson, é totalmente pertinente. E há outra coisa que noto há bastante tempo: tem muito pouca mulher fazendo crítica de cinema. A maioria dos críticos ( ou pelo menos dos que têm maior visibilidade) é homem. Isso também contribui para que a sensualidade e beleza masculinas não sejam devidamente ressaltadas.
    Abraços. Gina

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  3. Muito bom esse texto! Concordo que essas questões são propositadamente deixadas de lado. Cheguei a escrever algo no meu blog sobre o close disnarrativo - que a feminista Laura Mulvey utiliza na análise do cinema clássico narrativo de Hollywood - para descrever a maneira transgressora com que Visconti trabalha o close masculino em seus filmes. Mas esse é apenas um dos muitos pontos que vc abordou. Fico no aguardo dessa sua missão e passo a leitor do blog. Parabéns!

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