segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Cacos do Muro Ainda Caindo Sobre Nós



Quando o muro de Berlim caiu em novembro de 1989, propagou-se pelo mundo todo o marketing da vitória do capitalismo contra o comunismo. Era o símbolo de uma era tal em que apareceu Francis Fukuyama para escrever “O Fim da História” e ganhar polpudas quantias pelo mundo afora dando palestras como se fosse o novo messias de um novo tempo, enterrando de vez qualquer tentativa de se construir sociedades em bases mais socialistas, mesmo que não fossem comunistas.

Quem já tivesse estudado um mínimo de História já sabia que esta foi, é e sempre será dinâmica com vários fatores econômicos, históricos, sociais, psicológicos,etc, em ação que a impulsionam muitas vezes para o inesperado, a surpresa ou até a catástrofe que se esperava como é o caso da vigente crise aguda da economia mundial.

O mundo precisou que uma professora francesa de Letras se dedicasse ao estudo das armadilhas da economia contemporânea para que se tivesse a real dimensão do que estávamos vivendo, sem perda de força literária: “O Horror Econômico”, Viviane Forrester, Edusp, 1997. Não que outros já não tivessem se insurgido contra as idéias precárias de Fukuyama. Mas a força do pequeno livro de Viviane é extraordinária. Ela nos relata de forma inigualável a dor da humilhação por se estar desempregado num mundo de capitais, empresas e empregos voláteis. Carlos Heitor Cony comenta com justeza no prefácio que este “admirável mundo novo” que Viviane desconstruía tem um quê de nazismo ao disseminar a lei do darwinismo social inveterado ou como diria Machado de Assis, o império do “ao vencedor as batatas”.

Dos filmes mais recentes, “A Questão Humana” (França/2007) de Nicolas Klotz foi aquele mais incisivo na abordagem do que estamos comentando, pois aproximou as técnicas de Recursos Humanos,onde se joga da forma mais leviana e pragmática possível com as emoções e as vidas das pessoas, de meios empregados pelo nazismo, com admiráveis interpretações de Mathieu Amalric, o psicólogo e Michel Lonsdale, um chefe que passa a ter atitudes estranhas e tem de ser investigado, algo que tem pontos de contacto com o que vemos, mas sem a mesma profundidade, em “Conduta de Risco”(EUA/2007) de Tony Gilroy, com George Clooney e Tom Wilkinson, também brilhantes.

Pouco depois da queda do muro o cineasta Volker Schlöndorff ( de “O Tambor”) declarou que se Rainer Werner Fassbinder fosse vivo já teria com certeza feito um filme sobre esta nova Alemanha, ele que foi aplicado “patologista” das neuroses e corrupções sociais e existenciais alemãs, como em “A Encruzilhada das Bestas Humanas”, “O Desespero de Verônica Voss”, dentre tantas obras-primas.

Mas há um filme de 1991 que com toda clareza esmiuçou e colocou em questão os impasses do mundo que se estava construindo, como se a vergonha estivesse de um lado só e a queda do muro simplesmente, estaria resolvendo os problemas mais sérios. Claro que a queda do muro veio até bem tarde, mas o oportunismo ideológico que se assistiu depois, que está culminando com esta crise atual gravíssima, a qual remete à Grande Depressão de 1929, enfim estas falácias todas,das quais Fukuyama foi um dos arautos, é algo enojante, para dizer o mínimo.

O filme em foco é “Queridas Amigas” de István Szabó de 1991, produção húngara. O filme não tem a força estética e política de “Mephisto” e “Coronel Redl” que formam com Hanussem (este não exibido no Brasil comercialmente) uma trilogia. Mas já estão esboçados em “Queridas Amigas” de uma forma bastante simples e metafórica, muitos dos dilemas que viveríamos depois. Emma e Böbe são duas amigas professoras que viviam de aulas de russo em Budapeste. Com a derrocada do regime comunista esta língua passa a ter pouca importância. Passam então a ter de “estudar” inglês rapidamente à tarde para darem aula na manhã seguinte, missão contaminada pela precariedade. Com salário deixando muito a desejar passam a morar juntas num quarto de um albergue onde vivem várias professoras na mesma situação que elas. Para complementarem o salário Emma passa a fazer faxina em casas de família e Böbe a sair com estrangeiros que encontra nos bares. O desespero toma conta das duas com diferentes efeitos nada confortáveis. Estão dispostas a tudo para não ter de voltar para o interior de onde vieram e passar a ter vidas apagadas e provincianas.

“Queridas Amigas” tem narrativa simples, despojada, sem maiores arroubos formais e uma força estética que se propõe objetiva e tão somente realçar os dramas vividos pelas amigas. Não chega a ser obra-prima como os dois filmes da trilogia exibidos no Brasil em circuitos, mas é um filme muito bom que hoje é um documento histórico extraordinário. Fassbinder não fez um filme sobre sua nova Alemanha, mas Szabó pode fazer um retrato 3x4 da sua Hungria, de forma tal que, ao seu modo, tocava em cordas sensíveis da luta pela sobrevivência que se passou a se travar no mundo todo, onde a troca de mercadorias e capitais é bem vinda, mas a circulação livre de pessoas não.

Sim a vergonha estava dos dois lados. Agora quando financistas americanos não têm nem a coragem moral de colocar os pés no Fórum de Davos, nos damos conta ( tardiamente?) de que os ferimentos aos quais estamos todos sendo submetidos, de uma forma ou de outra, são resultados dos cacos do muro derrubado que ainda caem violentamente sobre nós. Ri melhor quem ri por último. Mas a situação é tão séria que os mais lúcidos neste tempo todo não podem nem se dar a este luxo. Até rir disso tudo doe muito. E como!

Nelson Rodrigues de Souza


Ps.Deu em O Globo de hoje:

Empresário vira assaltante de banco

Endividado e à beira da falência, um empresário do setor de construção praticou quatro assaltos a bancos e, quando tentava seu quinto roubo, foi preso pela polícia da Catalunha. Ele atuava sozinho e causou prejuízo de 80 mil euros.

Esta história não dá um filme? Conforme canta Elis, repercutindo Billy Blanco: “O que dá pra rir dá pra chorar, questão só de peso e medida, problema de hora e lugar, mas tudo são coisas da vida.”

3 comentários:

  1. Sobre a crise econômica atual vale a pena ler o artigo a seguir de Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia de 2008, articulista do The New York Times, traduzido para o JB de 17 de fevereiro de 2009:

    Espelho, espelho meu

    Agora todos já conhecem a triste sina dos investidores que foram enganados por Bernard Madoff. Eles olhavam seus extratos bancários e achavam que estavam ricos. Um dia, no entanto, se deram conta de que sua suposta riqueza não passava de uma fábula inventada por outra pessoa. Infelizmente, esta é uma metáfora precisa do que aconteceu nos Estados Unidos na primeira década do século 21.

    Na semana passada, o Federal Reserve (Fed, banco central norte-americano) divulgou os resultados do último Survey of Consumer Finances, um relatório trienal que avalia os ativos e passivos das famílias americanas. O principal ponto é que não houve qualquer geração de riqueza desde a virada do milênio: o patrimônio líquido da família americana, ajustado pela inflação, é menor hoje do que foi em 2001.

    De certa maneira, isso não é nenhuma surpresa. Na maior parte da última década, os EUA tornaram-se uma nação de tomadores de empréstimos e gastadores, não de poupadores. O índice que mede as economias pessoais caíram de 9% na década de 80 para 5% na década seguinte e para apenas 0,6% de 2005 para 2007. Além disso, as dívidas das famílias cresceram muito mais rapidamente do que seus rendimentos. Po que deveríamos esperar uma alta no nosso patrimônio líquido?

    Até muito recentemente, os americanos acreditavam que estavam enriquecendo já que recebiam demonstrativos que mostravam que seus imóveis e portfólios de ações estavam se valorizando em ritmo mais rápido do que o crescimento das dívidas. E se a crença de muitos americanos segundo a qual sempre poderão contar com ganhos de capital pode soar ingênua, vale a pena lembrar a quantidade de vozes influentes – sobretudo publicações de direita como The Wall Street Journal, Forbes e National Review – que promoveram esta crença e ridicularizaram aqueles que se preocupavam em poupar e evitavam fazer empréstimos em excesso.

    Então, a realidade veio à tona e provou que aquelas preocupações estavam corretas. A alta nos valores dos ativos era, de fato, uma ilusão – mas, o aumento dos valores das dívidas era, este sim, real. Assim, agora estamos em apuros – apuros mais graves do que muitos imaginam. E não me refiro àquele grupo de analistas, cada vez menor, que ainda insiste que a economia deve recuperar-se a qualquer momento.

    Isto porque a base da crise atual é muito abrangente. Todos mencionam os problemas que afetam os bancos, que realmente estão em situação mais precária do que o resto do sistema. Todavia, os bancos não são os únicos com dívidas demais e ativos de menos; a mesma descrição aplica-se a todo o setor privado.

    Como indicou o grande economista americano Irving Fisher nos anos 30, as ações que os indivíduos e as companhias tomam quando percebem que assumiram dívidas demais costumam ser autodestrutivas quando todos tentam fazer a mesma coisa ao mesmo tempo. As tentativas para vender ativos para saldar dívidas agravam a queda de preços dos ativos, ao reduzir ainda mais o patrimônio líquido. Tentativas para economizar mais implicam colapso da demanda de consumo, ao agravar a deterioração da economia.

    Aqueles que ditam as políticas estão preparados para quebrar este círculo vicioso? Em princípio, sim. As autoridades do governo entendem o problema: Nós temos que "conter esta perigosa espiral potencialmente deflacionária", defendeu Lawrence Summers, um dos principais conselheiros de economia de Obama.

    Na prática, no entanto, as políticas atuais não parecem adequadas para a dimensão deste desafio. O plano de estímulo fiscal, que certamente ajudará, provavelmente não fará muito além de mitigar os efeitos colaterais de uma deflação causada por dívidas. E o tão esperado anúncio do plano de resgate dos bancos deixou as pessoas mais confusas do que as tranquilizou.

    Há esperanças de que o resgate do sistema bancário se torne algo maior. Tem sido interessante acompanhar como a ideia de estatizar temporariamente os bancos ganhou cada vez mais aceitação. Até mesmo republicanos como o senador Lindsey Graham concordam que a medida é necessária. Mas, ainda que façamos aquilo que é preciso para salvar os bancos, isto resolverá apenas uma parte do problema.

    Se você quiser saber realmente salvar a economia da armadilha da dívida, observe um dos maiores programas públicos de empregos, também conhecido como Segunda Guerra Mundial, que pôs fim à Grande Depressão. A guerra não apenas gerou empregos para todos, mas também levou a um rápido aumento de renda e inflação significativa, tudo isso sem que o setor privado precisasse se endividar. Em 1945, a dívida do governo havia subido vertiginosamente, mas o quociente da dívida do setor privado em relação ao PIB era apenas a metade do que era em 1940. E isto ajudou a preparar terreno para o grande boom do pós-guerra.

    Como nada disso está na mesa de discussões, e nem deverá estar no futuro próximo, levará anos até que as famílias e empresas consigam se livrar das dívidas que contraíram tão despreocupadamente. O engraçado é que o legado da nossa época de ilusões – nossa década na casa de Bernie (referência à comédia Weekend at Bernie's ou Um Morto Muito Louco, dirigida por Ted Kotcheff em 1989) – será uma longa e dolorosa crise.

    ResponderExcluir
  2. Nelson,
    Os cinestas Kem Loach (inglês) e o francês Robert Guédiguian espuseram os efeitos devastadores deste sistema econômico em suas filmografias de uma forma muito incisiva e crítica. Valeria abordagens sobre os dois.

    ResponderExcluir
  3. Sobre a situação hoje dos paises do leste europeu é muito apropriado o editorial da Folha de São Paulo, transcrito adiante. Que filme István Szabó poderia fazer deste contexto?

    São Paulo, terça-feira, 03 de março de 2009

    editoriais@uol.com.br

    Emergência no Leste

    Fuga de capital externo abala países da Europa Oriental e ameaça levar de roldão grandes bancos do continente

    A CRISE financeira global atinge os países do Leste Europeu de maneira muito intensa, sobretudo aqueles com maior necessidade de financiamento externo, como Ucrânia, Hungria e Estados bálticos. As moedas dessas nações apresentam aguda desvalorização, fruto da debandada de aplicadores estrangeiros e da depressão global no crédito.
    A onda de ataques especulativos que varre a Europa Oriental, chamada de ameaça "subprime" do continente, possui diversas dimensões interligadas.
    Alguns países estimularam as famílias a tomar empréstimos imobiliários em moeda estrangeira. Na Hungria, por exemplo, a maioria das hipotecas está denominada em francos suíços. Em outros, bancos estrangeiros assumiram o controle dos sistemas financeiros privatizados após o colapso dos regimes comunistas.
    Por mecanismos desse gênero, grandes casas bancárias europeias, sediadas em países como Áustria, Suíça, Holanda e Itália, descarregaram elevados volumes de empréstimos na Europa Oriental, notadamente em nações candidatas à admissão na zona do euro. Bancos austríacos, por exemplo, sustentam naquela região montante de crédito equivalente a 80% do PIB da Áustria.
    Caso as famílias húngaras deixem de pagar suas hipotecas, o sistema financeiro austríaco será diretamente afetado. Um colapso nos países do Leste Europeu, portanto, tem o potencial de arrastar toda a zona do euro para uma nova espiral de crise.
    A fim de evitar o pior, um grupo de instituições multilaterais, lideradas pelo Banco de Investimento Europeu, efetuou uma injeção de US$ 31 bilhões nos sistemas financeiros do Leste Europeu. O aporte, contudo, tem se mostrado insuficiente para auxiliar os países e as empresas da região a enfrentar a crise.
    Numa manifestação positiva, os 27 membros da União Europeia, reunidos no fim de semana para discutir a ameaça financeira contra as nações orientais, refutaram as barreiras comerciais como solução para a crise. A UE reiterou que o mercado comum é "o motor da recuperação" e que o "o protecionismo não é a resposta" para a derrocada.
    O bloco, contudo, rejeitou a criação de um programa de ajuda de 180 bilhões, proposto pela Hungria, para recapitalizar o sistema financeiro da Europa Oriental e reestruturar as dívidas externas. Ficou decidido que a ajuda será feita caso a caso.
    Permanece a sensação de que a UE pretende apenas ganhar algum tempo, enquanto pressiona o grupo dos países mais industrializados do mundo (G20) para que aumente o poder de emprestar dinheiro de emergência do Fundo Monetário Internacional. Tempo, contudo, é o ativo mais precioso nesta crise. Desperdiçá-lo tem custado muito caro.

    ResponderExcluir