sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A bola de neve do “abominável” escritor- Um Conto


Dizem que uma boa história flui como uma bola de neve que rola montanha abaixo. Tudo bem. Mesmo assim existem momentos em que até mesmo os melhores contadores de histórias vêem-se numa encruzilhada, pois não sabem como continuar a história que tem em mente. Ou melhor, desenvolveram tudo muito bem até certo ponto, sabem o que pretendem escrever dali então, tem até o final já previsto, mas não sabem como fazer a transição. E aí?

Não sei se sou um bom contador de histórias (o leitor que o diga!). Só sei é que estou nesta malfadada encruzilhada e não consigo dar prosseguimento a um pequeno conto desejado. A mim, assombra a necessidade de tirar uma carta do bolso do colete, utilizar um recurso folhetinesco vulgar. Mas desde que abandonei aquelas traduções de poetas americanos, as quais me davam o maior trabalho, sendo que ganhava uma miséria e ainda não era reconhecido (diziam que “só poetas podem traduzir poetas” ou então repetindo Robert Frost que “poesia é o que se perde na tradução”), é que resolvi escrever por minha conta e risco.

“Lembre-se que cada linha que você escreve é uma a menos que você tem de escrever” – já disse o Millôr Fernandes. Mas será que nesta areia movediça em que me movimento a única ferramenta adequada é essa? A audácia?

Não! Não são apenas os autores mais populares que se valem de recursos folhetinescos diversos. Também os grandes nomes “apelam”! Senão vejamos:

1-Bergman em seu mergulho nas angústias e desacertos de mãe e filha em seu “Sonata de Outono” leva o embate psicológico até um ponto em que a ação (se é que podemos falar de ação neste caso) estagna e ele sente então (intuitiva ou conscientemente, não importa) a necessidade de fazer a outra filha (paralítica) juntar-se às duas, se arrastando pelo chão, de tal modo que os conflitos são então redimensionados e prosseguem.

2-Louis Malle no maravilhoso “Sopro no Coração”, após inventariar com extrema sensibilidade as inquietações sexuais de um adolescente de 15 anos, tendo como pano de fundo a imoralidade da guerra da Indochina, para poder demonstrar seu “Teorema do Incesto” ( “É preferível praticar o incesto uma vez na vida do que passar o resto dela pensando nele...”), lá pelo meio da narrativa, sentiu a necessidade de criar o sopro no coração do rapaz, para que mãe e filho pudessem então passar uns tempos numa terma, longe da casmurrice do pai.

3-Nagisa Oshima depois de quase esgotar o aforismo “Qualquer maneira de amor vale a pena”, no seu claustrofóbico e brilhante “Império dos Sentidos”, resolve fazer o “japonês” (uma personagem que prefere andar na contramão, opta por morrer de amor do que morrer de ódio numa guerra nefanda qualquer...) se relacionar com uma das veneráveis madames, uma das gueixas que ninavam o casal. Após este gesto de ternura-desprendimento, a paixão dos amantes revigora, tomando uma nova coloração.

4-Mas alguns exageram na dose. Wim Wenders, por exemplo, pretendia com o pálido “O Medo do Goleiro Diante do Pênalti”, “matar vários coelhos com uma só cajadada”: homenagear o próprio cinema; dar vazão ao gosto pelos heróis nômades (o que propiciaria o passeio da câmera pelos detalhes de incontáveis paisagens); homenagear o cinema americano em particular; adotar um ponto de vista original para sua história. O filme consistiria de anotações sobre o cotidiano “alienado” de um jogador de futebol e por extensão uma “visão amarga-irônica-desencantada da sociedade contemporânea”. Muito bem. Só que para fechar o seu quebra-cabeça, Wenders faz o seu jogador matar uma bilheteira de cinema! (“gratuitamente”). O medo do goleiro passa a ser óbvio (deixa de ser ”existencial”), o pênalti perde a dimensão simbólica se transformando num banal “fuzilamento” e o filme não se realiza em nenhuma das propostas. Um pseudo filme policial. Uma rasante visão crítica da sociedade contemporânea. Um filme falso. Um filme que expressa apenas o desejo de se fazer um filme.

5-Quando o marido de Maria Braun volta da guerra e a surpreende com o amante e o mata, nada mais se tem do que um coelho tirado da cartola por Fassbinder para poder dar prosseguimento à sua narrativa. O marido vai preso e aí a metáfora “Maria – milagre alemão” pode então se consumar. Não deixa de ser sintomático que esta seqüência é toda ritualizada. O autor mostra o seu truque e é como se pedisse desculpas. Não é sem razão que já afirmou ser o cinema “a mentira vinte e quatro quadros por segundo”!

Mas Dostoiévski pela voz de Razumikhin de “Crime e Castigo” já não afirmou que “a mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais”? Então, se o mestre maior que por sinal mesmo com toda genialidade e generosidade, deixava evidente certos truques na construção de suas narrativas, nos dá a deixa, por que não pregarmos uma peçazinha no leitor e fazê-lo mergulhar na nossa história, a custa de um pequeno artifício?

Eu me sinto como um viajante que já percorreu um bom pedaço de uma auto-estrada, mas está com a gasolina acabando e ainda por cima sem dinheiro. Ele sabe muito bem de onde vem e para onde vai, mas como prosseguir? “Dar um cano” no posto mais próximo?

Será que num mundo já tão atropelado por mentiras oficiais cabe mais uma com a pretensão de que se vá contribuir para uma reflexão melhor sobre suas mazelas?

Estou convencido de que muito do propalado hermetismo de Glauber, Godard, Bressane e que tais não vêm do fato de não saberem contar uma história, mas do pudor em utilizar esses recursos que permitam que suas histórias fluam.

Será que no fundo eu não gosto das pessoas, não gosto da sociologia, psicologia, história, filosofia, política, psicanálise, antropologia, etc., mas pura e simplesmente dessa alquimia eterna chamada narrativa? Será que só a solução desses problemas é que me interessam?

Não! Eu não preciso fazer como em “O Vento Levou” em que para Scarlet O’ Hara, depois de casada com Rhett Butler, descobrir realmente que “só a ele amava”, houve a necessidade dela cair da escada e perder o filho que esperava, um filho morrer numa queda de cavalo e ainda por cima a mulher do cara que ela achava que amava tinha de morrer também. Não, eu não preciso ir a tanto! Basta, simplesmente, admitir que uma batida de carro congestione o trânsito e meu personagem seja obrigado a descer do táxi e daí descubra que está perto da casa do professor e vá então fazer uma visita para...

É como se a partir deste ponto da história (como na tragédia clássica) tivéssemos a co-autoria de um “Deus-ex–machina” e conseqüentemente um redimensionamento dela. Eu sei que para o homem contemporâneo o destino já não desempenha o mesmo papel que na Antiguidade Clássica. A sociedade com as suas leis já nos cria tantas armadilhas que fica difícil para qualquer Édipo cumprir a profecia dos oráculos... (Édipo nos dias de hoje talvez até fugisse de Corinto. Mas antes de se encontrar com Laio, matá-lo, para depois desvendar o enigma da esfinge e casar-se com Jocasta, poderia muito bem ser preso por estar sem documentos e como já não tem pai importante que o proteja...)

Mas não! Não é possível! Com tanta fruta no pomar do imaginário, eu fui escolher logo um abacaxi já descascado por Machado de Assis! Não é que a solução que escolhi é a mesma encontrada por ele para resolver o seu conto “A Cartomante”! (o tílburi para por causa de uma carroça que atravanca o caminho, Camilo desce e descobre que, bem próximo, ficava a casa da cartomante!...)

Mas tudo bem, digamos que o meu conto é uma revisão crítica de “A Cartomante”, um estudo, uma homenagem como aquelas que Brian de Palma presta a Hitchcock.

Não tenho certeza se esta solução adotada é realmente a melhor. Em principio é esta que aí está. Mudanças?... Estou muito cansado... Tal como minha querida Scarlet O’Hara “eu deixo para pensar nisso depois”.

Nelson Rodrigues de Souza

Ps 1- O “truque” de Sonata de Outuno” foi citado numa aula pelo roteirista e dramaturgo Doc Comparato como exemplo do que podem fazer grandes autores. Quanto ao resto, dei tratos à bola.

Ps2- As opiniões do personagem narrador não são necessariamente do autor.

3 comentários:

  1. Não é só cinema, é tambem o teatro narrativo que V. comenta, com muita propriedade. Acho que esse autor deve escrever cada vez mais ficção, e inventar novos caminhos e saidas narrativas, em que o Deus Ex Machina possa as vezes se disfarçar!!

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  2. Caro amigo Nelson!
    Não sabia que vc tb é RODRIGUES, que coincidência boa ... com o nosso genial teatrólogo Nelson Rodrigues.
    Mais um motivo para ser teu fã.
    Estou passando rápido pelo teu blog, mais depois quero ler com mais atenção... e reparei que vc está fazendo uma homenagem ao filme "A Bela da Tarde", o qual me fascinou muito.
    Como aprecio muito os teus comentários sobre filmes, gostaria que vc comantasse este filme e tentasse explicar melhor aquele final, pois cada um tem uma interpretação ...
    Abraços do amigo Mauro , até !

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  3. Desculpe-me pelo erro "mais depois ..." o correto é "mas depois ..."
    Obrigado. Mauro

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