sábado, 21 de fevereiro de 2009

Sementes do orgulho lançadas na floresta dos preconceitos


Em 27 de junho de 1969 frequentadores do Bar Stonewall em Nova York, no Greenwich Village, cansados de tantas humilhações com as batidas e ofensas usuais de policiais, reagiram veementemente, principalmente os travestis e passaram a enfrentar de cara a polícia. Durante três dias (até dia 29 que ficou conhecido como “Dia do Orgulho Gay”) houve confrontos mais generalizados com a polícia e direitos foram enfim conquistados, dentre eles, poder freqüentar bares e boates sem ser incomodado. Até a Associação Mundial de Psiquiatria (WPA) se reuniu e chegaram à conclusão (óbvia...) que homossexualidade não é uma doença, o que foi encampado pela Organização Mundial de Saúde.

“Milk- A Voz da Igualdade” (EUA/ 2008) de Gus Van Sant, cineasta assumidamente gay começa um pouco depois deste acontecimento histórico. Harvey Milk (Sean Penn) vivia em Nova York e trabalhava na área financeira. Em 1970 quando faz 40 anos, sente que tinha pouco do que se orgulhar da vida que viveu até então. No encontro com Scott (James Franco) acaba tendo a centelha de abandonar tudo e ir para São Francisco, onde pretende montar uma loja de materiais fotográficos e revelações.

“Milk”, o filme, começa com imagens documentais em preto e branco de gays “pegos em flagrante” numa boate sendo presos e algemados. É neste contexto que Harvey Milk, hostilizado por parte da vizinhança, passa a sentir que no bairro Castro onde se estabeleceu há a necessidade de sair do casulo e se envolver em lutas políticas, ainda mais quando tem ciência de que o senador John Briggs e a cantora religiosa Anita Bryant querem aprovar a proposição 6 que tem por objetivo impedir que o pessoal GLBT dê aulas, punindo também quem os apoiasse.

Com o trabalho do auxiliar direto Clive Jones (Emilie Hirsch, de “Na Natureza Selvagem) e depois de Anne (Alison Pill), lésbica politizada, após a saída de Scott, Milk vai costurando mais ainda sua candidatura ao cargo de Supervisor de São Francisco (algo análogo ao que é um vereador no Brasil). Para isto sente necessidade de ampliar os fundamentos de sua base eleitoral e passa a conquistar também heterossexuais para sua campanha. Consegue até o apoio de Jimmy Carter contra a proposição 6, sendo que esta também contava com a posição contrária do conservador Ronald Reagan.

Um novo namorado de Milk, Jack (Diego Luna), de temperamento instável, passa a lidar mal com o ativismo político do parceiro. Milk é eleito, a proposta é derrotada, mas mesmo num clima de festa Jack se isola. Gus Van Sant não faz uma hagiografia de Milk, pois além de mostrá-lo fazendo concessões políticas, pedindo um outing às pessoas que ele mesmo antes não teve coragem de fazer, o mostra de certa forma tão absorvido pela militância que descuida de sua vida amorosa, com desfecho trágico que dado o seu empenho com as causas políticas o impede até mesmo de chorar as lágrimas que o parceiro merecia. Além do mais, há alguns chavões em seus discursos políticos, mas não há político que se eleja sem um mínimo de pragmatismo e Milk sabe disso. Tanto é que uma das suas primeiras medidas é cortar a barba e bigode que lhe davam um ar hippie para se transformar numa “pessoa respeitável”, rosto limpo, usando terno.

De início Milk tenta compor politicamente com o Supervisor Dan White (Josh Brolin), casado, pai de filhos, defensor das tradições da família, mas que carrega em si, provavelmente, uma homossexualidade recalcada. Conforme já anunciado no início do filme tanto Milk como o prefeito de São Francisco George Moscone são assassinados e Dan é o agente desta tragédia que conforme os letreiros finais teve punição pífia.

“Milk”, o filme, logo de início nos mostra o protagonista como narrador de sua vida, sendo sua fala gravada para depois de sua morte, pois tem a premonição de que será morto, ficando somente 11 meses no cargo de Supervisor. Assim fica fortalecida a noção de que muito do que se conquistou depois em direitos para os homossexuais tem como semente o trabalho de Harvey Milk. Para o desfecho, o filme reserva uma de suas cenas mais tocantes, o que não se revelará aqui. Prestem atenção que nela Gus Van Sant faz uma aparição tal como Hitchcock em seus filmes, mas de forte teor simbólico e não como uma simples assinatura autoral.

Em 2008 aprovou-se a Proposição 8 que baniu a união civil de homossexuais da outrora liberal Califórnia, neste aspecto. Um retrocesso que necessita de pessoas de fibra como Harvey Milk como reação. Seu exemplo está dado. Terá seguidores?


Para quem só admira os trabalhos mais experimentais de Gus Van Sant, como “Elefante”, “Last Days” e “Paranoid Park”, todos eles olhares incomuns para seres marginalizados como Harvey Milk, o filme em questão pode decepcionar ainda que aqui e ali se encontre os toques mais evidentes do cineasta. Por exemplo, tem-se mudança de velocidade das cenas, uma delicada tessitura de imagens que nos faz confundir às vezes o ficcional do documental (imagens de “The Times of Harvey Milk”-1984, documentário premiado com o Oscar, de Rob Epstein, são utilizadas de forma belíssima e oportuna), com transições sutis de um trabalho de montagem, lento ou acelerado, que é sempre original e ressalta a dramaticidade do que é desejado.


Se lembrarmos, entretanto, que Gus Van Sant já assinou trabalhos como “Um Sonho Sem Limites”( irresistível em seu humor negro) e “Gênio Indomável” não é de forma alguma de se estranhar que o cineasta faça um filme, ao seu modo, mais relativa e convencionalmente formatado. Mas com toda elaboração formal mais simples que pode desapontar os fãs mais radicais, o que ressalta mesmo de “Milk”- o filme, é a grande vontade de trazer para o século XXI, num mundo tão distópico, a força da luta de Harvey Milk para sair da mediocridade de sua vida e emergir como uma grande personalidade batalhadora pelos direitos humanos mais básicos que ainda são negados em vários cantos do mundo. Van Sant passou a ter mais consciência de sua homossexualidade, saindo finalmente do armário, através das lutas de Milk. Durante anos pensou neste projeto e quando encontrou um roteiro à altura, o realizou. Pode-se apontar lacunas aqui e ali ( personagens que mereciam ser melhor desenvolvidos como o de Diego Luna e o de Josh Brolin, espantosamente indicado ao Oscar de Melhor Coadjuvante, quando está realmente muito bem é em “Onde os Fracos Não Tem Vez”) mas no conjunto “Milk” é um filme admirável que tinha que ser feito e o foi com bastante talento e integridade.

De Sean Penn, o que dizer? Simplesmente que ele como um dos maiores atores do nosso tempo está perfeito e muito à vontade no papel de Milk, camaleônico como é. Ele capta a delicadeza, os trejeitos e a firmeza obstinada de caráter, de metas e métodos do personagem. O duelo público verbal entre Milk e o senador é fantástico. Há cenas amorosas homoeróticas sem pudor, mas não no número que gays fanáticos talvez desejem, mas o suficiente para caracterizar a humanidade deste personagem. Tão igual aos outros por mais que seja tão diferente.

“Milk”, o filme, concorre a 8 Oscars, dentre eles: filme, diretor e ator. Que o preconceito tolo com o que se convencionou chamar de filmes do Oscar ( algo cada vez mais embaçado), não impeça ninguém de usufruir do prazer que é assistir este filme, que se não chega a ser essencial é mais do que necessário e urgente, num mundo de tantas pasmaceiras e conformismos.

No mundo GLBT brasileiro que acompanho através da imprensa e de um grupo Yahoo de discussões há uma pulverização muito grande de esforços, com lutas intestinas e desentendimentos mútuos, onde se critica até o fato de militantes gays ganharem dinheiro do Estado para suas militâncias. Há até quem critique a volumosa Parada Gay de São Paulo como promíscua e/ou manipulada, havendo até um carro dissidente que alega ter sofrido discriminação em 2008. Um espírito mais gregário como o de Harvey Milk está nos fazendo muita falta. Disperso e até certo ponto beligerante, o pessoal GLBT só tem a perder. O Rio de Janeiro, uma cidade visitada por GLBTs do mundo todo, até hoje não conseguiu eleger sequer um vereador gay. De certo modo o Rio de Janeiro, em alguns aspectos, está mais atrasado que São Francisco nos anos 70 pós Harvey Milk. Enquanto isso proliferam os assassinatos e agressões de gays no país e na cidade, ainda que leis de ordem municipal anti-homofobia tenham sido aprovadas e de difícil aplicação conforme a região em que se está. Experimentem vocês que forem gays, dar um bom beijo na boca do namorado num vagão cheio de um trem da Central do Brasil ou na muvuca do Largo da Carioca...Mas isto daria um “outro filme”...
Ps 27 de fevereiro de 2009
"Milk-A Voz da Igualdade" ganhou Oscar de melhor ator para Seann Penn e de roteiro original. Este último apesar de arestas comentadas é merecido. Seann Penn está extraordinário e merecia também o Oscar. Mas Mickey Rourke em "O Lutador" está também extraordinário. São duas formas diferentes de atuar. A de Seann Penn é mais camaleônica. Ele construiu um personagem bastante diferente de si. Já Mickey tem angústias com ponto de contacto com seu personagem. Isto não quer dizer que seu trabalho não tenha bastante elaboração e sensibilidade para atingir a maior intensidade e peculiaridades das dores existenciais do lutador fracassado. Lembremos que Darlene Glória na época em que atuava em "Toda Nudez Será Castigada" de Arnaldo Jabor vivia problemas pessoais intensos, os quais trouxe para seu personagem Geni. Isto não impede que tenha tido uma das interpretações mais viscerais e antológicas do cinema. O mais justo seria um Oscar ex-aequo para Seann e Mickey.
Nelson

Nelson Rodrigues de Souza

5 comentários:

  1. :A terra da floresta dos preconceitos vem sendo alimentada,incansavelmente,com sementes de orgulho por gente como você.Fecundará,Nelson,fecundará.E discordo num detalhe: o filme é essencial
    Ontem,na sessão das 19.50, o Vivo Gávea estava lotado e penso que a mensagem de Milk: "se as pessoas conhecerem um gay de perto,verão que se trata de gente normal, de gente boa" funcionou.
    Parabéns pelos seus textos que sempre adicionam,esclarecem,
    Bjs
    Thereza

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  2. oi,
    fico muito feliz por poder interagir e participar de tão precioso espaço cultural.
    ainda ñ vi o filme.
    comento, a posteriori.
    bjs.
    pros 2.

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  3. Que bom que Gus Van Sant registrou a história de Harvey Milk para a posteridade. Os vilões permanecem os mesmos: certos políticos e líderes religiosos homofóbicos. A fila anda e a luta continua... (Acyr).

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  4. Muito bom o artigo de Contardo Calligaris sobre "Milk-A Voz da Liberdade" que reproduzo adiante.
    Nelson


    Folha de São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009


    CONTARDO CALLIGARIS

    "Milk", o preço da liberdade

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    Para continuarmos livres, é preciso defender a liberdade do vizinho como se fosse a nossa
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    ASSISTINDO a "Milk - A Voz da Igualdade", de Gus Van Sant (extraordinário Sean Penn no papel de Harvey Milk), lembrei-me de um e-mail que recebi em abril de 2008. Era uma circular de www.boxturtlebulletin.com (um site sobre os direitos das minorias sexuais), que "comemorava" os 55 anos de um evento sinistro: em 1953, Dwight Eisenhower, presidente dos EUA, assinou um decreto pelo qual seriam despedidos todos os funcionários federais que fossem culpados de "perversão sexual". Essa lei permaneceu em vigor durante mais de 20 anos: milhares de americanos perderam seus empregos por causa de sua orientação sexual.
    Fato frequentemente esquecido (um pouco como foi esquecida, durante décadas, a perseguição dos homossexuais pelo nazismo), nos anos 50, no discurso do senador McCarthy, a caça às bruxas "comunistas" se confundia com a caça às bruxas homossexuais. Por exemplo, uma carta do secretário nacional do Partido Republicano (citada na circular) dizia: "Talvez tão perigosos quanto os comunistas propriamente ditos são os pervertidos escusos que infiltraram nosso governo nos últimos anos". Essa não era uma posição extrema: na época, a revista "Time" defendeu o projeto de despedir todos os homossexuais que trabalhassem para o governo federal.
    É nesse clima que, nos anos 70, em San Francisco, Milk se tornou o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público.
    Poderia escrever sobre as razões que, quase invariavelmente, levam alguém a querer esmagar a liberdade de seus semelhantes. O segredo (de polichinelo) é que muitos preferem odiar nos outros alguma coisa que eles não querem reconhecer e odiar neles mesmos. E poderia contar a história de Roy Cohn, braço direito de McCarthy, que morreu, em 1984, odiando e escondendo sua homossexualidade e gritando ao mundo que a causa de sua morte não era a Aids (ele foi imortalizado por Al Pacino na peça e no filme "Anjos na América", de Tony Kushner).
    Mas, depois de assistir a "Milk", estou a fim de festejar o caminho percorrido em apenas meio século: o mundo é, hoje, um lugar mais habitável do que 50 anos atrás. Aconteceu graças a milhares de Harvey Milks e a milhões de outros que não precisaram ser nem homossexuais nem comunistas nem coisa que valesse: eles apenas descobriram que só é possível proteger a liberdade da gente se entendermos que, para isso, é necessário defender a liberdade de nosso vizinho como se fosse a nossa. Nos anos 70, quase decorei a carta aberta que James Baldwin (escritor, negro e homossexual) endereçou a Angela Davis (jovem filósofa, negra e militante), quando ela estava sendo processada por um assassinato que não cometera, e o risco era grande que o processo acabasse em uma condenação "exemplar". Baldwin lembrava as diferenças de história, engajamento e pensamento entre ele e Davis, para concluir: "Devemos lutar pela tua vida como se fosse a nossa - ela é a nossa, aliás - e obstruir com nossos corpos o corredor que leva à câmara de gás. Porque, se eles te pegarem de manhã, voltarão para nós naquela mesma noite".
    Os direitos fundamentais não são direitos de grupo, eles valem para cada indivíduo singularmente, um a um. É óbvio que grupos particulares (constituídos por raça, orientação sexual, ideologia, etnia etc.) podem e devem militar coletivamente pelos direitos de seus membros, mas, em uma sociedade de indivíduos, a liberdade de cada um, por "diferente" que ele seja, é condição da liberdade de todos. Por quê?
    Simples: se meu vizinho, sem violar as leis básicas da cidade, for impedido de ter a vida concreta que ele quer, então meu jeito de viver poderá ser tolerado ou até permitido, mas ele não será nunca mais propriamente meu direito. "Milk" é um filme sobre um momento crucial na história das liberdades, mas não é um filme "arqueológico". A gente sai do cinema com a sensação renovada de que a militância libertária ainda é a grande exigência do dia. Ótimo assim.
    Um amigo me disse recentemente que eu dou uma importância excessiva à contracultura dos anos 60/70. Acho, de fato, que ela foi a única revolução do século 20 que deu certo e, ao dar certo, melhorou a vida concreta de muitos, se não de todos. Acho também que suas conquistas só se mantêm pelo esforço cotidiano de muitos. Afinal (quem viu o filme entenderá), surge uma Anita Bryant a cada dia.

    ccalligari@uol.com.br

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  5. Recebi email de um amigo meu muito oportuno com pontos de contacto com o filme "Milk".
    Nelson

    Amigos,

    Enquanto rememoramos numa das cenas de "MILK" um protesto contra a demissão de professores gays americanos, em Brasília...

    Audiência pública discutirá caso de preconceito

    Estruturação, grupo LGBT de Brasília, e a deputada distrital Erika Kokay decidiram pela realização de uma audiência pública e a
    elaboração de um requerimento para que a Câmara Legislativa receba oficialmente informações sobre o processo administrativo instaurado na regional de ensino de Brasília, a respeito da demissão do professor Márcio Barrios.

    O professor de inglês foi despedido do Centro de Língua Brazlândia (DF) por apresentar aos alunos a música "I Kissed a Girl" de Katy
    Perry. A escola alegou desobediência do professor que havia sido orientado a não usar material que tratasse de homossexualidade.

    "Vamos utilizar todos os meios possíveis para que o preconceito demonstrado pela escola e pela Secretaria de Educação do DF não
    vença. No mais, por incentivo desse caso, vamos aprofundar a questão sobre como o sistema público de ensino da capital federal trata,conceitualmente e de forma prática, a diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero, prevista como ponto de debate nos Parâmetros Curriculares Nacionais, que regem a educação nacional",
    declara Milton Santos, presidente do grupo Estruturação.

    Ainda segundo Santos, a audiência pública será um momento para cobrar o cumprimento do que foi decidido na I Conferência Distrital LGBT, realizada em 2008 pelo Governo do Distrito Federal e pela sociedade
    civil. "O que é preciso ser feito para uma educação inclusiva e humana está no produto dessa conferência. Agora queremos a
    concretização dessas propostas."

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