quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O Inútil Imprescindível- Um Conto Sobre Desejos



O Inútil Imprescindível

Passeando irrequieta por uma passarela do Aterro, atordoada pelo rumor estridente das buzinas e a corrida alucinada dos carros, Sara lembrou-se do desabafo de um professor seu: “Fazer cinema no Brasil é uma arte que é como construir estátuas de ouro”. Sara só se descolou da lembrança dos frustrantes revezes em seu projeto nos últimos dias, quando observou um movimento frenético de corpos na ramagem próxima. Constatando a presença de um dissimulado casal de amantes a tolhida cineasta mergulhou novamente nas suas labirínticas dores, debruçou-se na grade da passarela e deitou os olhos sobre a neurótica paisagem. “A única realidade do cinema brasileiro foi o pornô”- eis mais uma das reminiscências que agora insistiam em aguçar-lhe o espírito. Não poderia imaginar ao iniciar um filme sobre Santos Dumont que logo se veria contaminada pelas angústias que queria retratar.

A tarde já dera o máximo de si naquela sexta-feira e Sara foi afastada do torpor por uma voz inesperada: “Assim você cai lá embaixo!”. Quem a interpelava era um rapaz de olhos ávidos, fisionomia em que predominava um amigável sorriso com os dentes bem alvos e o corpo já de um homem ainda que um ar juvenil denunciasse os reais vinte e um anos que tinha. “Só estava contemplando a movimentação”, observou Sara, envergonhada. Ela devolveu-lhe a ponderação dele alegando que era perigoso ficar por ali naquelas circunstâncias eróticas e como ambos infringiram as normas da boa segurança pessoal só lhes restou se apresentarem e caminharem para um barzinho da cidade, segundo sugestão de Lucas. Sara simpatizou com o estranho, sentiu que ele não lhe inspirava cuidados como certos estranhos suspeitos e ambos trataram logo de quebrar o gelo que se instalara durante os passos iniciais da caminhada.

- Você também me parece bem triste – respondeu Sara, quando Lucas perguntou-lhe se ela estava muito triste com alguma coisa.

Lucas estranhou quando a companhia apresentou-se como uma cineasta. Para ele essa era uma profissão que só se via no cinema. Não poderia imaginar que na heterogênea clientela do Aterro encontraria alguém dessa atividade. O seu trabalho de digitador numa firma o tolhia demais na sua criatividade para imaginar que alguém conseguisse viver criando. Foi com certo espanto e incredulidade que ele a ouviu relatar as vicissitudes que atravancaram o desenvolvimento do seu primeiro longa metragem. Sara estava fazendo um filme sobre Santos Dumont, um terço da obra tinha sido rodada, gastou bem mais do que esperava, o resto do financiamento não veio e os componentes da equipe e atores tinham outros compromissos e se dispersaram.

Sara perguntou-lhe se ele costumava ir ao cinema, se ele iria ver um filme sobre Santos Dumont. Lucas foi sincero: “De vez em quando eu vou ver um filme, mas vou mais no Orly pois lá tem “pegação”... Não sei não se eu iria ver um filme sobre Santos Dumont. Eu tenho vontade é de fazer uma viagem de avião.

Intrigada com a audácia do rapaz Sara quis inteirar-se mais detalhadamente da vida que ele levava:

- Você vai muito a esses lugares?

- Gostar mesmo de ir eu não gosto. Mas com pouco de dinheiro que a gente tem, quando pinta a carência não tem outro jeito.

- Eu sinto que você não está bem, está melancólico.

- É que hoje terminei de vez um namoro que eu tinha. Eu estou pensando até em mudar do apartamento em que nós moramos, mas não sei ainda. Ele quer que eu fique lá como amigo, mas eu não sei não.

A revelação desses outros problemas suscitou no espírito de Sara uma nova curiosidade. Por alguns momentos se esqueceria de seu frustrado projeto.

- Eu tento compreender, ser a mais generosa possível, mas eu não consigo. Como é que rapazes bonitos como você, simpáticos, o corpo bem cuidado, desprezam tantas mulheres que devem se sentir atraídas e vocês mergulham nessas aventuras aqui no Aterro ou em cinemas suspeitos? Convenhamos, não é um desperdício?

- A vida tem muitos mistérios. Eu também não posso entender como é que uma mulher ainda cheia de vida como você pensa em se jogar de uma passarela porque o filme ou sei lá o que não deu certo.

- Eu não sou louca de me jogar lá de cima! – disse Sara irritada. Eu só estava observando os carros. Quem quer se matar vai a outro lugar. Ali é muito baixo.

- Pois a impressão que eu tive é que você ia se jogar.

- Eu estou aborrecida sim, mas não a esse ponto.

- O meu trabalho também está uma droga, mas eu não esquento não. Vou levando. O que eu não dispenso mesmo é transar do jeito que eu gosto. Esse prazer ninguém me tira!

- Você não sente falta de aprender, de freqüentar teatros, cinemas, ler bons livros?

- O Celso andou me carregando para esses lugares. Enquanto ele pagava tudo bem, mas depois que a gente decidiu rachar tudo, o meu dinheiro não dá para essas coisas. Eu não tenho conseguido nem ir a todos os bailes pré-carnavalescos e ensaios de escola de samba que eu quero.

- Para você cultura então é supérflua, não vale a pena investir?

- Eu tenho as minhas prioridades. Tem tanta coisa que eu gostaria de fazer e não posso. Viajar... Que pelo menos eu possa morar, comer e fazer amor que ninguém é de ferro!

- Você não sente certo vazio nestas suas relações? Você não tem vontade de ter um filho? Não me interprete mal. Não é que eu acredite que o sexo só tenha sentido na procriação, mas é que depois de certo tempo de vida em comum com alguém a gente sente falta de uma criança para selar a união. A gente quer ter um filho com a pessoa que ama. Você não se sente frustrado?

Agora foi Lucas quem se irritou. Sentindo-a assustada ele moderou o tom da resposta:

- O dia em que eu tiver muito dinheiro eu vou ter um filho sim. Mas eu tenho de encontrar uma mulher que tenha uma boa cabeça e me aceite como sou!

Envergonhados um com o outro caminharam então em direção ao Amarelinho, calados. O silêncio foi quebrado quando Lucas fez questão de mostrar os michês que faziam ponto na calçada. “Por enquanto eu ainda não preciso dessa vida” – disse ele brincando.

Sara sorriu nervosamente. Lucas fez questão de uma mesa mais ao fundo: “Ali na frente os mendigos não nos deixam em paz”. Quando ele quis conhecer um pouco das atribulações afetivas de Sara, antes que ela respondesse, a conversa foi interrompida por Celso. Sara foi apresentada, pediu-lhes licença por alguns instantes e foi ao toalete feminino. A razão pela qual Celso o procurou tanto pela cidade era por ter visto as malas prontas e queria a todo custo demovê-lo da idéia de sair do apartamento.

- Não vai me dizer que você vai viver em Marechal Hermes com os seus pais? Além das limitações óbvias, você teria o maior problema de condução. Porque não podemos continuar como amigos? Você pode muito bem ficar no apartamento.

Lucas ficou de pensar melhor na proposta. Com a volta de Sara, a pedidos, pois pretendia despedir-se deles, instalou-se à mesa um novo clima. Como a curiosidade de Celso em relação à cultura era maior, a cineasta explicou mais detalhadamente o filme que pretendia fazer:

- A história se passa em julho de 1932, no Guarujá. Santos Dumont recebe notícias do emprego de teco-tecos na Revolução Paulista de 32 e como já estava deprimido desde o retorno da Europa no ano anterior se desespera. Antes do gesto fatal a sua vida passa-lhe pela cabeça como um filme. Aparecem então imagens não cronológicas de sua vida: o primeiro vôo mecânico do mundo devidamente homologado no 14 bis a 23 de outubro de 1906 ( a minha intenção era com efeitos especiais dar a idéia de um aeroplano voando a uma altura entre dois e três metros numa distancia de 60 metros), os inventos que criou anteriormente (em dez anos planejou mais de vinte), as façanhas posteriores ao 14 bis (ele criou um precursor do hidro-avião, foi o primeiro a obter carta de piloto de balão dirigível, monoplano e biplano), a vez em que em 1898 aplicou motor pela primeira vez a um modelo de balão, a viagem que fez com a família para a Europa em 1891, o abalo no sistema nervoso por ter eclodido a primeira guerra, quando o avião começou a ser utilizado como arma, a polêmica com os irmãos Wright, os livros que publicou. Uma das imagens recorrentes seria ele quando garoto, lendo Julio Verne, principalmente “Vinte Mil Léguas Submarinas”.

Sara se empolga. Celso e Lucas imaginam-se diante de uma tela.

- Mas o meu filme se concentraria mesmo é nos últimos momentos. Santos Dumont deliraria e como um personagem do Glauber diria à la Ernesto Sábato: “Eu queria ser um gigante técnico, não um infante ético!”. “Será que a decência e a ciência são demais para uma só pessoa?” A ultima imagem seria Santos Dumont na atualidade diante da Usina Nuclear de Angra dos Reis. Ali ele se despediria de nós.

- Vamos pedir mais uma rodada de cerveja – insistiu Lucas para elevar o astral.

Sara com o copo pressionando fortemente o queixo fez questão de acrescentar que iria terminar esse filme. Lucas ouviu-a sem conseguir disfarçar o enfado, Celso prestou-lhe a maior atenção. Como ela quisesse ouvi-los agora, o novo interlocutor sentiu-se compelido a falar do seu emprego:

- O meu trabalho é mais tranqüilo, mais seguro. As pessoas agora se conscientizaram do valor que tem um bom preparo físico e estão procurando em grande escala a nossa academia. Não tenho do que me queixar não. Meus amores é que são meus problemas – acrescentou rindo, olhando para o companheiro.

Sara inquietou-se com o novo estranho que agora se desvendava para ela. Contemplou-o detalhadamente e embora reconhecesse nele traços mais delicados do que os do colega, o ar de quem foi bem criado, tratado, não poderia conceber tratar-se de mais um homossexual. Convidada a conhecer o apartamento de ambos no Flamengo, ela os acompanhou num misto de curiosidade, receio e fascinação. Prestando mais atenção na compleição física dos rapazes é que ela lembrou-se do quanto estava descuidando do próprio corpo. Ciente de que Celso não fumava, bebia pouco e obsessivamente cuidava de sua comida natural ela descobriu-se envelhecida para os seus parcos trinta anos. Ao chegarem, Lucas, por ter bebido bastante e com sonolência, foi logo dormir. Examinando-a detidamente o belo anfitrião Celso observou:

- Você é uma mulher bonita. Só que está muito maltratada. Precisa se cuidar. Desde o momento que lhe conheci até agora você já fumou vários cigarros!

- Pois vocês dois também não exagerem na ginástica senão vão ficar com bíceps horrorosos de Mister Universo! Aquilo eu já acho ridículo.

- Não se preocupe. Eu não mergulho fundo como você. Eu me interesso por tudo um pouco. Você pode me encontrar fazendo ginástica, dando aula, no cinema, no teatro, lendo (ultimamente eu tenho me interessado pelo espiritualismo). De tudo eu gosto um pouquinho. O que eu não consigo fazer é entregar a vida a uma coisa assim como você. Pra mim a vida está adiante de tudo!

- Eu hoje estou muito cansada. Eu gostei muito de vocês. Meu apartamento em Copacabana está uma zona. A gente discute essas coisas outro dia.

- Por que você não dorme aqui?

Quando Celso dela se aproximou, abraçou e beijou-a dizendo-lhe que ela estava carente demais naquela noite para dormir sozinha, ela experimentou desencontradas emoções. O impulso inicial era desvencilhar-se, mas não resistiu. Sentiu-se forte em tê-lo despertado para o amor. Apenas ousou murmurar “Mas e Lucas?” “Lucas e eu terminamos tudo. Quando eu disse a você que gosto de tudo um pouco eu não estava mentindo! Não se preocupe com Lucas”.

A impulsiva cineasta mergulhou nesse enredo que o destino lhe preparou com a mesma pertinácia habitual. As visitas ao novo cenário foram freqüentes. Por algum tempo tratou de esquecer o filme inacabado e se dedicou aos dois. Um tanto incomodada por estar namorando Celso agora ela procurou tratar o ex-companheiro do amante com mais cuidado e carinho para não tê-lo como desafeto. Lucas ouvia as sugestões que ela lhe dava para que ele redimensionasse a sua vida, as exortações para que ele estudasse, não se conformasse com o emprego que tinha, pois merecia muito mais. Eles muitas vezes lançavam-lhe observações que a desconcertava. Quando discutiram uma peça que acabaram de assistir, “Heda Gabler” de Ibsen, Lucas foi incisivo: “Não vi nada demais. Eu não entendo pra que a gente entrar nessa correria para se arrumar, chegar mais cedo para obter um bom lugar e assistir essa encenação. O que a gente viu no palco eu vejo todo dia lá no trabalho. O fingimento é o mesmo!”

Quando Sara manifestou o seu espanto com a bissexualidade do amigo, em meio a complicadas teorias que os dois amantes procuravam tecer, Lucas exprimiu-se de forma sintética: “Ele é uma pessoa que não vive sem pai e mãe!” Dentre vários temas, Sara criticava o namorado por apaziguar facilmente a consciência e acreditar que a miséria não é conseqüência apenas de mazelas sociais – “Existem razões transcendentais que explicam isso. Um miserável está depurando o seu karma. Se algo mudar na estrutura social esse sofrimento que já ocorreu, que é irremediável como é que se explica? Não é uma questão apenas de luta de classes. A vida não teria sentido sem essas razões”. Lucas por outro lado, saia pela tangente: ”Eu não sou um miserável, mas também não sou lá muito privilegiado. Eu me considero suspeito para opinar...”

Instigada pelos hábitos dos novos amigos, Sara mesmo com todo tédio que os exaustivos exercícios lhe inspiravam acompanhou-os durante algumas horas por dia na academia para combater as gorduras salientes e perseguir o modelo vigente de elegância: quanto mais esguia melhor. Como se sentisse impotente para levar adiante seu projeto cinematográfico e o dinheiro que lhe sobrou ainda lhe permitia alguns meses de aluguel e comida, tratou de não se desesperar e cuidar um pouco mais de si. Precisaria estar em forma quando se envolvesse numa nova peleja com o celulóide ou a câmera digital. Quando mostrou a câmera leve que tinha aos amigos lembrou-se dos filmes de John Cassavetes, de baixo custo, envolvendo familiares, amigos e se não fosse por insistência dos dois que estavam mais curiosos a respeito de cinema, ela não se estenderia no assunto dado que lhe incomodava ainda a recordação dos desapontamentos recentes. Ao vir à tona a questão do erotismo no cinema ela deixou claro que o que mais a repelia nos filmes pornôs que as pessoas viam em casa, além dos feios e grosseiros enquadramentos era a falta de amor. Se o casal realmente representasse estar se amando, se a cópula não fosse tão repugnantemente animal, mecânica, o efeito seria outro. Tais malabarismos só seriam perdoáveis se aparecessem de uma forma crítica em relação à sensaboria das relações do mundo dito real. Mesmo se reprimindo, ela volta e meia se surpreendia falando dos filmes. A tal ponto que Celso chamou-lhe a atenção por ela não reverenciar a beleza das paisagens, como o entardecer na praia, o luar de verão e ser tocada somente pelas imagens “falsas”. Assumindo o fanatismo ela os escandalizou a ponto de dizer que um mar de plástico de Fellini lhe emocionava mais que até mesmo uma tarde de sol e chuva invadida por um arco-íris. Lucas reforçando suas preferências lembrou-lhes que além do mais “a natureza oferece seus espetáculos de graça”.

Ao contemplar os amantes envolvidos em mais uma de suas discussões intermináveis (Sara desprezava os dvds alegando que assistir a um mesmo filme na tela pequena e depois no cinema é como passar da masturbação a uma relação sexual), Lucas abandonou a companhia da televisão e descobriu-se vasculhando a estante de Celso, procurando algo para ler. A vertiginosa profusão de títulos o angustiou: sentia vontade de começar algo que ele não sabia bem o que era e muito menos por onde. O título “Fragmentos de Um Discurso Amoroso” foi decisivo para a sua escolha. Sem deixar espaço para nenhum comentário irônico, iniciou a leitura com ar decidido, disposto a percorrer o itinerário traçado por Roland Barthes até o fim, de qualquer maneira. Orgulhoso, não perguntaria nem pediria nenhuma sugestão aos colegas. Enquanto os outros dois se pulverizavam com suas refregas ele treinaria, indiferente às disputas.

Sara não se conformava com o ecletismo do companheiro. Sentia-se incomodada com sua visão de mundo, com a maneira como acreditava que a otimização do bem estar pessoal físico e psíquico era a ideologia máxima. Quando Celso se valeu até de teorias freudianas como o instinto de morte, o reino de Tânatos, para explicar por que as pessoas, segundo ele, se deixam levar em arriscadas empreitadas alegando exacerbada coragem quando o que existe na realidade é sujeição aos impulsos autodestrutivos, ela reagiu prontamente como se a crítica lhe encaixasse como uma luva. “Eu amo a vida! A questão é que o meu trabalho é a minha vida” – observou enfática. Quando ela revidou que ele roçava apenas a superfície das coisas, não se entregando decisivamente a nada, fazendo das sucessivas atividades uma fonte de auto-engano, ele lembrou-lhe, pedindo-lhe que perdoasse a falta de originalidade, que apenas o tempo poderia responder qual a posição mais defensável.

Ainda que os dois às vezes se excedessem nas críticas lançadas um ao outro, eles sentiam que o relacionamento era profícuo, não viveriam juntos impunemente. Dos homens todos que conheceu nenhum a impregnara com tais carinhos e cuidados ao se amarem. Sem que ela nada pedisse, ele lhe adivinhava os pontos mais sensíveis e transbordava de afeto, longe da postura impositiva, egoísta e apressada de antigos amantes. Daí o tremor que lhe arrepiou o corpo quando Celso deixou de amá-la com o mesmo ardor, um mês depois de terem se descoberto. Os gestos carinhosos e o tacto continuavam os mesmos, mas ela sentia um ar de enfado, um toque quase burocrático a comandar os movimentos por mais generosos que eles se insinuassem. No café da manhã Sara, inebriada de sono, confusa, acreditou ver Celso servir o leite a Lucas com uma gentileza mais calorosa. Para ela os olhos de Lucas cintilavam mais satisfeitos nesse momento e uma irrefreável e dolorosa dúvida martelou-lhe a mente: “Teriam os dois amigos recuperado a atração desvanecida?”. Não foi uma vez apenas que ela sonhou com os dois amigos se amando sem se preocuparem com a sua presença, aguçando mesmo o frêmito ao perceberem-na por perto. Quando voltou de uns desgastantes e irrealizados contactos profissionais e deparou-se com Lucas sorvendo “Narciso e Goldmund”, um dos livros preferidos do amigo, acreditou não ter mais dúvidas. Logo se vexou com suas suspeitas, pois que mal havia que lhe fosse indicado um bom livro? Além do mais, ela e o amante já tinham se referido tanto a este romance de Herman Hesse que poderiam muito bem ter incitado a curiosidade do iniciado das letras. Mesmo assim ao se revirarem no sofá enquanto trocavam as novidades de mais um dia, teve a impressão que Lucas os observava por detrás do volume que disfarçava ler de forma compenetrada. Ao tomarem banho olhou-se detalhadamente no espelho e reconheceu dois ou três fiozinhos brancos nos cabelos e assustou-se. O corpo estava mais delgado, mas estava longe ainda do que desejava: a partir de manhã seguinte intensificaria os exercícios. Quando Lucas trouxe-lhes a toalha que esqueceram, sua impressão foi de que este demorou mais do que deveria na entrega ao amigo. A prodigiosa nudez do amante era um espetáculo que só a ela convinha.

Vendo Lucas quase ao fim do romance, Sara interrogou-lhe sobre o que achara. Ela não conteve o riso sarcástico quando ele lamentou não ter sido uma história de homossexuais como supusera no início, mas depois logo leria “Morte em Veneza” do mesmo autor. Sara esmerou-se em desabrida crueldade para chamar-lhe a atenção de que foi Thomas Mann e não outro quem escreveu este livro. O rapaz sem perder a empáfia respondeu-lhe: “Esses alemães são todos a mesma coisa!”.

Ao pressionar o companheiro, recriminando-o por não se comportar mais como nas primeiras relações ele admitiu que mudara sim:

- Acredite-me Sara, eu ainda gosto muito de você, mas eu sinto a nossa relação incompleta. Você me atrai sexualmente como poucas mulheres que conheci. É uma conjugação de corpo e espírito, uma aura que me fascina. Mas eu sinto falta das relações homossexuais que tinha. Este é um lado meu que eu não posso negligenciar. Eu me sinto mutilado com a exigência velada de fidelidade que você me faz. Você é possessiva até com o seu trabalho. A sua obsessão por um cinema de autor é uma medida boa desse seu zelo!

- Pois então você ainda não esqueceu Lucas! Vamos, admita que você ainda gosta dele. Ele eu sei que continua todo insinuante! - insistiu Sara, disposta a redefinir sua combalida relação.

- Eu não vou desmentir não. É um fato inegável. Mas porque criarmos uma tempestade em copo d’água com isso? É uma coisa tão natural, A atração está no ar. Para que nos castrarmos? Pense bem Sara, não me queira mal por isso!

Será que eu sou alguém tão descartável assim? Quando você se cansa, se enfastia, basta apelar para a sua porção-mulher e pronto? Um novo parceiro é possível... Será que você não entende que essa sua busca é estéril, vazia, inócua, inútil, vã? Sem certo sacrifício você não chegará a lugar nenhum!

O acusado companheiro inquietou-se com a agressividade e cobrança perpetrada por Sara, alterou o tom respeitoso que lhe dedicara até então e a fustigou, nervoso, alterado:

- Cada um tem a meta que lhe apraz. Eu lhe garanto que meus desejos homossexuais são mais consistentes do que os seus filmes. É a vida pulsando! Não é um simulacro de vida!

Sem dar tempo a Celso de se arrepender por ter desprezado os filmes que ela tanto amava, Sara apossou-se de sua bolsa e saiu em disparada atropelando Lucas que examinava os livros na estante.

Agoniados com a ausência prolongada de Sara, os dois amigos após ligarem para os lugares possíveis de acolherem-na, o apartamento dela inclusive, se sentiram na obrigação de procurá-la pela cidade. Chegaram até ao requinte de verificar se a impulsiva cineasta não passeava pela passarela do Aterro do Flamengo. No bar que costumavam freqüentar, também ela não foi encontrada.

Quando Sara voltou à uma hora da manhã, exausta, carregando uma pesada caixa, os dois cavalheiros suspiraram aliviados com a entrada de tão aguardada dama. “Eu preciso conversar com vocês dois. Por favor me ouçam!”. Enquanto desatou os nós das caixas e pediu-lhes que a ajudassem a arrumar os spots de iluminação que tinha emprestado de um colega, para ver se ainda estavam funcionando, iniciou o relato do seu presente estado de ânimo:

- Quando eu os conheci e me dei conta da relação homossexual de vocês o que mais me incomodou foi a descoberta de que homens como vocês pudessem viver dispensando mulheres assim como eu. Eu que já tinha sido humilhada demais na minha investida profissional não poderia permitir que duas criaturas charmosas assim, de gestos delicados, sem o tom pesado habitual dos machões convencionais, fossem deixar-me de lado inapelavelmente. Celso, quando nos tocamos pela primeira vez eu estava precisando muito de carinho, sentia-me frágil. Aos poucos eu fui me envolvendo cada vez mais, mas o que me atraiu em você foi o cuidado a mais, certa benevolência, paciência que nenhum outro homem havia me dado antes. Mas hoje, eu percebo que o que eu amo mesmo é essa parte delicada, é um sentimento ainda frágil, incompleto. Compreenda, eu já estava farta de lidar com aqueles trogloditas machistas. Mas eu tenho a certeza agora que vocês dois juntos são algo muito mais sensato. Eu já estou farta daqueles sacrificantes exercícios físicos. Eu vou levá-los agora no meu ritmo. Lucas, eu acredito que você deve estar também enjoado dessas leituras que se impôs. Vá com menor sede ao pote! É ridícula essa nossa concorrência... Vamos, eu quero ver vocês dois juntos!Vamos! Eu pensei muito antes de voltar aqui!

Mesmo envergonhados, mas comovidos por tê-la de volta sã e salva, não se viam no direito de desapontá-la. Abraçaram-se um tanto tímidos.

- Vamos abracem-se bem forte. Façam de conta que eu não estou aqui. Só vocês dois e uma paixão.

Os dois relutaram, mas depois a obedeceram. Sara continuou dirigindo-os:

- Celso mostre que você pode pelo menos uma vez na vida se entregar totalmente a algo, a alguém. Vai fundo! – insistiu Sara num corrosivo desafio.

Os reconciliados amantes intensificaram os afagos, Sara apossou-se de sua câmera, iluminou-os e iniciou a filmagem, pedindo-lhes que se descontraíssem:

- Não dêem e menor importância à minha presença. Façam o que tem vontade. Eu agora quero apenas os seus sussurros sejam audíveis. Ação!

E filmou-os pacientemente, desde o desnudamento ao muito aliciante balé que se desenvolveu numa frenética coreografia de pernas entrelaçadas, orelhas mordidas, pelos eriçados, beijos generalizados, culminado com o jorro duplo do intempestivo sêmen, como projéteis lançados ao vento inimigo. Sara acometeu-se de tal volúpia que não distinguiu mais que vontade lhe era mais determinada: o desejo de terminar de vez uma relação que lhe acarretava sofrimento ou o desejo de fazer um filme, ainda que curto. Enquanto filmava teve um insight sobre as angústias de Santos Dumont, o que aprimoraria seu filme quando o retomasse. De qualquer modo sacrificara mais uma vez sua vida ao imponderável.

Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. Nelsinho,adorei o seu conto quem sabe filmar o casal não era a inspiração que faltava para ela concluir o filme de sua vida!!!???

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  2. GOSTEI MUITO DO SEU CONTO, MOSTRA COMO É NECESSARIO LEVAR A VIDA COM MAIS LEVEZA E NATURALIDADE.
    O PERSONAGEM CELSO SERIA O HOMEM IDEAL DESSE NOSSO SÉCULO, ÉQUILIBRADO E COM UM SENSO DE LIBERDADE QUE POUCOS TEM, É COMO SE ELE FOSSE UM SER SUPERIOR QUE ESTIVESSE ACIMA DE SENTIMENTOS COMO CIÚME E POSSESSIVIDADE, UM HOMEM QUE SE CUIDA SE AMA E QUE CUIDA DOS OUTROS.

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