domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ganharás o pão com o sangue do teu corpo e dos outros.


Nos últimos anos temos tido uma saudável retomada do tema dos losers da sociedade americana, algo que era muito comum no Cinema Americano dos anos 60/70 e início dos 80, como em “Corrida Contra o Destino” de Richard C. Sarafian”, “Taxi Driver” e Touro Indomável” de Martin Scorsese, “Dias de Paraíso” de Terence Malick, “Esta Mulher é Proibida” e “A Noite dos Desesperados” de Sidney Pollack, “Um Dia de Cão” de Sidney Lumet, dentre outros.

De 1999 para o novo milênio, temos como destaque “Beleza Americana” e “Foi Apenas Um Sonho” de Sam Mendes (este já comentado em post anterior), “Bug” de William Friedkin, “Antes Que o Diabo Saiba que Você Está Morto” de Sidney Lumet, “Menina de Ouro” de Clint Eastwood”, dentre outros.

Esta temática é saudável por que só encarando as fraturas e equívocos de uma sociedade (jogados para debaixo do tapete da História) de frente, sem medo ou pudores, tocando diretamente nas feridas, é que se pode estabelecer novos parâmetros de convivência social que realmente redimensionem esta sociedade e tenha benignos reflexos sobre o mundo.

“O Lutador” (EUA/ 2008) impressionante e virtuosístico (no seu melhor sentido) trabalho de Darren Aronofsky consegue, mesmo dentro desta tradição e do que tem sido retomado, manter uma grande singularidade. É um filme direto, econômico, certeiro, de candente autenticidade.

Aronofsky tem sido um saco de pancadas de certa parcela da crítica nos últimos anos, o que tem sido uma injustiça. “PI” realmente é um filme hermético demais, mas não se pode negar certa originalidade, sendo uma obra no mínimo instigante. “Réquiem Para Um sonho” com sua montagem super-acelerada, com sua estética que lembra a de Danny Boyle em “Trainspotting”, é uma obra brilhante em forma e conteúdo que ressalta o horror da dependência das drogas, com uma participação notável de Ellen Burstyn, alheia ao que acontece com o filho, viciada que está em pílulas para emagrecimento que a faça estar em forma convencional para participar de um programa dos sonhos na televisão americana. Nunca um filme mostrou tão bem que o consumo de drogas é um caso de saúde pública e não de repressão policial. “A Fonte da Vida” foi bastante vaiado no Festival de Veneza de dois anos atrás e recebeu muitas bolinhas pretas e críticas péssimas. Não era para tanto. O filme tem imagens belíssimas, mas se ressente de uma montagem que abarca tempos diversos com rapidez e torna o filme confuso. Para as histórias que pretende contar com suas ressonâncias cruzadas, a obra teria que ser um pouco maior. Sente-se que coisas importantes acabaram ficando na sala de montagem. Aguardemos uma visão do diretor para o Cinema e DVD.

Mickey Rourke, ator ícone de filmes de prestígio como “O Selvagem da Motocicleta”, “O Ano do Dragão”, “Coração Satânico”, aliando forte beleza e sensualidade com talento interpretativo era um dos atores mais promissores dos anos 80, ainda que tenha participado de escorregadelas feias como “Orquídea Selvagem”, um daqueles filmes com “olhar estrangeiro”, feito no Brasil, calcado em fortes estereótipos. Se tivesse prosseguido em sua carreira que de forma alguma, no conjunto, estava em decadência, haveria muito brilho pela frente. Por uma destas razões que só quem as vivencia pode bem explicar o porquê, ele largou tudo e foi ser lutador de boxe. Resultado: sofreu várias operações que extinguiu a beleza que apresentava em seu rosto, com muito botox de efeitos desastrosos e passou a ter um físico discutível porque excessivamente bombado por anabolizantes e outros recursos perigosos.

“O Lutador”, com o encontro de Aronofsky e Mickey foi consagrado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2008. Mas houve a perda inexplicável e não convincente do prêmio de melhor ator para Rourke, o que foi corrigido com a premiação de melhor ator (dramático) no Globo de Ouro, Bafta, associações de críticos e classes dos EUA, despontando como favorito para o Oscar a ser entregue em 22 de fevereiro nesta categoria. Assim temos uma autêntica redenção para a carreira do ator, uma volta por cima extraordinária e de certa forma, feitas as ressalvas já apresentadas, uma “redenção” também para o diretor Aronofsky, agora com um filme bastante prestigiado. Vamos ver como seus detratores “vão engolir” este sucesso....

Há quem considere que em “O Lutador”, Mickey Rourke não representa. Estaria sendo ele mesmo. Esta infâmia já atingiu Marcela Cartaxo em “A Hora da Estrela” de Susana Amaral e o futuro provou como ela é muito boa atriz mesmo, além do papel antológico de Macabéa criado por Clarice Lispector e vivido pela atriz com grande sagacidade na ênfase da ingenuidade personificada (“Ser feliz serve pra quê?”). Rourke traz realmente muito de sua trajetória para o personagem do lutador de telecatch Randy “Carneiro”Robinson, alguém que foi herói dos anos 80 ao vencer uma importante luta e no presente vive de lutas mambembes arranjadas para uma platéia sequiosa de sangue e muita marmelada, num circo macabro, um teatro da crueldade longe da grandeza que Antonin Artaud imaginava. Mas é nas reações do personagem às situações delicadas, dentro e fora do ringue, em que sobrevive miseravelmente numa situação de flagelo humano, que vemos o talento de Rourke, algo que não é novidade, atingindo agora seu apogeu. São comoventes suas tentativas de restabelecimento de relações com a filha lésbica que abandonou (Evan Rachel Wood) e sua dedicação amorosa à stripper também decadente como ele, com um filho para criar ( Marisa Tomei, excelente, justificando sua indicação ao Oscar de atriz coadjuvante).

Randy participa de lutas arranjadas que nem por isto deixam de ser violentíssimas. Numa delas chega a cortar o rosto com um pedaço de gilete escondido no pulso, para ampliar a orgia de sangue a ser derramado no ringue diante da platéia histérica por ver o circo pegar fogo e trazer-lhe emoções baratas e destrutivas num jogo que envolve sadismo e masoquismo. Noutra seqüencia vemos um adversário fake de Randy colocar dinheiro pregado ao rosto grampeando-o, num ato tremendamente simbólico da degradação humana a que estes seres estão sujeitos. O corpo de Randy também é grampeado pelo adversário. Estas cenas de lutas são magnificamente filmadas, com fartas doses de realismo e só podem estar envolvidas nelas atores talentosos, pois não se nota uso de recursos digitais, apenas de maquiagem e de destreza física.

Randy sofre um infarto, o que faz com que seu médico o proíba de lutar. Ele que já fazia bicos como carregador, agora passa a trabalhar num supermercado na parte de frios, queijos e carnes. Suas relações com a filha e a stripper ficam conturbadas. Ele não encontra o apoio afetivo que desesperadamente precisa, o que é mostrado com comovente, desabrida e genuína habilidade interpretativa do ator. Uma luta revanche que retoma aquela célebre que foi feita nos anos 80 está marcada e não é difícil prever que novos caminhos o filme tomará, até certo ponto. Mas o impacto provocado é fortíssimo de qualquer maneira e pode ser renovado nas diversas vezes em que se assistir ao filme.

Randy explicando por que a vida dele só tem sentido na luta e não “no mundo lá fora” é uma das mais pungentes seqüencias do Cinema Contemporâneo. Como corolário, isto vai fazer o filme terminar com um dos mais tristes, secos e belos “happies-ends” que o Cinema já nos apresentou recentemente.

“O Lutador” de Darren Aronofsky como quem não quer nada, com expressiva simplicidade e força narrativa, com direção e interpretações brilhantes é mais uma eloqüente ficha para o inventário de cicatrizes que o chamado sonho americano tem gerado. Comentar isto pode já ter virado um grande clichê. Mas como isto tem sido mal-resolvido na prática! Quando os EUA vão despertar realmente deste pesadelo travestido de nobreza exemplar? Enquanto esta situação perdurar novas abordagens como a deste atordoante e emocionante “O Lutador” precisam ser feitas. Suas imagens potentes desmentem qualquer retórica de discursos sedutores, mas com pés de barro camuflados.

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Considero O Lutador um bom filme. Bem dirigido e com excelentes atuações de Mickey Rourke, Marisa Tomei e Evan Rachel Wood. Mas, fiquei com a sensação de "já ter visto esse filme". Acho que Aronofsky não conseguiu fugir ao lugar-comum, embora tenha "realizado-o" com apuro estético.
    Talvez minha visão fique comprometida pelo fato de o universo da luta livre me causar asco. É preciso ser sadomasoquista para encarar aquilo - tanto os lutadores quanto o público.
    Dá para entender racionalmente as razões de Randy para permanecer nos ringues, onde se sentia uma espécie de deus; onde era amado, valorizado e fugia à vida "medíocre" dos simples mortais ( a cena em que deixa o trabalho no supermercado é fantástica!)Mas, não senti pena dele, porque acho que a solidão foi fruto das suas escolhas. Quando a filha, que muito sofreu por causa delas, começa a aceitar a aproximação do pai, ele novamente a decepciona. Enfim, à sua maneira, ele foi feliz, porque optou pela "glória" - ainda que fugaz, irreal.
    Abraços. Gina

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