domingo, 5 de abril de 2009

José Castello- Escrita da Solidão/Vazio que Define o Mundo-Uma crítica de “Leite Derramado" de Chico Buarque



Fazer crítica de Cinema eu ainda me atrevo. Mesmo com as carências do circuito exibidor muita coisa em diferentes graus de qualidade ainda pode ser vista. Mas eu que me atrevo a criar em Literatura com meus contos e poemas, jamais me aventuraria no universo da crítica literária, a não ser numa visão ensaística assumidamente bastante subjetiva. O número de livros lançados semanalmente e o tempo para lê-los é tão grande que jamais ficaria com a consciência tranqüila ao confrontar um livro com outros. Lacan já disse: “Quem compra um livro deve também comprar o tempo para lê-lo”. E assim, desobedecendo Lacan estou com pilhas de livros e revistas por serem lidos, o que espero sanar, em parte, num período de convalescência de uma operação que irei fazer, que não é, graças a Deus, nenhum bicho de sete cabeças. 

Inaugurando uma parte que farei com mais freqüência aqui no Blog, onde pretendo inserir artigos na linha “Vale a Pena Ler de Novo”, trago para iniciar esta proposta uma resenha/crítica que considero uma obra-prima do gênero. Depois de lê-la dá vontade de sair correndo para comprar “Leite Derramado” do Chico Buarque, interromper tudo e só sossegar quando terminar o livro. Fiz isto uma vez, quando não deveria, com “Cem Anos de Solidão” de Gabriel Garcia Marquez e de tão possuído que estava querendo ler com atenção e chegar ao fim, deixei pra lá os estudos necessários para provas no curso de Engenharia. Tive notas baixas, mas consegui me recuperar depois. 

Dentre os críticos de jornais atuantes, mesmo com o bastante respeitável e sempre presente durante anos Wilson Martins, não conheço ninguém tão interessante quanto José Castello. Leio sempre suas críticas e mesmo quando não vou à busca do livro comentado, sempre estou aprendendo muito sobre o mistério do fazer literário (e por extensão de outras artes também). 

Gostei muito de “Estorvo” de Chico Buarque” mas me irritou um pouco a adaptação que Ruy Guerra fez para o cinema, um filme exageradamente hermético, o que o livro não é. Já a adaptação de “Benjamin” por Monique Gardenberg me soou um tanto morna demais. Estou com a maior fissura para ver o que Walter Carvalho fez com “Budapeste”, que estréia em breve. Espero que Chico tenha logo seu “Leite Derramado” numa adaptação cinematográfica à sua altura. Mas vamos ao texto de José Castello, primeiro de uma série de “convidados” do Blog. 

Castello escreve tão bem que quando eu crescer, quero escrever igual a ele. Ainda dá tempo? 

Nelson

Escrita da solidão/Vazio que define o mundo 

José Castello 

O Globo- Caderno Prosa e Verso de Sábado, 28 de março de 2009 

A memória é um túnel escuro, infestado de armadilhas. É, ainda, o lugar da solidão mais tenebrosa: em seus escaninhos, o sujeito não conta com ninguém _ nem consigo mesmo. Nesse mundo pastoso, em que as coisas aparecem e desaparecem sem dar explicações, se desenrola a trama de Leite derramado, quarto romance de Chico Buarque de Holanda, que chega às livrarias com o selo da Companhia das Letras.

Trama? A narrativa de Chico se faz mais daquilo que escorre entre as palavras, do que com as verdades que elas costuram. Leite derramado é o mais hábil e inspirado romance que ele já escreveu. Por conta do papel crucial que ocupa no cenário da música popular, Chico Buarque ainda é visto, muitas vezes, como um aventureiro que se dedica, nas horas vagas, por esporte ou por vaidade, à literatura. A qualidade de Leite derramado _ um dos mais importantes romances lançados no país nessa primeira década do século 21 _ desmonta, de vez, as superstições e preconceitos que deformam sua figura de escritor. Chico não é só um músico de sucesso que faz literatura. Ele está entre os grandes narradores brasileiros contemporâneos.

No leito de um hospital, Eulálio Montenegro d’Assumpção, o narrador de Leite derramado, “dita” suas memórias para uma mulher. O vulto que se entrevê é o de uma enfermeira, mas ele se confunde ora com a filha, Maria Eulália, outras vezes com a ex-mulher, Matilde, falecida nos anos 20. O próprio Eulálio é, no fim das contas, o destinatário de seus ditados, através dos quais ele ordena não só sua história pessoal, mas o passado de seus antepassados, e, assim, a própria história do Brasil republicano.

“Estou pensando alto para que você me escute”, Eulálio diz a sua interlocutora. Nos corredores da agonia, o futuro se estreita. “Já para o passado tenho um salão cada vez mais espaçoso”, ele constata. Leite derramado é não só uma incursão pelo passado, mas uma desmontagem desse salão de lembranças no qual, como sugere o título do romance, quase tudo se perdeu.

A narrativa do centenário Eulálio vem borrada pelas deformações próprias da memória. E também pelos estragos que os sonhos nela produzem. “Dia desses fui buscar meus pais no parque dos brinquedos, porque no sonho eles eram meus filhos”, vacila. Do mesmo modo, a literatura não passa de um tapete estendido sobre um alçapão. Rombos, remendos, rasgões expõem uma verdade que se esfarela. Eulálio se torna, assim, um refém imóvel de fatos que lhe fogem. Assemelha-se a Balbino, o ex-escravo de seu avô abolicionista, um servo leal que, “fiel como um cão, ficou sentado para sempre sobre a tumba dele”.

À espera da morte, ele se parece com um objeto. Os enfermeiros o arrastam pelos corredores, submetendo-o a raios-x e tomografias cujos resultados nunca exibem. Para se conservar vivo, o narrador de Chico se apega aos últimos fios do passado que, com grande esforço, repuxa de dentro de si. Às apalpadelas, reconstitui seu primeiro encontro com o francês Jean-Jacques Dubosc, que desembarcou um dia no Rio de Janeiro para infernizar, para sempre, a sua vida. O jovem Eulálio estava no cais, à espera do futuro patrão, e aproveitou a presença de um fotógrafo para se imortalizar em um instantâneo. Quando, já velho, reencontra a fotografia, nela se vê “contrariado, parecendo quase um lacaio, carregando um sobretudo e uma pasta de couro alheios”. Jamais foi dono de si: a história _ como uma maca _ sempre o carregou.

Seu próprio nome, Eulálio, é um grilhão que o prende a uma corrente de homônimos _ pai, avô, bisavô, tetravô, todos Eulálio também. “Era menos um nome do que um eco”, ele diz. Por suas lembranças, circulam presidentes da República, como Venceslau Brás e Epitácio Pessoa. Nomes fortes que massacram o seu. Só quando dito pela falecida Matilde, o grande amor de sua vida, o nome Eulálio ganha uma singularidade e parece lhe pertencer. “Em sua voz ligeiramente rouca, parecia que meu nome Eulálio tinha uma textura”. Sem a voz do outro, um nome não é nada.

A memória o conduz a um inferno de dúvidas. O pai, o senador Eulálio Ribas d’ Assumpção, foi assassinado pelos adversários políticos, ou pelo marido de uma amante? Seu avô Eulálio, um benfeitor da raça negra que foi comensal de dom Pedro II e se correspondeu com a rainha Vitória, era um visionário? Ou foi só um derrotado, que morreu de amargura? Os médicos que agora o tratam desejam curá-lo, ou envenená-lo? A mulher que o ouve o ampara, ou o ignora?

Aos poucos, Eulálio se defronta com a inconsciência dos atos humanos. Foi ele próprio quem, pensando em vantagens materiais, entregou Matilde para o primeiro maxixe nos braços de Dubosc, o homem que a roubou. Também a cronologia não passa de um destroço, que atravanca seu acesso à história. “É esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram”, Eulálio se intriga. A memória só se sustenta se alguém a escuta e a acolhe. É o que o próprio Eulálio diz a sua interlocutora: “Sem você meu passado se apagaria”.

O genro, Amerigo Palumba, se casou com a filha Maria Eulália por amor, ou para lhe aplicar um golpe? Eulálio d’Assumpção Palumba Júnior é o neto que se tornou pai na prisão dos militares? Ou o bisneto que ele próprio educou? “É uma tremenda barafunda”, o narrador de Chico desabafa. Grande encrenca, armada por lembranças que não se encaixam, transformando a história em uma grotesca dança de máscaras.

“A memória é, deveras, um pandemônio”, Eulálio reclama. Nela, como flashes involuntários disparados por uma câmera louca, cenas antigas, de súbito, voltam à luz. É uma danação. Só 80 anos depois, por exemplo, Eulálio se dá conta de que um vestido rodado, que o pai comprara para dar de presente, era um prenúncio de sua morte. No poço de sua mente flutua, ainda, certo chalé da Copacabana dos anos 20, entre cujas paredes a vida de Eulálio se comprimiu. Depois da morte do pai, a mãe o despachou para a Europa, para negociar com os agentes financeiros do falecido. Na Paris de 1929, encontrou um mundo adoecido de sua própria riqueza. Voltou de mãos vazias. Não existe um instrumento que recolha aquilo que se derramou. 

Como uma xícara de leite, que nos esforçamos para sustentar, mas que, à nossa revelia, se inclina, também a realidade lhe foge entre os dedos. Matilde é filha legítima de um parlamentar liberal, ou fruto de uma aventura do deputado? Por que sua filha, Maria Eulália, hoje com 80 anos, perdeu todos os traços fisionômicos da mãe? Será ela filha de Matilde ou, como dizem alguns, foi encontrada em uma lata de lixo? As despesas de hospital são pagas pelo tataraneto, Eulálio d’Assumpção Palumba Neto; mas esse dinheiro benfazejo vem contaminado pelo tráfico de drogas. O que parece bom é ruim; o ruim, bom.

Durante longos anos, Eulálio guardou os restos de seu passado em uma fazenda herdada na Raiz da Serra. A propriedade é sua, mas não é: foi desapropriada pela União. No dia em que resolve conhecê-la, encontra a sede colonial em ruínas, a capela em esqueleto, o estábulo carbonizado. Não existe uma esponja que absorva o passado e o restaure. Todo o seu esforço é inútil.

A vida, ele aprende, é um rombo. Matilde o abandonou quando Maria Eulália era um bebê, sem deixar um bilhete, ou fazer as malas. Ela morreu em um desastre de automóvel na Rio-Petrópolis? Ou de tuberculose, em um manicômio? Anos depois, seus vestidos se transformam em figurinos para uma montagem teatral que a filha Maria Eulália planeja com uma amante. Roupas vazias de qualquer conteúdo. A ficção abocanha a realidade e a devora. Nada sobra.

Leite derramado despeja sobre o leitor, é verdade, uma profunda tristeza. Mas é uma tristeza fértil, que nos ajuda a matizar os grandes atos da história. Decepção que, no fim, se transforma em leveza. É aqui que Chico Buarque se torna um grande escritor. A voz vacilante de Eulálio Montenegro d’Assumpção duplica aquela voz interior que faz de nós, homens. Todos nos contamos histórias secretas, que nos conservam de pé. A ficção é nossa espinha. Quanto à história oficial, ela não passa de um punhado de cacos a que, só por desamparo, nos apegamos.  

Quanto mais rememora, mais Eulálio se afunda em repetições. “São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora”, ele diz. Nas páginas finais, ainda um menino de calças curtas, ele é levado pela mãe para se despedir do tetravô, que agoniza em um hospital. Um homem de rosto pastoso e memória degradada, que pode ser ele mesmo. Quem narra, afinal, o romance? E isso importa? Leite derramado destina à literatura um lugar crucial, que vai muito além das honrarias literárias: somos todos filhos de nossas próprias ficções.

Quanto à memória, ela é como uma fotografia de Matilde, tirada no ano de 1927, no pátio do colégio. Lá estão suas colegas de turma, amparadas pela severa Mére Duclerc, mas a própria Matilde não está. Essa ausência, mais gritante que qualquer presença, é o grande personagem de Chico Buarque. Vazio que define um mundo desenhado não tanto por aquilo que nos dá, mas por aquilo que, entre nossos dedos, se derrama.

(FIM) 

Nelson Rodrigues de Souza

http://2.bp.blogspot.com/_EUkDUbxL4tI/SHq4ojx7r7I/AAAAAAAAAJw/fjC0inzOEek/s400/Chorar%2Bo%2BLeite%2BDerramado.jpg

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3 comentários:

  1. Li Leite Derramado em um fôlego só. É extraordinário! Gosto muito dos livros anteriores do Chico, especialmente Budapeste, mas neste forma e conteúdo atingem uma comunhão perfeita.
    A decadência socio-econômica e, sobretudo, humana sempre foi um tema de interesse do Chico, abordado em algumas de suas músicas. Leite Derramado, valendo-se da construção da memória, em que realidade e devaneio se mesclam, aprofunda a questão, mostrando, mais uma vez, o quanto Chico é um grande conhecedor da alma humana.
    Abraços.
    Gina

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  2. Sou uma leitora sssidua de livros e entre os muitos que adquiri,recentemente,após ler os comentários dos recentes lançamentos literários ,dou uma pausa nos textos do maravilhosos Miguel de Souza Tavares e mergulho em Leite Derramado,como direi,emoções...muitas emoções...imperdível!!!

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