quarta-feira, 15 de abril de 2009

Quando o Excesso de Radicalismos Arrefece o Impacto de Filmes











Antes de tudo vou assumir uma posição bem clara: “Tony Manero” de Pablo Larráin (Chile/2008) e “Anabazys” (Brasil/2008) de Joel Pizzini e Paloma Rocha são belos e bons filmes que merecem ser prestigiados. Mas o material com que contavam estes diretores era tal que poderiam ter construído obras de grande impacto, filmes extraordinários, o que está longe de acontecer porque os diretores têm idéias conceituais obsessivas que seguiram à risca e neste terreno um tanto escorregadio acabam obtendo efeitos em alguns momentos contraproducentes. Vejamos os dois casos isoladamente. Mas não é difícil perceber os pontos de contato.

Em “Tony Manero”, Raúl Peralta (com um fantástico Alfredo Castro), na faixa dos 50 anos, vive na ditadura de Pinochet, trabalha em shows de periferia, tem adoração por Tony Manero( personagem de John Travolta em “Os Embalos de Sábado à Noite”, um rei das pistas de dança na era de ouro das discotecas). Enquanto a repressão política dá as cartas com toda crueldade (um militante que distribui panfletos contra o regime é assassinado dentre outras situações de desespero e horror), Raúl mergulha na mimetização de seu ídolo, ensaiando com um grupo de amigos, chegando ao requinte de comprar tijolos de vidro com o qual monta um pequeno palco com luz vinda de baixo para dançar e constrói um globo com cacos de vidro colados para emular o glamour do seu filme cult, o qual assiste várias vezes para melhor assimilar os gestos de seu fetiche. Um concurso de danças onde se escolherá quem melhor imita Tony Manero será para ele uma grande oportunidade de se exibir pela televisão para o país inteiro.

Como Larráin de certa forma quer tornar Raúl um símbolo da alienação diante da cultura americana imposta e ao mesmo tempo fazer de sua vida uma alegoria da violência política vigente, o personagem além do lado patético tem um viés bastante sombrio: como um serial killer ele mata até mesmo um projecionista com muita raiva porque no cinema onde revia sempre “Os Embalos....”, passam a exibir “Grease-Nos Tempos da Brilhantina” com o mesmo Travolta.

Para comungar com um personagem “sujo” numa época suja, a fotografia é na maior parte cinzenta e em alguns momentos propositadamente tosca e amadora. Esta é uma idéia conceitual aplicada que é bastante interessante. Mas o abuso dela acaba cansando depois de certo tempo de exposição a esta postura estética.

Como há uma necessidade de tornar este personagem alegórico um mistério, as relações humanas que ele vivencia são mostradas de uma forma um tanto confusas, elípticas demais. Conforme entrevista a Luiz Carlos Merten no O Estado de São Paulo, Larráin rechaça as críticas de que seu protagonista teria de ser melhor definido em sua psicologia. Luís Buñuel já afirmou que quando um personagem seu cai nas malhas da psicologia ele os mata....Falta de melhor aprofundamento psicológico não é bem o caso, mas que falta mais conhecimento das circunstâncias que perpassa a vida de Raúl é algo de que o filme se ressente. Há ainda uma cena bastante escatológica que julgo dispensável, pois se pode acrescentar mais elementos para a psicopatia do protagonista em termos de ganhos alegóricos políticos, pouco acrescenta, além de um incômodo longe das necessidades dramáticas de um “Saló” de Pasolini. O final do filme nos apresenta um golpe de mestre e se escora numa sutileza que ganha maior impacto depois de muitas explicitações de crueldades. Neste caso ponto para o filme.

Larráin tinha uma obra-prima em mãos, mas deixou escapar esta graça por ter radicalizado demais e não querer fazer nenhuma concessão ao público. Na sessão em que vi o filme a platéia do Espaço de Cinema 2 do Rio de Janeiro, mais ao fundo da sala, caiu numa sonora gargalhada quando surgiram os letreiros finais. Platéia fútil? Efeito involuntário do filme? Efeito previsível por Larráin? Seja qual for a resposta creio que se Larráin tivesse sido mais comedido e sutil na morbidez das situações, como na essencial obra-prima do terror existencial e horror psicológico “O Inquilino” (1976) de Roman Polanski teríamos um filme ainda mais interessante. “Tony Manero” carrega na morbidez em muitas situações que soam pertinentes, outras nem tanto. Este excesso corre o risco de anestesiar, por defensiva, o humor do espectador. Talvez isto explique o riso da platéia. Mas repito: Talvez.... “Tony Manero” é um filme que se escora em muitos mistérios alegóricos e numa revisita (o que ainda não fiz) pode crescer.

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Anabazys (Brasil /2008) de Joel Pizzini e Paloma Rocha em princípio iria fazer parte dos extras do DVD de “A Idade da Terra”, mas o material com que os dois cineastas se depararam com por volta de 60 horas de gravação era tão instigante que acabou se transformando num projeto para Cinema. Temos aqui outra possibilidade de um filme grandioso que não se concretiza. Com “narração” de Glauber Rocha, sempre inteligentíssimo, de delicada agressividade, provocativo e incisivo em suas “profecias”, idéias fortes e teorizações que leva à prática, ainda que eivadas de idiossincrasias que explicam melhor o seu Cinema (não o dos outros...), “Anabazys” evolui em vários planos, sobressaindo-se ótimos insights sobre o processo criativo de um inegável gênio do Cinema. Outros cineastas tentaram mimetizar Glauber com efeitos desastrosos ou irregulares.( “Prata Palomares”-1971 de André Faria Jr e ”Os Herdeiros”(1969) de Cacá Diegues, por exemplo, respectivamente). Claro que também muitas boas influências glauberianas aconteceram e este legado é inalienável.

Em ”Anabazys” temos imagens com Glauber em off ou presente, sempre irrequieto, seja provocando seus atores que atingem interpretações não naturalistas ou até discutindo com um policial à paisana (e claro, lançando a todo momento idéias sempre ousadas), cenas inéditas de “A Idade da Terra”, cenas deste filme propriamente dito, entrevistas com pessoas ligadas à feitura do filme, críticos, ensaístas, até mesmo o psicanalista Eduardo Mascarenhas ( o qual declarou anos atrás que quando Glauber o procurou já havia um processo de auto-destruição avançado e pouco pode fazer.) Não é à toa, que “querendo abraçar o Cosmos com as mãos e câmeras”, conforme já comentou Eduardo Escorel, Glauber tenha feito do muito bom e irregular (mas sempre fascinante, com seqüências de arrebatadora beleza mescladas a outras tediosas, mas tudo sempre impressionante) “A Idade da Terra”, seu eloqüente premonitório testamento. Glauber havia enviado uma carta a Zuenir Ventura que saiu na revista Visão, onde acreditava que Ernesto Geisel por ser protestante e representar uma ala de centro dentro da ditadura militar, junto com o “gênio da raça” (segundo Glauber) Golbery promoveriam uma abertura política. Mas afinal a ditadura caiu de podre ou Glauber tinha mesmo razão?

Na época Glauber foi imensamente malhado pela esquerda tradicional. A exibição de seu filme no festival de Veneza de 1980 foi tumultuada, pois discutiram mais o fato do filme ter sido produzido supostamente pela ditadura, através da Embrafilme ( o que é um grande equívoco pois o filme de chapa branca não tem nada) do que a estética e suas ressonâncias propriamente ditas, num filme que rompia com tudo que já havíamos visto antes no Brasil, até mesmo nos seminais “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, clássicos inequívocos da História do Cinema Mundial, status que “A Idade da Terra” pra mim não atinge, mesmo com sua formidável loucura criativa inspirada na morte de Pasolini e na necessidade de se contar a história não convencional de um Cristo do terceiro mundo, mesmo que fragmentado em vários personagens, um deles até andrógino ( Geraldo Del Rey), dado que o mestre polivalente italiano nos legou “O Evangelho Segundo São Mateus”.

Uma declaração de Pizzini sobre este episódio em Veneza explica melhor as limitações que vejo em seu filme:

“Foi uma experiência muito traumática para ele ter feito um filme visionário numa época de crise, quando o cinema industrial americano cooptava autores como John Cassavetes e Louis Malle", diz Pizzini, citando dois dos cineastas em competição no festival de Veneza daquele ano. ( UOL-Cinema).

Os estupendos “Glória”(1980) de Cassavetes e “Atlantic City”(1980) de Louis Malle que dividiram o Leão de Ouro, deixando Glauber a ver navios e irado, seriam segundo Pizzini, filmes de artistas cooptados, o que é uma visão equivocada e simplista. Malle então, mesmo dentro da indústria americana fez filmes grandiosos como “Pretty Baby-Menina Bonita”(1978) ou no mínimo muito bons como “A Baía do Ódio”(1985), sem contar o excepcional último filme, feito nos EUA, que é “Tio Vânia em Nova York”(1994), uma obra mais independente, com capital investido pequeno. John Cassavetes dentro de um esquema não doméstico, independente, já tinha nos brindado com o excepcional drama subestimado “Minha Esperança é Você”( A Child is Waiting-1963) com Judy Garland e Burt Lancaster magníficos, numa visão intensa da questão delicada dos distúrbios mentais e suas encruzilhadas, algo que retomaria no extraordinário “Uma Mulher Sob a Influência (1974). E saindo destes dois autores podemos dizer que Milos Forman nos maravilhosos “Procura Insaciável”, “Um Estranho no Ninho”, “Amadeus” tenha sido cooptado? E o que dizer da carreira de Fritz Lang, Douglas Sirk e Billy Wilder na América, dentre outros? Em suma, trabalhar com investimentos americanos de uma grande companhia cinematográfica não representa necessariamente nenhum sinal de capitulação de grandes ideais estéticos.

A questão maior em “Anabazys” é que mais do que uma relação afetiva forte com a obra de Glauber, que surge em belíssimas montagens de cenas de filmes do diretor, realizadas com perícia e talento por Ricardo Miranda (montador também de “A Idade da Terra”) temos um diretor até certo ponto colonizado pelas idéias fortes de Glauber, uma grande ironia pois o que Glauber mais detestava era colonização.

Assim “Anabazys” tenta exageradamente ser um filme glauberiano e como “Tony Manero” cansa em alguns momentos. Há um excesso de imagens inéditas de “A Idade da Terra”, com prolongada duração, que têm maior interesse é para os estudiosos de Glauber mesmo e neste sentido estariam melhores como extras de um DVD. Na sessão em que vi o filme numa segunda-feira havia só mais quatro pessoas. “Anabazys” dá a impressão às vezes de ser uma festa entre amigos para a qual não fomos convidados. Chega a ser irritante a pureza conceitual que não permite que se coloque nem legendas rápidas nos explicando quem está dando depoimento. Vemos apenas uma lista fria e enorme nos letreiros finais. Por que sonegar isto ao espectador? Um documentário sobre Glauber tem que ser necessariamente tão glauberiano assim? Em “A Idade da Terra” não há letreiros iniciais nem finais. Mas esta é uma singularidade deste filme.Pelo menos Pizzini e Paloma Rocha não chegaram a este ponto...

Em “500Almas”(2004), Joel Pizzini ao mostrar raros sobreviventes de uma tribo indígena, os Guatós, dispersos na região pantaneira, compõe um poema visual arrebatador, com falas dos índios e inserções de trechos da peça “A Controvérsia” de Jean Claude Carrière com Paulo José e Matheus Nachtergaale onde se “discute” se os índios tem alma ou não .... Se há certo didatismo necessário por um lado nesta parte, por outro, escorando-se também numa montagem magnífica, com captação de formações pictóricas sublimes, Pizzini sonega algo fundamental aos espectadores: não há legendas e não se entende muitos aspectos do que os sobreviventes da tribo dizimada estão dizendo. Pizzini prefere navegar na pureza de seu conceito de um filme sinfonia de imagens e sons, o que muitas vezes toca o sublime, mas este excesso, deixando lacunas de entendimentos importantes, fez com que não se tivesse a obra-prima que se poderia atingir.

“Foi uma época terrível para a autoria, um retrocesso, um tipo de cinema estava morrendo. E foi neste cenário que Glauber apresentou um filme de ruptura total: questionando o que é o cinema, o que é o espetáculo, qual o sentido das coisas, para que fazer um filme correto, alinhado com a lógica do espetáculo e da catarse", analisa Pizzini. "Esse cinema mais artístico sobrevive até hoje, mas está restrito a pequenos circuitos de arte"*

No discurso de Pizzini por um ideal estético “mais artístico”, tem-se algo que se mostra muito atraente e bonito, mas no fundo incorre em certo preconceito: vamos desprezar, para ficarmos só num exemplo, a obra de figurino clássico de um mestre como Clint Eastwood porque ele não é dado a grandes questionamentos formais?

Joel não quer ultrapassar Glauber, mas quer ser tão glauberiano quanto. Um filme subestimado, mas que de certa forma faz uma bela homenagem ao Glauber operístico ( principalmente o de “Terra em Transe” que para mim é o apogeu de sua obra, não o seu testamento “A Idade da Terra”) é “Redentor”(2004) de Cláudio Torres. O preconceito contra filmes com algum viés bem cômico não permitiu que se visse o pequeno grande filme que ali se tem, onde uma interessantíssima alegoria do Brasil é construída com vozes exaltadas, muita ganância e o estrangulamento da inocência.

É forçoso reconhecer que assim como “Tony Manero”, “Anabazys” é um filme que pode crescer em revisões. Quando vi “Terra em Transe” pela primeira vez ele ficou longe do impacto que hoje exerce em mim nas minhas compulsões em assisti-lo várias vezes, onde se encontra um “Brasil (e a América Latina) e suas mazelas captados de forma eterna”. Estou ouvindo “Zii e Zie” de Caetano Veloso, recém lançado e o prazer, depois de certo estranhamento, cresce a cada nova audição. Se isto acontece com a música freqüentemente, por que não com o Cinema? O problema é que a vida é curta e temos que fazer escolhas (e textos!).

Não comentei praticamente nada do trabalho de Paloma Rocha (e desde já peço desculpas) porque de fato não sei onde começa o trabalho dela ou como ela interage com Joel Pizzini, o que vai ser mais bem entendido num DVD e seus extras.

Para quebrar um pouco a gravidade do post, vamos imaginar, numa ”provocação antropofágica” um recado de Paulinho da Viola, para estes cineastas de um “cinema mais artístico” que Pizzini representa e encontra ecos hoje, entre os cineastas brasileiros vivos, em Paloma Rocha, Eryck Rocha, Julio Bressane, Cao Guimarães e poucos outros:

Argumento Cinético

Tá legal,
Ta legal, eu aceito o argumento,
Mas não me altere o cinema tanto assim,
Olha que a rapaziada está sentindo a falta,
De um cinema com começo, meio e fim...

Sem preconceito ou mania de passado
Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar

Faça como um velho marinheiro
Que durante o nevoeiro
Leva o barco devagar

* http://cinema.cineclick.uol.com.br/noticias/index.php?id_noticia=22697

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