quinta-feira, 4 de junho de 2009

Anatomia da Culpa- Um Conto



Anatomia da Culpa

“Deus sabe a minha confissão

Não há o que perdoar

Por isso mesmo é que há

De haver mais compaixão.”

Drão de Gilberto Gil.

Realmente, apesar de eu já estar “por aqui” com essa patuléia ignara, essa chusma indócil, essa massa enlouquecida pelo consumo que deseja e mal obtém (aqui a publicidade, o marketing é de primeiro mundo, já o poder de consumo...), essa turba que escolhe os seus próprios carrascos, devo reconhecer que há ditados populares que têm sua sabedoria: “Em casa de ferreiro, espeto de pau”. Será que só assim posso explicar como é que consigo trabalhar de forma prazerosa como analista, ter clientes que se sentem bem com meu trabalho e me recomendam para outros de forma tal que mesmo nesta época de crise (ou talvez justamente por ela) não tenho tido problemas, quando há tantos consultórios vazios e apesar desse “sucesso” (vamos dizer assim), me vem essa sensação de vazio (este não consigo exorcizar)? É certo que com sábio pragmatismo continuo praticando minha porção Robin Hood: tiro de quem tem para aqueles que pouco ou nada tem (apesar de existirem aqueles que mentem que não têm, mas não vão enganar logo a mim...) De qualquer forma adoro todos os meus clientes, até mesmo os mais malandros. Mas não consigo entender, entretanto, porque tem sido difícil pra mim amar os que me são mais próximas.O pobre e bom Otávio foi minha última tentativa neste sentido. Meu relacionamento amoroso com Angélica já havia extrapolado, abusado de todas as concessões que a boa vontade é capaz e não tinha mais como evoluir. Às vezes chego a desejar que eu não tivesse esse desejo tanto por homens como por mulheres. Seria menos conflitivo. Logo me dou conta da bobagem e prossigo namorando a vida com todas as suas possibilidades. O fato é que depois do affair Angélica, algo me fez concentrar-me nos homens e levar mais a sério essas possibilidades de relacionamento. Quando conheci Otávio então, um clic, como o fechar de um estojo, se deu e acreditei por algum tempo que “havia por fim encontrado um grande amor... mentira!”

Eu que para ir às festas com Otávio tinha que beber o tempo inteiro para suportar a visão daquela fauna toda com todos os seus tiques, trejeitos, suas idiossincrasias, suas mitologias particulares, quando ele insistiu para que fôssemos os dois aqui do Rio de Janeiro para São Paulo, a fim de encarar a família dele, depois de certo estranhamento, certa relutância, acabei aceitando essa espécie de “volta às origens”, ainda que minha própria família esteja de mim bem mais longe. Que Deus a conserve!

Se hoje sei melhor o porquê dessa minha coragem de ir encará-los, dado que aqui não gosto até mesmo de ir à cinemas, teatros, acompanhado com um namorado junto à essa classe média ruidosa e mal educada, na época não sabia ou tinha uma vaga idéia. O que iria acontecer por lá não nos era difícil de prever. E, no entanto fomos! Algo nos movia àquele encontro com uma força para mim até então desconhecida.

Tudo se passava como se eu que de certa forma já tinha lidado com situações tensas como aquela, indiretamente, através de meus clientes, precisasse de uma oportunidade assim, “ao vivo”, face a face, para entender melhor até que ponto minhas sinalizações tinham força.

Otávio vive há anos no Rio de Janeiro. Aqui diz ter encontrado uma repressão à sexualidade que se processa num tom menor que em outras praças brasileiras. Se hoje sua situação econômica é razoável (o mesmo não posso dizer de mim dado que dependo da divisão das despesas da casa com aquela cascavel; caso contrário tenho que atravessar o túnel Rebouças para a Zona Norte), para isso houve sacrifícios que ele ainda questiona até que ponto tenham sido válidos. As aulas de canto e música que eu insisti para ele voltar a ter, às vezes (me confessava angustiado) lhe faziam mais mal do que bem: elas insistentemente lhe lembravam o cantor de ópera que ele gostaria de ser e não era. Através dele aproximei-me do mundo da ópera. Sua coleção de DVDs na área é fabulosa. Em resumo, nos momentos de mau-humor, em retrospecto, vejo nosso relacionamento como mentiras&dvds. Sexo não havia! É claro, havia, mas eu não conseguia me sentir o tempo inteiro à vontade. À noite tudo bem. Mas ao acordar e sentir aquele corpo masculino forte, bem trabalhado pela ginástica perto de mim, me provocava certo arrepio, um incômodo indecifrável, incontornável. Uma sensação de que eu estava desperdiçando o melhor de minha vida com uma aventura sem futuro, condenada à esterilidade. Havia ocasiões em que colocava almofadas entre os corpos na cama, pela madrugada, para não ser incomodado pela manhã com o seu calor humano provocante.

Otávio que há algum tempo só passa alguns Natais, de forma superficial, com a família em São Paulo (às vezes nem isto), com esporádicos e frios contatos por telefone, recebeu o recado de que haveria uma reunião promovida pelos pais, os irmãos, etc, enfim, toda a “parentalha” para tratar de questões urgentes, uma delas a herança em jogo. Otávio estranhou esse fato, dado que conhecia a natureza do pai, com seus sessenta e cinco anos completos, bastante saudável e este sempre manifestou a intenção de que os filhos se “virassem” depois de sua morte e não planejaria nada de antemão quanto à distribuição dos bens. A mãe segundo presumia, tinha alguns problemas de saúde, mas eram naturais para a idade com que contava. Estava forte também. Mas quem é que sabe as emoções que um coração pode suportar? O filho Otávio, autêntica ovelha negra da família, aquele de quem mais esperavam na adolescência, o mais “comportado”, estudioso, acabou se transformando no mais distante, enigmático, inacessível. Por algum tempo haviam tentado recolher a ovelha desgarrada. Vendo-a irredutível na sua vontade de viver no Rio de Janeiro, longe deles, foram vencidos pelo cansaço. A mãe, Sílvia, sempre lhe martelou que se sua vida estava evoluindo tão bem economicamente, por que não se casar, se completar enquanto homem, enquanto ser humano, tendo filhos. Para que viver sozinho? – insistia sempre. Se Otávio nunca havia assumido sua homossexualidade para eles, também nunca havia criado álibis que confundissem as suspeitas, embaralhassem as cartas. Para bom entendedor, meia palavra... (e lá estou eu, novamente, envolvido com esses ditos populares...) .E se algum intrigante enviasse à família uma correspondência amorosa particular de Otávio, estariam lhe fazendo um favor. Pelo menos era o que dizia.

Para Otávio a situação estava clara a principio. A família, mesmo não dando sinais nítidos, sabia do seu modus-vivendi. Certamente jamais o aceitariam como ele é. No entanto agora o queriam para um conselho de família? Mas por que, se tantas decisões já haviam sido tomadas por lá sem que ele tivesse tido a menor participação? Quando o pai, engenheiro da Light, aposentou-se, vendeu imóveis, montou a loja de materiais de construção e passou a trabalhar com Oscar que havia dado baixa da Marinha, Otávio só soube depois que tudo já estava consumado. Por que agora estavam interessados na sua opinião? Ao especularmos um pouco sobre a situação ele logo pressentiu que o que estava ocorrendo é que nestes turbulentos e recessivos primeiros meses de 2009, a situação econômica da família não deveria estar boa. Era isso então. Estavam interessados no seu dinheiro. Ou melhor, no capital monstruoso que imaginavam que o filho solteiro, que ganharia muito, teria amealhado nestes anos todos. O primeiro impulso dele era não ir, não fazer o jogo de”volta do filho pródigo”. Tinha o intuito de simplesmente discutir por telefone o que estaria ocorrendo, avisar que não tinha dinheiro para emprestar e ponto final.

Não acredito, entretanto, que a lembrança de que discutiriam também a herança tenha sido a mola propulsora do desejo de ir. Umas das razões mais fortes é que o arrojado Otávio, de musculatura trabalhada, decidido, apesar dos seus trinta e sete anos, era uma criança. Por mais que afirmasse que havia cortado o cordão umbilical definitivamente, se ver desterrado, “escravo de seu desejo”, tinha um banzo enorme dos tempos em que conviveu com a família. Inseguro, se sentia um patinho feio dentro aquela estrutura e percebeu naquela situação uma oportunidade de retornar ao lar de origem, “onde tudo começou”. Mas numa situação em que dado a fragilidade da família, ele se sentiria forte para se impor, se mostrar, se revelar, tirar as máscaras que lhe faziam muito mal, apesar de trabalhá-las com apuro e arte, sem apelo ao grotesco. Havia ainda, reconheço, uns laivos de esperanças de que, quem sabe, tivessem mudado e quisessem agora uma aproximação verdadeira. A rigor Otávio não tinha certeza de que havia apenas cálculo frio no convite feito pela família e assim a vontade de tirar “a prova dos nove” o aguçou.

Quando Otávio, incisivo, com um brilho alucinado nos olhos me disse “Vamos a São Paulo, os dois! Eu quero que você vá comigo!”, a princípio eu gelei e busquei um não rotundo que naquele momento me parecia realmente irredutível. Quando Otávio tentou (logo a mim!) me fazer sentir culpado por querer abandoná-lo neste momento difícil, eu tinha várias respostas contundentes para dar. Senti vontade de terminar a nossa relação naquela hora, algo estava se fechando para mim como na gestalt da psicologia. Detesto esse jogo de culpas. Mas não. Logo o meu não peremptório esvaneceu-se. Eu não reagi e acabei aceitando aquele desafio. Não era só ele que tinha o que descobrir lá, in locum. Eu também.

Ao chegarmos, Sílvia, mãe de Otávio, abraçou-nos comovida. “Este é o meu amigo Jonas. Vamos aproveitar para ver uns espetáculos na Paulicéia Desvairada” – assim Otávio apresentou-me, com os olhos bem sacanas que se reviraram nas órbitas, furtivas, com emoção controlada. A mãe lamentou que no final do ano ele não tivesse vindo para nenhuma das festas, mas visivelmente, quase que mordendo as palavras, controlou a vontade de perguntar o porquê. Fui apresentado a Oscar (aparentando ser mais moço que o irmão que eu conhecia, apesar dos seus quarenta anos), sua mulher Dulce e os filhos do casal, dois irrequietos monstrinhos, que só sossegaram ao ouvirem o grito agudo da mãe. Marta, a irmã de Otávio foi quem me olhou da forma mais intrigante, ávida, perscrutadora, denunciando mais facilmente um ar de quem sabia a importância que eu tinha realmente na vida do irmão. Ora eu a sentia solidária com vontade de aproximar-se, ora era patente certa aversão, um incômodo inegável. Clóvis, seu marido, era quem me parecia menos à vontade naquela situação. Dificilmente nos encarou. Um ar de vergonha, de pudor excessivo o contaminava de forma patente e logo tratou de dizer que precisava ir à cidade visitar seu corretor. Soube depois, que despedido da indústria de componentes micro-eletrônicos que roçava a bancarrota, estava agora em casa administrando um capital acumulado, incluindo economias e fundo de garantia, comprando dólares, euros, ações e realizando outras operações financeiras mais elaboradas. O que a princípio estava dando certo (quando não aferia lucros pelo menos mantinha o capital total original) agora se mostrava uma atividade estéril, principalmente depois que precipitações foram cometidas e houve uma grande perda de dinheiro neste contexto de crise global, além da perda natural de confiança e auto-estima.

O velho Alexandre nos encarou de forma altiva e se havia incômodo e timidez, diante de nossa presença ali (e obviamente havia) disfarçou bem, tecendo comentários cheios de orgulho, sem titubeios, sobre a “bandalheira que estavam perpetrando” com os aposentados. Mas ele não se deixaria abater por “estes inconseqüentes”.

Os Andrades moram num bonito sobrado na Vila Mariana: embaixo, na frente, a loja, nos fundos uma casa ampla com quintal, cachorros guardiões a latirem histericamente acorrentados, em cima outra casa, esta menos espaçosa, com uma pequena varanda, de onde se vê a calmaria da rua, distinta do frenesi que observo aqui na Zona Sul carioca. O habitat dos Andrades foi construído pelo patriarca Alexandre, depois de uma labuta de anos, trabalhando inclusive nos fins de semana, projetando, administrando e gerenciando as obras. Toda a habilidade que o pai tinha com os trabalhos práticos simplesmente não compareciam na menor dose sequer em Otávio, esse trapalhão. O filho sempre associara ao trabalho árduo de que o pai era capaz, o lidar com ferramentas, máquinas, um mau-humor, um espírito rude, uma afetividade reprimida, que ele desejava ao máximo evitar pela vida afora. De tal modo sempre quis ser diferente do pai que passou adquirir um verdadeiro horror até mesmo às “bricolagens” mais elementares: Otávio apanhava até mesmo na colocação de uma lâmpada. “Torce-se no sentido horário ou anti-horário?...” Quando eu o via como um personagem de Woody Allen sentia-me compelido a dizer: “Esquece Vila Mariana, esquece Vila Mariana...” A cultura física adquirida pelo pai no corpo a corpo com o trabalho, Otávio, vaidoso, procurava com obstinação na ginástica. O desejo de estar sempre “em forma” era a maior e única identificação com a imagem paterna.

Havíamos chegado pela manhã depois de um sono trepidante no ônibus leito. Apresentada a família, tomamos café e discutimos, ou melhor, roçamos questões políticas atuais. O velho Alexandre estava insatisfeitíssimo com seu candidato eleito. Aquilo que era previsível logo ocorreu: Otávio, com um prazer quase sádico no tom da voz aproveitou para lembrar ao pai “que era óbvio que tudo o que está acontecendo, aconteceria...” “Eu não votei no homem. Tenho minha consciência tranqüila! Mas vocês não aprendem! Ainda apostam em algumas raposas para tomar conta do galinheiro...”- acrescentou. Não sei o que mais me aborreceu naquela discussão estilo “diálogo de surdos”: se a teimosia do velho Andrade que apesar de se reconhecer frustrado pelo voto dado, não admitia que houvesse outras escolhas mesmo no primeiro turno ou a insistência de Otávio em se mostrar vencedor, olhos faiscantes de raiva e orgulho, como um rei em terra de cegos, numa contenda que naquele momento encobria outras questões que gostariam de aflorar, mas estavam sendo escamoteadas.

Otávio teve a oportunidade de em vários momentos conversar com seus parentes de forma mais íntima. Mas sentia nele quase que uma súplica para que em nenhum momento o deixasse sozinho com “aquela gente”. Queria que eu testemunhasse tudo e às vezes procurava no meu olhar um sinal de aprovação ou não diante da forma com que conduzia os discursos. Mas havia momentos em que se empolgava e qualquer cautela era abandonada. Diante de tentativas por parte dos parentes de deixar-me à parte, de discutirem as coisas entre eles, Otávio audaciosamente, com um prazer que misturava um componente perverso, de forma indireta e às vezes até objetivamente, lhes lembrava que “Jonas é um grande amigo meu, meu conselheiro e não tenho nada a esconder dele”. Diante do silêncio de aturdidos parentes, Otávio se mostrava mais agressivo: ”Vamos pessoal, qual a razão dessa reunião? Por que vocês me adiantaram muito pouco por telefone?” Silvia apressou-se em dizer que precisava arrematar o almoço, que teria muito tempo ainda para conversar.

Enquanto o jornal, fragmentado em inacabáveis cadernos era lido por quase todos de forma atenta (ou simuladamente atenta) conversei com Clóvis e soube dos seus atuais dissabores. O que mais me intrigava não era o encaminhamento que ele daria ao seu trabalho agora que malograva a ciranda financeira doméstica. O que eu queria entender era como alguém tinha prazer em lidar, diretamente, de forma ininterrupta com signos ligados ao “ vil metal”, que subiam, desciam ou estabilizavam em termos de valor de acordo com variáveis chamadas “de mercado”, com uma lógica para mim inapreensível. Os altos e baixos do estado de espírito dos meus clientes, a forma como suas cicatrizes se curavam ou voltavam a sangrar, os desejos que vinham à tona para depois afundarem com a força implacável de realidades particulares, os surtos que assomavam e se dissipavam, eram variáveis para mim, (por mais humanas e por isso às vezes quase que incognoscíveis) que tinham, obviamente, um sentido muito mais palpável (por mais que às vezes tateasse no escuro no consultório na escuta “dos falantes e suas falas”) que essas forças ditas econômicas, mas que são frutos muitas vezes de desejos perversos dos homens: a neurose pelo lucro abusivo, o egoísmo e a ganância que não conhece limites que reprimem quaisquer desejos que se lhe contraponham, o espírito suicida pelo alto risco.

Estava mergulhado nestes pensamentos quando o velho Alexandre convidou-nos para ver as reformas da casa. Havia muitas atividades começadas e melancolicamente à espera de acabamento. “Agora já não consigo trabalhar como antes. Minha coluna me trai. Tenho que confiar todo trabalho a essa gente preguiçosa! Eles só fazem reclamar de salário, querem aumento, ouvem o canto das sereias dos sindicatos, querem” reclamar direitos”, mas com o batente que é bom, nada!” – indignou-se o pai do meu namorado, namorado que me levou a essa insólita aventura quase que rodrigueana.

De volta à sala, um silêncio constrangedor instalou-se. Ninguém sabia o que dizer. Marta, a mais inquieta das personalidades que me foram apresentadas naquela manhã era a candidata natural à “quebra de gelo”. Seus lábios tremiam de curiosidade e logo me vi questionado sobre o meu trabalho. Disse-me que tinha amigas que faziam análise e que gostaria também de experimentar para saber o que sentiria. Senti vontade de dizer-lhe que minha atividade não lida com a “última moda exposta nas butiques”, mas contive-me. Quando percebi que todas as luzes dos diversos olhares estavam sobre mim é que me arrependi terrivelmente de ter aceito aquele passeio à “classe média baixa paulista empobrecida”. Acredito, entretanto, que tenha conseguido controlar com eficácia o incômodo. Depois de eu narrar, com ironia calculada que Freud quando foi ao EUA disse que lhes “estava trazendo a peste” e me atrever a algumas explicações adicionais sobre diferentes correntes psicanalíticas, acredito que, como reação, a televisão foi ligada! Logo, por ironia, um entrevistado efeminado irrompe num irritante talk-show. Dado que a situação que vivíamos ali era um jogo do qual esperava zarpar o mais rápido possível, depois de coletadas algumas observações, apenas registrei, não me amofinei com o fato de tentarem disfarçar que não percebiam nada entre mim e Otávio, dado que faziam comentários jocosos sobre os trejeitos que viam na tevê, como se não tivéssemos o mais remoto ponto de contato com o que se passava nela.É claro que eu reconheço essa distância, mas o que me incomodava neles é a ambigüidade sagaz: procuravam ao mesmo tempo nos lisonjear, adular como também ridicularizar-nos por via transversa. Optei por rir junto com eles um riso cínico, desconfortável, excessivo, calculado. As piadas que fizeram principalmente os irmãos Oscar e Marta eram uma forma perversa de sinalizarem que tanto compreendiam as nossas vidas que se permitiam essas gracinhas, diplomaticamente, não convenientes na ocasião, para realçarem falsamente o fato de nos enxergarem de forma diferente.

Oscar se lembrou de um jeito mais explícito que quando trabalhava na Marinha conheceu colegas que “eram machos pra burro” sem esses tiques e, no entanto eram homossexuais. “Eu até que tinha bom relacionamento com eles. Eram esquivos, mas bons companheiros”. Ao se deparar com expressões marotas do pai e da irmã, tratou logo de explicar, com um riso estrepitoso, que os relacionamentos a que se referia eram de pura amizade, profissionais. Otávio esforçou-se ao máximo para não se incomodar com o comentário do irmão. Procurou em mim algum sinal que lhe transmitisse o que dizer, se é que deveria dizer algo.Otávio optou pelo silêncio, mexendo-se irrequieto na poltrona. Sílvia convidou-nos a ir para a varanda, um canto “mais aconchegante, longe deste barulho da televisão”.

A mãe de Otávio ainda era uma bela mulher: o rosto tinha rugas que ela não disfarçava, mas a pele apresentava, de modo geral, uma suavidade aveludada que impressionava. Tive a curiosidade mundana de perguntar depois a ele se ela havia feito operação plástica, mas com o turbilhão que ali se foi formando, acabei esquecendo. Acomodamo-nos em cadeiras de palha. Graças a Deus, ficamos sem ouvir as desagradáveis notícias dos telejornais dos quais tenho horror pois longe de nos informar, simplesmente procuram nos soterrar de atrocidades cotidianas de forma tal que não reflitamos, nos sintamos medrosos, humilhados, paralisados com tantas desgraças, sem nos despertar um espírito crítico, sem análises, de forma que os novos escândalos substituem os velhos escândalos.

Senti-me na iminência de vivenciar uma dessas histórias folhetinescas que tanto abomino, numa manhã de horário nada nobre. O incômodo inicial deu lugar a certa ternura. Sílvia olhava mais a mim do que ao filho que a observava ressabiado, receoso, por mais que tentasse se mostrar dono da situação. “Eu também já gostei bastante de estudar como vocês” – começou a falar, com um sentimentalismo surpreendentemente contido, suave – “mas sabe como são as coisas, chegaram os filhos, a gente tem que optar. Eu dava aulas. Fiz o Normal, poderia ter estudado mais, mas as circunstâncias...” Otávio fez cara de enfado. A mãe recriminou-o com o olhar, contrariada. Continuou a conversa num tom mais apressado, nervoso. “Ele me acha uma velha chata. Mas eu não deixo de gostar dele por isso. Sempre foi o meu predileto, o mais carinhoso. Hoje se mostra arredio, arisco, às vezes parece até que é uma daquelas árvores cheias de espinhos que agente toca. Quase não aparece por aqui. Quando vem não conversa com a agente, se tranca no quarto pra ler ou sai mais à noite nesta cidade que é tão perigosa, como se no Rio não tivesse grandes opções. Mas a violência do Rio é pior não é meu filho?” Otávio não disfarçou a contrariedade e tratou logo de mudar o rumo da conversa. “Afinal mãe, o que vocês querem de mim?” Sílvia pediu-lhe calma e ponderou que esta era uma questão que o pai apresentaria, mas depois do almoço e levantou-se para organizar a mesa, sentindo que não era naquele momento que se tornaria mais íntima do filho. Aquela conversa, ou melhor, aquele monólogo seria bastante lembrado por Otávio com um misto de culpa e arrependimento. Foi praticamente a última oportunidade que os dois tiveram de se reencontrar. Otávio lembrava-se da conversa gesto por gesto, palavra por palavra e perguntava a mim após a celeuma já ser história, se tinha sido possível naquele momento uma interação amigável.

No almoço revivi com Otávio um dos desprazeres típicos das famílias latinas: a falação atabalhoada entre uma garfada e outra. Para completar o quadro trivial as crianças se mostravam insatisfeitas com a comida, enchiam o prato e logo se aborreciam, enjoavam. Queriam mais refrigerantes que obviamente só lhes seriam servidos com a “chantagem do prato limpo”. Como se mostrassem teimosas em seus desejos, as crianças logo se viram alvo da zanga de Dulce e Marta que com a ajuda da avó Sílvia se esmeravam em desferir pequenas ameaças.

O velho Alexandre e Oscar queriam que eu lhes explicasse melhor ali na mesa o que era inconsciente, veja só... Para completar, como era inevitável, Marta me fez a pergunta que sempre repetiu ao irmão: por que eu não tinha filhos? Otávio tratou logo de me desembaraçar: “Essas mães, doutor, são como as pessoas viciadas em drogas. Se sentem culpadas, solitárias e precisam logo de uma companhia no vício para se sentirem menos delituosas...” Marta indignou-se, estava prestes a explodir com o irmão, quando um olhar fulminante do pai, de Oscar e Sílvia a detiveram. Levantou-se da mesa em silêncio ressentido.

Na sala, enquanto tomávamos café, as crianças nos cercavam. A principio brincamos com elas com toda paciência. Aos poucos a algazarra começou a nos irritar, mais ainda a mim do que a Otávio. E ele, como alguém que não tem tempo a perder, sem cerimônia, sentindo-se em casa tratou de encerrar o folguedo. “Deixe-nos em paz agora!”. Sílvia permitiu-se comentar que o filho “nunca teve paciência com crianças, não seria hoje...” O marido encarou-a contrariado. Sílvia pediu licença a todos e admitiu querer tirar um sono rápido. Otávio impacientou-se. Queria que a assembléia logo começasse os trabalhos e manifestou mais uma vez essa vontade. Alexandre rogou-lhe mais paciência num misto de autoritarismo, rispidez e humildade e acompanhou a mulher. Clóvis chamou Oscar para mostrar-lhe um novo jogo no computador. Convidou-nos sem força, sem ênfase, para que os acompanhássemos. Recusamos o convite. Marta apressou-se em dizer que precisava lavar a louça. “Estamos sem empregada atualmente, está difícil encontrar uma que preste” – acrescentou um tanto tímida.

Ficamos a sós com Dulce. Desde que chegamos, por trás do rosto sofrido e enigmático daquela Mona Lisa de trinta e cinco anos, eu vislumbrei que se havia a possibilidade de travarmos um contato imediato de primeiro grau com alguém naquela casa, era com ela. Era visível a sua satisfação em nos ter ali, de corpo vivo, duas sombras que povoavam o imaginário da casa e que agora se permitiam definir um pouco melhor os seus contornos, apresentar algumas nuances reveladoras. Nem mesmo a mãe, apesar do indisfarçável e indescritível contentamento pela presença do filho ali, estava com o ar afável de Dulce. Em Sílvia, ódio e amor, ternura e náusea conviviam de forma intranqüila, num equilíbrio instável. Apesar da mãe se mostrar por todos os meios, atenciosa, grata, compreensiva, eu sentia na suas atitudes comigo, uma mãe que procurava agradar a alguém não porque este alguém merecesse esse agrado, mas para agradar ao outro (o filho!). Com Dulce, o clima era outro. Relutante, tímida, chegou-se até nós e declarou em voz baixa: “Eu não era nem para estar aqui. Mas eles insistiram tanto... Sabe, Otávio, eu e seu irmão estamos nos separando! Eu não agüentava mais”. Era evidente que o desabafo feito num tom forte, determinado, escondia uma vontade atroz de chorar. Dulce, entretanto, conseguiu dar o seu recado até o fim. “Eu já estava cansada de ser trocada pelo baralho e pela televisão! Até os filhos já não tinham a mesma atenção dele”. Contou-nos que um dia, fugiu com os filhos para a casa da mãe e entrou com uma ação de separação judicial de corpos. “Oscar tem um gênio muito violento. Ele saiu da Marinha, mas o comando aqui em casa continua, ou melhor, continuava!” Dulce pretendia voltar a estudar, trabalhar, não queria seguir o caminho de dependência de Sílvia e Marta. “Eu não quero me acabar, servindo um machão incorrigível!” – observou como se tivesse um brilho revolucionário nos olhos, diante de uma Bastilha derrubada. “Essa família está falida! Oscar não tem dinheiro para me indenizar pela metade dos nossos bens! Fizemos um acordo, depois de muitas brigas, senão haveria um leilão judicial e os preços seriam ridículos! Mas ele não me pagou até agora! Meu advogado deve entrar com um processo. Só vou esperar mais um pouco! Quanta baixaria Meu Deus!... Sabe que ele e o advogado dele chegaram a insinuar que eu teria um amante! O Oscar sim, eu tenho certeza. Mas agora não importa mais. Nos separamos e pronto. O processo está no fim. Eu poderia ter usado as crianças contra ele, mas não tive esse despudor. Mas bem que ele tentou...”.

Encarei Otávio e senti que por mais que ele visse confirmadas as suspeitas que já tinha quanto à finalidade da reunião familiar, ele estava atordoado, pasmo, decepcionado, arrasado. Tive o impulso de abraçá-lo ali mesmo, confortá-lo, mas logo a família voltou em peso. Dulce afastou-se, agora temerosa. Otávio voltou a apresentar o ar decidido com que havia resolvido travar o reencontro com os fantasmas familiares.

Alexandre pediu a todos silêncio e tomou a palavra. Só não estavam presentes as crianças. Era um sinal de que temiam que para elas fosse representada uma peça imprópria.Ficamos acomodados quase todos nos sofás. Oscar e Clóvis brincavam com as almofadas, olhando para quadros na parede, onde os avôs também presenciavam a reunião. Sílvia encarava receosa o marido, de pé, ao lado dele. Eu e Otávio atentos evitávamos trocar olhares. Dulce e Marta,uma diante da outra, com expressões típicas de guerra fria. A irmã de Otávio expressava a certeza de que a cunhada já havia adiantado alguma coisa, de acordo com sua própria ótica, o que poderia ser nocivo aos interesses do grupo. O velho Alexandre com voz pausadamente calculada inaugurou a sessão:

“Eu sempre me furtei a pensar em fazer um testamento. Eu achava que o melhor era deixar os filhós decidirem depois o que fazerem, como pessoas maduras que são. Mas hoje eu sei que os conflitos da sociedade em que vivemos são mais complicados. Eu sei que a família, infelizmente, já não tem força que tinha antes. Os tempos são confusos e acredito que se eu posso ajudar a resolver uns problemas hoje que são dos meus filhos, mas diz respeito a mim, à mãe de vocês (que se Deus quiser ainda durará muito... para chatear vocês...)”. Riu de forma um tanto sem graça, alegou estar brincando e continuou:

“ Eu gostaria hoje, agora, de discutir com vocês como dividir tudo, deixando tudo escrito. Mas Otávio meu filho...Eu neste momento me dirijo a você que é quem tem estado mais ausente, ou melhor, menos presente nesta casa, mas como consta nas sagradas escrituras a alegria é maior quando um filho à casa retorna e espero que eu não desperte esses mesmos ciúmes já tão velhos em você Oscar e sua irmã.O fato, Otávio, é que a situação econômica do país é preocupante e precisamos colocar ordem na casa. Nossa loja de materiais não vai bem. Quem tem dinheiro hoje para construir como nós fizemos com este sobrado? Seu cunhado está desempregado! Seu irmão Oscar além de alguns probleminhas familiares precisa da loja como meio de vida. Não há como voltar à Marinha. Minha aposentadoria... Bem... é melhor nem falarmos dela. O fato é que precisamos de um bom empréstimo seu para pagarmos duplicatas vencidas, encomendas encalhadas, para dinamizarmos a loja, acabar as obras iniciadas, enfim, colocarmos a casa nos trilhos novamente, para aí sim podermos fazer partilha. Não quero que você seja sacrificado! Você estará apenas fazendo um investimento. Nós saberemos recompensá-lo na divisão dos bens que discutiremos depois...”

Otávio se sentiu como num filme de horror que já tivesse visto ou numa ópera trágica. Confessou-me depois que as árias mais doridas lhe vieram à mente e que sentiu vontade de cantarolar algumas ali para espanto de todos, mas logo caiu em si. Queria também lhes dirigir a palavra, mas com calma, sem sentimento de raiva ou vingança, apenas com verdade. Era o que ele jurou depois a mim que estava sentindo no momento. Mas não conseguiu. Apesar de reconhecer na situação ali um drama patético,mesmo tendo consciência de que os atores ali envolvidos, de uma forma ou outra estavam associados à sua vida e por que não à lembranças também doces, ternas, a indignação por ter confirmado, que a aceitação dele ali junto com o amigo, por mais tênue e superficial que fosse, estava justamente condicionada pelo fato de precisarem dele, o fez mais do que ponderar, desabafar:

“Vocês pensam que eu não tenho vida própria? Olha, eu não ganho como vocês imaginam! E não é porque não tenho filhos que não tenho grandes despesas! Já tive relacionamentos que terminei e também dividi patrimônio, mas sem baixarias! Com toda justiça! A César o que é de César”

Eu me atrevi a interrompê-lo e a dizer que era melhor ele falar que não tinha dinheiro a emprestar e pronto! Sílvia e Marta se pudessem lançar chamas pelos olhos me carbonizariam. Otávio preferiu ignorar-me, continuando a justificar-se no seu jeito nervoso, as mãos balançando, desarvorado:

“Sabe! Eu até já fui assaltado uma vez dentro de casa. Minto. Não uma! Duas vezes! Levaram-me bastante dinheiro, meus cartões e alguns eletrodomésticos. Fiquei dias desacordado. Mas vocês não mereceram a honra de tomar conhecimento desses problemas. Já paguei também tratamentos de amigos mas... “

Mais uma vez insisti para que ele parasse. Não adiantou.

“Vocês sempre me ignoraram, agora se lembram de mim, mas é dessa forma mais torpe. Sabe mãe, pai, até mesmo vocês Marta e Oscar, seus eternos egoístas, autistas... quando recebi o chamado de vocês logo pressenti essa fria, mas eu tinha certa esperança, doida, tola, quixotesca, ingênua, mas tinha, de que o que estava aqui preparado, era reencontro noutros termos, sem essas hipocrisias”.

Se até aquele momento por mais que o jogo de esconde-esconde ali travado tivesse se mantido num tom tolerável, se as hipocrisias se restringiam a uma clave suave, ainda que com cálculos à mostra, qualquer forma de polimento foi abandonada e os ressentimentos afloraram. Oscar foi o mais incisivo:

“ Você que escolheu viver longe da gente para poder mergulhar nesta Sodoma e Gomorra que é o Rio de Janeiro, nunca deu a mínima para o que estava acontecendo aqui.Você que gasta seu dinheiro todo com esses prostitutos, o mínimo que merece é virar notícia de jornal ao ser encontrado trucidado, amarrado, esfaqueado com todo o requinte... Só espero que ao sair Andrade no jornal ninguém associe este sobrenome ao de nossa família. Graças a Deus tem muitos outros Andrades por aí...”

O velho Alexandre se mostrou indignado, por tomar conhecimento que o filho “jogava dinheiro pela janela”.

“Sua mãe é que me convenceu de que poderíamos chamá-lo. Pra mim, você era e agora confirmo isso, irrecuperável! Você foi o comido por essa cidade perdida! Eu não queria admitir que um filho meu estivesse envolvido nestas leviandades, neste submundo que vemos pela televisão. Mas agora isto está definitivamente claro para mim! Quanto à partilha...”

Antes que o patriarca Alexandre excomungasse o filho de sua igreja, Silvia desmaiou e foram todos acudi-la. Marta dirigiu-se ao irmão com gritos cortantes: “Você quer matar a nossa mãe!Você quer matar a nossa mãe!” Otávio ainda encontrou verve para responder a irmã: “De acordo com meu amigo aqui, eu quero é matar o pai, não a mãe!”

Tão logo a vimos reanimada, arrumamos apressados as coisas e fomos respirar na cidade. Confesso que São Paulo me assusta, é para mim como a língua portuguesa: esplendor e sepultura. Otávio costuma troçar que o ideal é nascer como ele em São Paulo, ter “uma formação paulista” e vir morar no Rio. Não sei. Não gosto desta disputa provinciana. Também, com aqueles acontecimentos do dia, não poderia mesmo passear à noite em São Paulo com prazer antes de pegarmos o ônibus. Por ironia assistimos “Viver Sem Tempos Mortos” depois de tanta mortificação e fomos para a rodoviária.

Um mês depois de voltarmos ao Rio, recebemos uma carta de Dulce, pobre Dulce, pedindo-nos que não os quisesse mal. No que lhe dizia respeito, não havia ressentimento. Ela nos compreendia, nos respeitava. Quanto ao seu casamento, havia desistido por hora de qualquer processo de separação. Como o marido não tinha nenhum dinheiro vivo para indenizá-la, se o processasse um leilão seria feito à revelia deles, os bens vendidos por um preço injusto e as crianças teriam pais desestruturados para educá-las.

Ainda hoje me pergunto o que fui fazer lá, por que me expus daquela forma. A explicação de que queria entender o que era minha relação com Otavio não me satisfaz. Não tínhamos o que discutir em termos de bens materiais. Minha ligação com ele tinha apenas 9 meses, o tempo de uma gestação. O que nasceu, entretanto, foi a consciência de que era necessário um ponto final. Logo fiz Otavio entender (e para tal tive que quebrar-lhe várias couraças) que só poderíamos continuar amigos. A rigor, nossa relação, nosso amor “não cozinhou por dentro” e não havia por que disfarçar mais. Compreendo a família dele, eu o compreendi mais, mas ao mesmo tempo compreendi melhor como era um equívoco, um desacerto esticado a nossa união. Havia solidariedade, companheirismo, amizade, afinidade, mas o amor é outra coisa! Quando conversei com Otávio nestes termos, quando lhe sinalizei de que os silêncios entre nós eram desesperadores, acusou-me de estar tratando-o como se ele fosse um analisado meu. Que posso fazer? Meus instintos, minhas intuições, meus conhecimentos, meu espírito crítico são aguçados, não posso mandá-los tirar férias facilmente. É uma questão de coerência entre a minha vida e o que digo, sugiro no consultório. Confesso que esse meu lado homossexual me assusta bastante ainda e eu, que quero viver realmente de acordo com meus desejos, não sei se conseguirei ainda amar um homem com todos os riscos, todo êxtase, todo ardor que isto implica. As mulheres são mais fáceis....Mas veja só que bobagem estou dizendo...

Quando me separei dele depois de choro e ranger de dentes, ele me ligou para dizer que não estava com raiva de mim. Convidou-me inclusive para irmos até “uma pessoa fantástica”, “um autentico xamã”. Depois de certa insistência, curioso, cedi. Fomos. Esse Otávio tem o dom de me levar a pisar onde jamais imaginaria. Não é que esta pessoa descreveu com acuidade meu estado de espírito atual, minha vida, de forma fantástica! Com relação a Otávio ao mesmo tempo que falou-lhe de alguém especial que surgiria em sua vida, vaticinou que ele perderia um parente próximo. Uma semana depois da carta, Dulce nos enviou um telegrama avisando-nos que Sílvia morrera (tivera um mal súbito) e que os irmãos prefeririam que ele não comparecesse ao enterro. Acompanhei meu amigo nesta hora dolorosa até São Paulo, enfrentamos olhares recriminadores e voltamos.

Já “sacudi “ Otávio de todas as formas para que não se sinta culpado pela morte da mãe. Alertei-lhe para que não caia na armadilha que a família lhe lança, pois afinal é justamente o que desejam: vê-lo ruminar-se, inferiorizar-se, corroer-se com este sentimento pequeno. A culpa. Mas de onde vem ela? Quem é? Para onde vai? A culpa, essa maldição católica, ou melhor judaico-cristã, faz realmente deste mundo um mundo melhor? Obviamente que não! Mas como nos exorcizarmos dela? Observando e analisando a culpa em Otávio é que eu percebi que ainda não resolvi todas as minhas culpas, eu que estou acostumado a lidar com as culpas de outros. Logo eu! Um profissional respeitável que já me considerava suficientemente analisado. Quanto ao Otávio, agora que se envolveu com estas questões esotéricas, por mais “loucas que sejam” está mais aliviado, mais calmo. Depois de tantas perdas, tem-se que achar alguma coisa. Freud já discutiu muito essa ilusão, não é mesmo? Mas por que será que às vezes me dá uma sensação terrível de mal-estar, uma sensação bergmaniana de fracasso, uma impressão (eu vou lhe confessar isso agora) de que todas as teorias que estudei, estudei, discuti, discuti, são insuficientes para explicar o que se passa diante de mim? Olha, eu só tenho coragem de admitir isso a você: eu desconfio que meus clientes me procuram porque não encontram coisa melhor! Eu sou o melhor entre os piores! É assim que às vezes me sinto. Mas meu Deus, porque esse mal-estar, essas culpas? Sim, culpa. A maldita culpa!

Ah! Como essa sessão de análise está longa! Você ainda vai me deixar falando sozinho por muito tempo Jorge, ou melhor, Doutor Jorge Freitas de Albuquerque, meu colega, meu par, meu analista, a pessoa que eu acredito que possa me compreender, analisar neste momento. Eu gostaria de deslocar/sepultar minhas culpas, procurando talvez, como Otávio religiões consistentes. Mas não é uma ilusão sem futuro, doutor? Fale alguma coisa, por favor, eu já estou me sentindo dostoievskianamente muito ridículo!

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Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Então,
    Nelson, mais um conto muito bem elaborado.
    Gostei das abordagens e seus personagens,principalmente,o Psi.
    Ele me faz pensar.Foi muito inteligentemente que você nos mostrou vários conflitos.
    O mais importante para minha ótica é o preconceito e a hipocrisia das familias...
    Parabens!!!!

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