sábado, 13 de junho de 2009

Sob a Égide do Mito do Eterno Retorno




Matheus Nachtergaele quando filmava “O Auto da Compadecida” de Guel Arraes no Nordeste travou contacto com a história de pessoas que cultivavam as vestes ensangüentadas de uma menina morta desaparecida. Imaginando os entornos desta circunstância, teve um estopim criativo para que pensasse na realização de seu primeiro filme que depois de exibido em vários festivais (incluindo a Mostra Um Certo Olhar de Cannes 2008), premiado em Gramado 2008, chega agora ao circuito. Com a estréia do filme “A Festa da Menina Morta” (Brasil/2008) agora podemos conferir até mesmo uma certa mitologia que estava se criando em torno do filme que tem proporcionado prêmios a Daniel de Oliveira, um ator que sempre se entrega generosamente a seus personagens (como vimos no seu espantoso Cazuza, de “Cazuza, o Tempo Não Para”) e agora depois de longa pesquisa junto a pajés, pais de santos,outros oráculos e “cavalos”, cria um personagem inesquecível para a galeria dos notáveis para a História do Cinema Brasileiro.Há quem julgue seu trabalho um tanto over quando no fundo está adequado às circunstâncias que o protagonista vivencia que são over por si mesmas.

Numa localidade ribeirinha bastante pobre do interior do alto Amazonas, bem distante de Manaus, Santinho (Daniel de Oliveira) é quem primeiro trava contato com as vestes de uma menina morta, trazida por um cachorro. Passa então a ser tratado como um escolhido, uma figura santa em sua comunidade, que quando o filme começa está nos preparativos da vigésima festa da menina morta, onde ele terá palavras que tentarão amenizar as dores do cotidiano, mesmo que enfatize que “este ano a palavra é dor” no cerimonial final que se tem.

O interessante no filme, com bela fotografia de Lula Carvalho e ótima e verossímil ambiência criada por Matheus e seus colaboradores é que “Santinho” nos bastidores não é propriamente um santo. É capaz de grandes cóleras, derrubando vasilhas com que lhes lavam os pés ou até mesmo receber num misto de grande dor e repulsa a mãe (Cássia Kiss), num melhores momentos do filme, que vem de Manaus para render-lhe tributo. Com o pai beberrão (Jackson Antunes) passa a ter uma relação homoerótica incestuosa que nos é mostrada com bastante impacto e força visual, por entre um ambiente chuvoso. Como em muitos oráculos historicamente se encontra a androginia como um atributo sagrado, o filme faz questão aqui de nos perturbar os sentidos (com em outras seqüencias em que o som de um porco sendo morto invade a cena), mesclando e confundindo o sagrado e o profano.

Tadeu( Juliano Cazarré) irmão da menina morta é a única pessoa relutante na comunidade em participar deste ritual pois sabe que a rigor o milagre que esperava que é ter a menina viva, ressuscitada, não aconteceu. Isto não o impede de depois de muitas brigas, imprecações e hesitações fazer parte do cortejo que reverencia Santinho e a menina morta que este representa na Terra.

Com esta particular religião da comunidade bastante pobre que tem apenas neste momento de êxtase religioso uma transcendência de um cotidiano mofino, pode-se traçar certos paralelos com outras religiões como a umbanda, o candomblé. Mas estas têm um grau de sofisticação e historicidade oral (com preciosos documentos baseados nesta oralidade) que na comunidade de Santinho não comparece. Ali se tem uma fé que se mescla a certo desespero, com uma coisa tentando anular a outra. Santinho também é relutante em relação à sua representatividade, sendo que em alguns dos “inumeráveis estados do ser” que o acomete vivencia um ceticismo desanimado para depois se fincar como guia espiritual.

“A Festa da Menina Morta” é um ritual cheio de contradições de um Brasil profundo que só não é usufruído melhor pelo espectador porque o roteiro de Hilton Lacerda e Matheus é um tanto relutante, faltando-lhe maior liga, o que a inspiração maior do diretor que é Cláudio Assis, consegue com mais força em “Baixio das Bestas” e “Amarelo Manga”, principalmente neste último. Neste sentido esta experiência lembra “Feliz Natal” de Selton Mello que tem ótimos atores e personagens, uma situação básica forte, intrigante, imagens vigorosas, mas se perde um tanto no quesito “evolução”. Mas “A Festa da Menina Morta” a rigor é bem mais fascinante,sucedido e vigoroso do que o primeiro filme de Selton, apesar das restrições.

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Enquanto “A Festa da Menina Morta” consegue trazer elementos universais através de uma comunidade, como a necessidade imperiosa de se crer em algo transcendente diante das vicissitudes terrenas, “Apenas o Fim” (Brasil/2008) de Matheus Souza alardeando o álibi de ter trabalhado com pouquíssimos recursos ( câmeras emprestadas, atores que trabalharam de graça, etc) é uma obra que só deve se comunicar realmente com os jovens de classe média próximos à idade dos jovens protagonistas que vivenciam o fim de uma relação. Se Domingos de Oliveira,Wood Allen e Richard Linklater foram as grandes inspirações, o resultado obtido é pífio e está muito longe dos mestres. Só um espírito de condescendência pode nos fazer ter uma aproximação mais generosa com esta obra que narra momentos em que uma relação terminal é avaliada, mas que não consegue trazer nem um centésimo da angústia e poesia que vimos em “Eu Sei que Vou te Amar” de Arnaldo Jabor ou então em “Antes do Por do Sol” e “Antes do Amanhecer” de Linklater. Tudo em “Apenas o Fim” é muito superficial e só certa simpatia e vivacidade dos atores protagonistas impedem que não mergulhemos no tédio total.

“A Festa da Menina Morta” e “Apenas o Fim” são filmes de iniciantes de propostas e resultados bastante diversos. Como o cinema pode sempre nos surpreender não vamos nos arriscar aqui a fazer profecias definitivas sobre a qualidade das obras futuras destes dois Matheus cineastas, ainda que toda a nossa experiência e intuições nos conduza a esperar muito mais de Nachtergaele.

http://www.adorocinema.com.br/filmes/festa-da-menina-morta/festa-da-menina-morta07.jpg

http://img.blogs.abril.com.br/1/asetimaarte/imagens/a-festa-da-menina-morta-(2008).jpg

http://img.blogs.abril.com.br/1/mostra-cinema-sp-2008/avatar/apenas-o-fim.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

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