domingo, 7 de junho de 2009

A Morte que a Vida Anda Armando; A Vida que a Morte Anda Tendo



“A Partida” (Depatures/ Partidas-título bem mais adequado/Japão/2008) de Yojiro Takita ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, derrotando o favorito “Valsa Com Bashir” de Ariel Folman sobre a omissão e de certa forma contribuição dos israelenses, jogando fogos para melhor localização, gerando massacres de palestinos no Líbano por fanáticos libaneses. Também sobrepujou o sublime “Entre os Muros da Escola” de Laurent Cantet, conforme já comentado aqui, um dos grandes filmes que chegaram ao nosso circuito exibidor nos últimos anos. Se foi feita certa injustiça, temos de ficar gratos ao Oscar e suas idiossincrasias por estarmos logo em contato com uma obra digna e fascinante com a qual dificilmente travaríamos visão aqui no Brasil, dado que o sistema exibidor ao ter que trabalhar com pacotes, para cada filme importante ( como um ganhador da Palma de Ouro tal “A Fita Branca” de Michael Haneke) tem de trazer ao país obrigatoriamente ( com acontece em outros países) um conjunto muitas vezes repleto de irrelevâncias, enquanto filmes importantes como “Il Divo” de Paolo Sorrentino ( essencial para se conhecer a Itália berlusclownesca de hoje), prêmio do júri em Cannes, permanece aqui inédito, para ficarmos só num exemplo de uma lista que é enorme.

“A Partida” trabalha com ambigüidades inquietantes: ao mesmo tempo em que é um filme positivo que valoriza a vida, também é um obra que nos faz encarar a morte de frente e ao nosso modo, de acordo com nossos espantos, encará-la com mais naturalidade dado que é uma passagem inevitável do ser humano em sua condição de mortal. Pode-se argumentar que até mesmo este último aspecto também é uma louvação da vida, pois aprender a morrer também faz parte da grandeza desta.E não estarão errados os que assim argumentarem.

Daigo Kobayashi (MasahiroMotoki, brilhante) é um violoncelista de uma orquestra de Tóquio que com a baixa freqüência de público se dissolve. Num ambiente bastante competitivo resolve voltar para a cidade do interior onde nasceu, com sua mulher (Ryoko Hirosue), onde apesar dos pais já terem morrido resta-lhe um café bastante largado e que precisa ser cuidado. Vendo um anúncio de “ajuda a partidas”, pensa tratar-se de uma agência de viagens. Ao encontrar o senhor mestre de cerimoniais fúnebres (Tsutomi Yamazaki) com sua despachada secretária ( Kazuko Yoshyuki) é convencido logo por grande intuição a se transformar num artista da arte de se preparar os corpos, com limpeza, troca de roupas,. maquiagens, antes que os defuntos sejam colocados num caixão para cremação, rituais que antes eram feitos pelas família, mas agora é feito pelo especialista, diante das famílias, num embate entre o Japão moderno ( onde o tempo escasso rege os destinos) e o tradicional ( onde se pratica artes cavalheirescas de clima zen).

Incompreendido, Daigo passa a ser desprezado por amigos e até mesmo sua mulher o abandona. Fatos redentores o esperam para reverter a situação.

Com um uso ostensivo de música a embalar as cenas emotivas, numa clara opção pelo melodrama, conformem observou Inácio Araújo na Folha de São Paulo, é um filme que areja o gênero com sobriedade, muita paciência na exposição dos rituais e sem abdicar de um tanto de humor em meio a tema tão grave, onde uma cena chave neste sentido é o encontro de algo mais no corpo de uma jovem suicida, o que provocará dúvidas e catarses da família.

Poucos filmes (como “O Sétimo Selo” de Bergman), se focaram tanto nos liames indissociáveis entre vida e morte, como este “A Partida”.Devemos valorizar o máximo a vida ( e a seqüência final é pródiga neste sentido) mas a vida fica incompleta se não encararmos a morte com um dos componentes dela que deve ser bastante meditado e enfrentado. Uma coisa não existe sem a outra. A grande dimensão de uma, só se realiza com a vivência no mesmo quilate da outra. Até mesmo em seus letreiros finais o filme ostensivamente nos tenta lembrar disto.

Tudo nos é narrado com muita delicadeza, afastando qualquer fantasma de morbidez gratuita. Daigo foi abandonado pelo pai aos seis anos de idade e carrega muita mágoa disto. Daí surge certa previsível situação para redenção. Mas não é nada que derrube o filme, pois tudo é feito com muita beleza e emoção.

Gostando-se ou não de “A Partida”, em maior ou menor grau, este é um filme que passa a fazer parte de nosso repertório de inquietações humanas que poucas vezes foram mostradas antes no cinema, com tanta objetividade. “A Partida” é um filme para se reter. Dificilmente estas emoções com os ostensivos e inúmeros rituais vão nos deixar insensíveis mesmo depois se nos atracarmos a uma pizza pós-cinema.

“A Partida” é um pequeno grande filme, que por via transversa, não premiando o soberbo “Entre os Muros da Cidade”, a academia fez bem em premiar. Foi uma injustiça que teve seu lado imensamente positivo: é por ela que estamos agora tendo estas emoções tão nobres em nome da “vida que a morte anda tendo”.

PS O título do post vem de um verso de “Desenredo” de Dori Caymmi e Paulo Cezar Pinheiro, uma canção do repertório impecável de Renato Braz, incluída no CD “Quixote”, um canto maior lamentavelmente ainda pouco conhecido, ainda que seja um dos nossos maiores artistas vivos.

http://www.grupoparisfilmes.com.br/banco_arquivos/imagens/DEPARTURES/APartida-web.jpg

http://www.adorocinema.com/filmes/partida/partida-poster07.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

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