"A Vida Alheia"- “É Mais Interessante Que a Sua”
O Sorrateiro Encanto das Serpentes
Vejo muito pouca televisão, tanto aberta quanto fechada. Não é porque não gosto. É que gasto minha cota de áudio visual na vida vendo/revendo muitos filmes tanto no Cinema em tela grande como em casa com DVDs. Além disso, gosto muito de ler, ouvir música, sair para ver peças, um ou outro grupo de dança, shows e um ou outro concerto. E ainda tenho minhas ambições literárias, com muitos textos para serem retrabalhados (“escrever é reescrever, reescrever”), algumas ideias em mente para desenvolver, dentre outros interesses que não há por que aqui explicitar.
Detalhe incontornável: detesto telejornais. Não suporto assistir a uma avalanche de notícias que nos despejam sem piedade num ato contínuo, com expressões inadequadas dos noticiaristas que embaralham as tragédias mais acabrunhantes com as futilidades mais descartáveis. Prefiro saber das coisas pelos jornais impressos ou virtuais, onde sou eu que dita o ritmo no qual quero me informar. Se, por exemplo, alguma tragédia me abalar, posso parar para respirar fundo e depois saber das outras notícias.
Há quem garanta (e não são poucos) que o melhor da dramaturgia americana contemporânea está na televisão com os filmes feitos especialmente para ela como os da HBO ou então nas séries com suas sucessivas temporadas. Por falta de tempo, não acompanho nada disso. Minha paixão pelo cinema, música, teatro, leitura e escrita, etc, não me dá tempo pra isto.
Mas alertado pelos amigos Luciano e André passei a prestar atenção na mini-série brasileira “A Vida Alheia” com texto de Miguel Falabella, Flávio Marinho e Antônia Pellegrino e me encantei de imediato. Assim passei a toda quinta-feira na Globo, depois de A Grande Família”, a seguir esta deliciosa série de sabor cáustico e agridoce. Claro que há muito mais vidas inteligentes nas TVs abertas e fechadas das quais não dou conta. Mas esta série é bastante singular e um retrato metonímico do que é este Brasil contemporâneo de profissionalismos com pessoas de coração de uva passa ( valendo-me de uma expressão de Luis Fernando Veríssimo), muitas vezes a serviço de atividades vazias como são as revistas semanais que produzem e “celebram” celebridades instantâneas ou às vezes resistentes mais por lavagem cerebral mesmo do que por meritocracia: é impressionante como os passos ( qualquer espirro) de Xuxa, Hebe Camargo, Ana Maria Braga ( para ficarmos só em três pessoas) geram capas da revista Caras, Quem, etc ( não... não as leio, mas vejo as capas nas bancas e nos consultórios médicos e de dentistas, acreditem se quiserem..).
Em suma, há o culto ao suprassumo do supérfluo que agora é agigantado com as criaturas egressas dos Big Brothers da vida.
“A Vida Alheia” (com direção geral de Cininha de Paula, humor afiadíssimo, diálogos impagáveis, montagem apurada e dinâmica onde volta e meia é mimetizada a neurose dos paparazzi, interpretações adoráveis e irresistíveis de Marília Pera, Cláudia Jimenez, dentre outras fixas e de convidados especiais) é um primor de crítica de costumes e um retrato 3 x 4 da razão cínica que contagia a sociedade brasileira, segundo expressão muito feliz do psicanalista Jurandir Freire Costa para nossas infelicidades estruturais. E o que é melhor: a série tem pulsação cinematográfica, longe da atração fatal dos famigerados plano/contraplano hegemônicos em muitos momentos das novelas, bastante distantes do que Bergman sublimemente alcançou em seu seminal “Cenas de Um Casamento”.
O slogan da revista é “Uma vida melhor que a sua”. E a rigor isto capta muito do que acontece na sociedade brasileira (e em outras) onde há quase que uma desistência de viver os próprios sonhos, os desejos pessoais e fica-se simbolicamente masturbando-se com a vida alheia, o que tanto pode acontecer com revistas, novelas, tardes com o Faustão, noites com Big Brother, dentre outros artefatos televisivos. Claro que é possível manter uma posição crítica diante destes programas. Mas na roda-viva da sobrevivência, em que a tendência é procurar só entretenimento, quantos realmente o conseguem?
Nos intervalos de “A Vida Alheia“ é impressionante a quantidade de comerciais que nos querem vender carros! Que país é este? Que espectadores são esses que são visados? Que público alvo é este? Não devem ser os que assistem a “A Vida Alheia” pelo seu humor fortemente crítico e iconoclasta, onde repórteres fazem de tudo para criar uma matéria de capa que vá suplantar seus concorrentes, nem que seja trazendo um assassino até sua família provocando um novo crime e, claro, mais uma “grande” capa e matéria principal semanal. Enfim, Maquiavel está vivo e passa muito bem: os fins, ora os fins, justificam os meios, ora os meios...Quaisquer meios.
Marília/ Catarina Faissol e Cláudia/ Alberta Peçanha trazem a esperteza e o sutil amargor de suas personagens que são as diretoras da revista. Claro que há um lado humano nelas que é explorado. Mas é impressionante como elas passam um rolo compressor em suas humanidades insinuadas em nome de um profissionalismo que visa a produção do que no fundo, não passa de lixo. Carlos Gregório/ Júlio é o ex-marido de Catarina que, despeitado, chega a fundar a revista “Sarjeta” para concorrer com “A Vida Alheia”. Paulo Vilhena/Lírio é o fotógrafo que tem pequenos surtos de consciência, mas acaba sucumbindo ao encantamento de uma das serpentes que é sua namorada arrivista capaz de tudo por conseguir uma matéria de capa ( sob o pretexto de que obedece ordens como muitos da assim chamada vida real...), a repórter Manuela construída com brilho por Danielle Winits. O namorado bem mais jovem de Catarina, João (Raoni Carneiro) está de olho no cargo de direção de Alberta. Pardal (Luciano Borges) é o serviçal gay que mescla bastante ingenuidade com lampejos de lucidez sobre o circo do qual participa. Esse é um núcleo central de onde se amplia o serpentário reinante deste microcosmo de um mundo em derrisão onde reina o cinismo desvairado travestido de altruísmo profissional. E qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não é mera coincidência.
Mas como o que é bom, inteligente e crítico, pode ser sabotado, na quinta-feira 26/10/2010 acabou a primeira temporada com 20 episódios sendo que estavam previstos 25 e não sabemos se haverá uma segunda, etc. Nesta grade acabou entrando mais um abominável reality show, “Hipertensão”, explorando a adrenalina dos participantes. Não se sabe ao certo se uma possível baixa audiência se deveu a um curto-circuito entre expectativa dos espectadores e uma série que parece que vai entregar humor pura e simplesmente e acaba entregando uma ácida visão de mundo.
A adaptação que Fallabela fez de sua peça/monólogos “Como Encher Um Biquíni Selvagem” para o cinema que se tornou “Polaróides Urbanas”( Brasil/2007) resultou num filme muito bom, que por razões inexplicáveis, ao contrário de outros empreendimentos de Fallabela, não foi nem sucesso de público, nem de crítica, o que reputo como uma grande injustiça. Miguel merece apoio para investir no cinema novamente e uma adaptação de “A Vida Alheia” seria muito bem vinda. Não seria mais um filme que emula a linguagem televisiva, mas sim autêntico cinema, pois sua origem que vem da TV já é puro cinema. É um dos caminhos que o tão sonhado cinema popular brasileiro pode tomar.
Torcendo para que os “que mandam” na TV Globo voltem a prestigiar “A Vida Alheia” e que Miguel faça seu filme, termino aqui este post inesperado sobre uma das exceções irresistíveis que não pude contornar e acabei assistindo com grande prazer.
Ps1 Agora temos o Roda-Viva com Marília Gabriela na TV Cultura com o eterno fascínio desta apresentadora, num novo formato, mas esta é outra história, que fica para outra vez. Mas fica só a lembrança de que, pelo que me lembro, esta outra Marília talentosa só trabalhou no cinema no filme sobre Gregório de Mattos de Ana Carolina com Wally Salomão. Aqui temos mais um caso em que o espectador de cinema brasileiro sai perdendo.
Ps2 Este mundinho das celebridades com méritos ou não é tão ridículo que Cláudia Raia quando se separou recentemente de Edson Celulari se viu movida a mandar logo uma carta a estas revistas típicas explicando que tudo se deu em paz para evitar as especulações malévolas.
Nelson Rodrigues de Souza
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