Alguns Filmes Já Vistos no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro de 2010
“Líbano” (Alemanha/Israel/2009) de Samuel Maoz
Quando pensamos que já vimos tudo o que um filme de guerra pode oferecer ( podendo ser mais ou menos pacifista; ou mais ou menos belicoso) surge este magistral "Líbano" de Samuel Maoz, à altura de um prêmio Leão de Ouro de Veneza, que ganhou em 2009.
Quatro militares israelenses "presos/isolados/em ação” dentro de um tanque de guerra fazem incursões antiterroristas no Líbano de 1982. O ângulo de visão circular que eles têm é o que o tanque lhes possibilita, com seus alvos bem delineados. Assim nós espectadores de cinema, principalmente na tela grande, somos também imersos neste tanque, sentindo na pele um tanto do que eles sentem. Não há o menor vestígio de heroísmo. O que há é uma visão documental-realista dos horrores que eles vão presenciando e vivenciando (toda a sequencia com a mulher que perde a filha é de um belo horrível como poucos do Cinema). Os personagens são mostrados em sua frágil humanidade, servindo superiores mais próximos com irritação, cumprindo ordens de pessoas que se escondem em seus gabinetes e questões triviais vão surgindo em meio a decisões estratégicas que precisam ser tomadas, mas que se imiscuem em seu meio, provocando perturbações na aparente boa ordem da loucura da guerra: eles precisam fazer xixi (tanto quanto o prisioneiro que chega a implorar para ser poupado); um deles conta como ficou excitado até o gozo ao ser abraçado pela professora que lhe contou que o pai tinha morrido; o oficial em meio ao caos lembra-se que tem de fazer a barba para manter a dignidade e a higiene que seu cargo lhe inspira etc.
“Líbano” nos leva a uma viagem num tanque que é uma grande ameaça, mas também é ameaçado, numa claustrofobia constante, num trabalho de direção e de interpretação conjunta de atores que também é excepcional.
Ao fim, o filme ainda encontra espaço para um inusitado momento de grande poesia visual que dá mais sentido ao início.
Vamos torcer para que o caótico sistema exibidor brasileiro compre e exiba este filme esplêndido que acrescenta mais uma pedra ao quebra-cabeça dos filmes de guerra que são autênticos libelos anti-belicistas, em que o que vale mesmo é a máxima de Samuel Füller: ”numa guerra o único heroísmo é sobreviver.”
“Kaboom” (EUA/França/2010) de Gregg Araki
Alvíssaras! Um cineasta assumidamente gay que sabe filmar realmente (como Gus Vant Saint, Almodóvar, etc) e não se apoia simplesmente na ousadia de lidar com o homoerotismo de forma desabrida.
“Kaboom” de Gregg Araki na contracorrente do cinema contemplativo de planos longos (o que em muitos casos passou a ser mais um fetiche do que uma real necessidade estética) nos mostra um filme super bem-montado, com agilidade narrativa em que de início temos quase que uma crônica das indecisões que acometem os jovens ao lidar com o seu e o suposto (ou não) homoerotismo dos outros, num campus universitário. Há belas intervenções surreais que se mostram oníricas na realidade. Mas.... Paro aqui: não vamos estragar o prazer do espectador que mergulhar neste filme delicioso sem preconceitos ou disposto a reavaliá-los, seja do ponto de vista estético, como erótico ou ainda com as narrativas mais delirantes que também são muito bem vindas ao Cinema Contemporâneo, pois não há o caminho do Cinema, mas caminhos.
“Mistérios da Carne” de Gregg Araki, um dos melhores filmes já feitos sobre a questão melindrosa da pedofilia só resistiu uma semana no Estação Botafogo 1, desaparecendo de vez do circuito. Nem para as conhecidas “caveiras de burro” ele foi. Esperemos que “Kaboom” tenha mais sorte no amesquinhado circuito exibidor brasileiro.
“O Mural” (Argentina/México/2010) de Hector Oliveira
David Alfaro Siqueiros é um dos grandes muralistas mexicanos. Uma obra rara sua em que não abordou temas políticos e sim eróticos encontra-se na Argentina. “O Mural” do veterano cineasta argentino Hector Olivieira, com suas várias facetas, em essência é a história da construção deste mural, que foi realizada num porão da casa do jornalista Natalio Botana de “Crítica” na Buenos Aires de 1933. De quebra temos a presença da poetisa e musa Blanca Luz Blum que tem um caso com Siqueiros, ao mesmo tempo que é cortejada e aceita os encantos de Pablo Neruda.
O Mural “não é um filme”. É um grande tango audiovisual! E dos melhores. Com preciosa reconstituição de época nos faz mergulhar numa época em que as utopias revolucionárias impulsionavam artistas tanto quanto seus hormônios. Não é um grande filme, mas é daqueles que se assiste com o maior prazer e com nostalgia por não termos vivido aquela época e estarmos agora imersos em tanto cinismo e distopias.
“Essential Killing” (Polônia, Irlanda, Noruega, Hungria/2010) de Jerzy Skolimowski
Um afegão é feito prisioneiro como suposto terrorista pelos americanos no Afeganistão, é torturado e por sorte do destino, o carro por onde é levado cai ribanceira abaixo e ele acaba escapando. Daí em diante temos uma perseguição implacável com cães farejadores, helicópteros, etc. numa paisagem gelada. Como a Pasqualino Sete Belezas do filme homônimo de Lina Wertmüller só lhe resta uma bandeira: sobreviver a qualquer custo, não importando mais moral alguma ou qualquer senso ético. O que se pode esperar de alguém que para sobreviver, dentre outras façanhas, tem de comer formigas ou porções de troncos de árvores?
O grande impacto que este trabalho maravilhoso de Skolimowski que nos traz se deve muito ao fato de que somos colocados na pele deste afegão e acabamos de certa forma a “sentir” tudo que ele sente, compreendendo melhor suas razões, o mesmo procedimento de “Líbano” já comentado.
"Essential Killing" tem uma seqüência fortíssima dentre tantas seqüências fortes, que é digna já de antologia na História do Cinema. De um lirismo crudelíssimo. Mas que não deixa de ser lirismo. Não vou contar aqui obviamente. Mas quem for ver este filme extraordinário vai reconhecer. O prêmio do júri em Veneza em 2010 de melhor ator para Vincent Gallo é mais do que justo (será que o Oscar vai reconhecer este trabalho?). Duvido que "Somewhere" de Sophia Coppola que ganhou o Leão de Ouro seja melhor que este filme, mais um fundamental, de Jerzy Skolimowski que ficou com o especial do júri.
“De Deuses e Homens” (França/2010) de Xavier Beauvois.
Depois do grande impacto de “Essential Killing” de Jerzy Skolimowski surge um filme à altura ou talvez ainda mais grandioso: “De Deuses e Homens” de Xavier Beauvois.
Independentemente de sermos cristãos ou não, católicos ou não, não há como ficar indiferente e não se comover com a história baseada em fatos reais de um grupo de monges do Mosteiro Atlas num país africano que foi colonizado pelos franceses e que mesmo diante das ameaças crescentes de um grupo terrorista que chega a degolar vários croatas, com algumas dissensões internas, no conjunto resolvem ficar no país sem proteção do exército, para poderem continuar com seus trabalhos de ajuda humanitária ( médica principalmente) aos pobres da região.
O veterano Michael Lonsdale (que é um policial no muito bom “O Sequestro do Herói”, dentre tantos filmes , de Buñuel à Spielberg) é o médico infatigável que chega a atender a mais de cem casos por dia. Lambert Wilson (um dos atores fetiche de Alain Resnais) é o monge chefe que transmite a todos sua fé inquebrantável, exercendo grande influência.
A lógica interna do Cristianismo em sua essência, quase que franciscana, desprovida dos preconceitos papais que tanto o emperra, é levada às suas últimas consequências com músicas e letras de cunhos religiosos belíssimas em rituais de encantar até as pedras.
Dentre seus vários grandes momentos temos uma sinfonia de rostos bastante expressivos ao som de “Jesus, Alegria dos Homens” de Handel ( se não me falha minha deficiente cultura de clássicos). A impressão que temos é que o filme vai acabar aqui nesta epifania maravilhosa. Mas.....
Não percam por nada esta obra-prima do cinema francês, da qual ainda ouviremos muito falar. Prêmio Especial do Júri em Cannes 2010. Mas à altura de uma Palma de Ouro de Melhor Filme que foi dada a “Tio Boonmee Que Pode Recordar Vidas Passadas” de “Joe” Apichatpong. Será que este é melhor ainda?
“Tio Boonmee....” teve suas sessões canceladas. Se vier será exibido na repescagem me informou uma das assistentes do festival.
Ps “De Deuses e Homens” não chegou atrasado, não é um filme da Mostra Mundo Gay, não é um filme bizarro da Mostra Midnight Movies ( como o excelente “Biblioteca Pascal”) e foi programado para uma sessão de terça-feira à meia noite no Botafogo 1, tendo uma platéia bastante reduzida, bastante aquém de sua grandeza. Quem foi o gênio da programação que teve esta ideia, para dizer o mínimo, estapafúrdia? Afinal, conforme disse Ilda Santiago na abertura ao lado de Skolimowski “Trabalhamos o ano inteiro vendo filmes para trazer o melhor para vocês”. Vêem mesmo? Até “Tio Bonmee......” se tivesse vindo teria tido uma sessão queimada à meia-noite, um filme que pede bastante paciência e olhar contemplativo, o que depois de uma maratona de filmes de dia ou de trabalho é algo que se torna bem difícil na madrugada.
Pílulas
“Nascidas Para Sofrer" de Albaladejo toca na questão séria do lugar dos velhos na sociedade, com bastante humor. Atores ótimos. Bom filme.
“A Boca do Lobo” ou teve uma projeção digital péssima ou a fotografia original era péssima mesmo. O roteiro até onde assisti era canhestro. Suportei só 20 min.
"Sinto Sua Falta" de Fabián Hofman apoia-se no peso que a morte de jovem resistente à ditadura argentina causa no irmão. Bom. Falta mais ritmo
"À Oeste de Plutão" tem uma primeira parte muito engraçada. Depois se torna um filme grave. Pra mim perdeu o foco. Para outros tem tudo a ver.
Já "Amores Imaginários" do jovem Xavier Dolan chegou a me irritar com sua pretensão e "umbiguice". Mas tem gente que adora.
"Minhas Mães e Meu Pai" é bacana, sem grandes vôos. A cópia em que o vi é de um digital de péssima qualidade formatando tudo sem luminosidade. Amigos que viram o filme na mesma sala ( Botafogo 1) me disseram que a projeção estava ótima. O que aconteceu????
Mas vale a pena ver também "A Women, A Gun and a Noodle Shop", com Zhang Yimou refilmando "Gosto de Sangue" dos Coen com bastante humor e mantendo sua habitual hipnotizante força estética.
Em "O Sequestro do Herói" de Lucas Beavaux, pelo rapto de um grande empresário somos envolvidos numa teia de labirintos éticos não convencionais. Temos o lado do sequestrado, dos sequestradores, da polícia, dos que assumem o lugar na empresa, dos jornalistas, da família em suas divisões. A exemplo de “Doze Homens e Uma Sentença” de Sidney Lumet muito estudado nos meios não cinéfilos, inclusive o militar, este também é um filme que deita raízes sobre o que está em jogo num sequestro e merece ser estudado por profissionais da área de segurança, dentre outros. Mas mesmo com este “didatismo” não deixa de ser um filme arrebatador do qual não despregamos os olhos.
"The Housemade", filme coreano, é Nelson Rodrigues em cruzamento com "As Criadas" de Jean Genet, com pitadas de luta de classes. É um melodrama irônico em que se descartarmos este último componente (a ironia) fica risível. O final é bombasticamente fascinante. Muito bem filmado, como tantos do novo cinema coreano, com belas cenas eróticas.
O que pode a princípio parecer mais uma visão caricata do Brasil, mesmo de longe, digna de estar num filme como "Olhar Estrangeiro" de Lúcia Murat, se revela uma comédia dramática deliciosa. Imperdível. Assim é "Copacabana" de Marc Fitoussi. Isabelle Huppert brilha do começo ao fim, tanto com seu lado sombrio como solar, com um personagem bastante humano, bem diferente de tudo que já fez, mas mantendo a personalidade forte da atriz.
Cotações
0- péssimo
* ruim
** regular
*** bom
**** muito bom
***** obra-prima
À Oeste de Plutão- ***
A Woman , A Gun And A Noodle Shop- ****
Alila- ****
Amores Imaginários- *
Biblioteca Pascal- ****
A Boca do Lobo- 0
Copacabana- ****
A Empregada( The Housemaid)- ****
Essential Killing- *****
Filho Eterno-O Projeto Franskenstein- *
Flanders- ****
França- ****
Free Zone- ****
Independência- ***
Kaboom- ****
Kadosh-Laços Sagrados- ****
Os Lábios- *
Líbano- *****
Minhas Mães e Meu Pai- ***
O Mural- ****
Nascidas Para Sofrer- ***
O Que Mais Quero- ***
Of Gods and Men/ De Deuses e Homens- *****
Paulo Gracindo, O Bem Amado- ****
Protektor- ****
Quatro Noites Com Ana- ****
Rock Hudson- Belo e Enigmático- ***
Sequestro de Um Herói- ****
Sinto Sua Falta- ***
Ps1Alguns filmes cotados foram vistos já antes do festival em outras oportunidades. As cotações foram baseadas nas condições em que os filmes foram exibidos. Há quem tenha visto “A Boca do Lobo” em Buenos Aires em 35 mm, cópia boa e tenha considerado o filme muito bom.
Ps2 Se desejar ver algum dos filmes citados e ele não estiver mais na programação do Festival, fique atento à repescagem que é feita depois do Festival quando temos algumas surpresas em relação a filmes que perdemos e desejamos ver. Ou então rever.
PS3 Para não passar em branco é preciso lembrar que a escolha de “Lula-Filho do Brasil” de Fábio Barreto para tentar uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, por comissão de personalidades brasileiras ligadas ao audiovisual mediada pelo Ministério da Cultura, pelo critério pragmático de que é o que tem mais chances de agradar aos acadêmicos do prêmio é um disparate, algo deseducativo, desestimulante e no fundo algo que revela, inconscientemente, desprezo pelo Cinema Brasileiro e pelo Oscar. Que escolham o melhor filme e seja o que Deus quiser. É a única atitude honesta a tomar. Mesmo porque já não se sabe mais “o que agrada no Oscar”. “Onde os Fracos Não Têm Vez” e “A Partida” ganharam Oscars de melhor filme, o segundo o de estrangeiro e nenhum dos dois tem o “perfil Oscar”. Vai ser mais uma vez um tiro pela culatra. Uma comissão só de burocratas não teria feito trabalho pior...
PS4 "Tio Boonmee..." chegou depois que este post já havia sido publicado. Exibido numa sessão de meia-noite ( Absurdo!). Uma obra-prima.
Nelson Rodrigues de Souza
Nelson, putz! Queria estar aí, vendo tudo... risos... quanta coisa boa. Fiquei especialmente curioso com o filme sobre o Rock Hudson, se bem que o meu gay favorito - ator que considero um poema! era o Burt Lancaster, só que que ele fez no belíssimo "Grupo di Família in un interno"; aqui "Violência e Paixão", de outro gay maravilhoso como o Visconti. E queria ver, também o "Copacabana"...
ResponderExcluirBeijos daquele que não é você, mas que seria honroso ser,
Ricardo Aguieiras
aguieiras2002@yahoo.com.br
http://dividindoatubaina.wordpress.com
Oi,Nelson
ResponderExcluirComo o tempo tem que ser administrado,resolvemos aqui-marido e eu- ver o filme das 22 horas, no VIVO Gávea.
Foi uma bela decisão porque os óbvios a gente vai ver no circuito.
O documentário Rock Hudson foi um deles, ontem um sobre Roman Polansky, um filme português de vanguarda,outro argentino na mesma linha e o maravilhoso "Filme Inacabado" de propaganda nazista usando judeus do gueto de Varsóvia que deveria ser exibido nas escolas e para o líder iraniano que diz não ter existido o Holocausto.
Mais uma vez parabéns pela fase fértil e que ela continue.
Beijos
Thereza Pires