domingo, 18 de julho de 2010

Sweeney Todd, o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” de Tim Burton - O Lirismo Que Vem do Atrito Entre a Inocência e a Perversidade*




“Sweeney Todd, o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” de Tim Burton

O lirismo que vem do atrito entre a inocência e a perversidade*

Leiam o email que recebi de um amigo fotógrafo e artista plástico:

“Artista faz ação no Mercado Livre”

“O que se espera encontrar no Mercado Livre, o maior portal de leilões de produtos do mundo, com "bases virtuais" em quase todos os países? Cds, eletrônicos, artigos importados, objetos semi-novos, raridades, etc. Porém, nesta última semana apareceu a oferta de um produto inesperado: sonhos, incertezas e dores, à venda no mercado livre! "Todas as minhas dores", "todas as minhas incertezas" e "todos os meus sonhos" são as mais novas ofertas do portal e é o mais novo trabalho da artista Keyla Sobral “.

Depois que Marcel Duchamp “derrubou o pau da barraca” da arte “mais bem comportada” nos anos 10 do século passado com o seu urinol, a roda de bicicleta sobre um banquinho de cozinha, seus ready-mades e outras manifestações, dentro do contexto de sua época, numa atitude hiper-transgressiva, as artes plásticas e seus derivados, como o universo das performances e instalações nunca mais foram as mesmas, para o bem e para o mal. Assim nos deparamos contemporaneamente com o que foi relatado sobre o Mercado Livre, com instalações em que milhares de maçãs apodrecem sobre placas de Laura Vinci, um cachorro amarrado sem água e comida no fundo de uma galeria ( para dialogar com a insensibilidade e hipocrisia de nosso mundo....), várias melecas expostas numa urna tampada com vidro (“Cubo Transparente de Resíduos das Vias Respiratórias”), quadros de Barnet Newman totalmente monocromáticos com uma linha vertical que o corta de forma assimétrica, etc, etc....

Ficam as questões que não querem se calar? Isto é arte? Isto não é arte? Existe resposta no meio termo? Ela nos emociona? Precisa nos emocionar?

Tim Burton, um dos gênios do cinema contemporâneo, de grande ousadia, transgressão, originalidade, imprime sua marca pessoal tanto em produções encomendadas como o magnífico e subestimado “Planeta dos Macacos” (2001- com seu desfecho tão atordoante e belo quanto o do clássico de 1968, de Franklin Schaffner, que o inspirou), como Batman (1989- com seu paradoxo dialético genial de criador&criatura, onde Jake matou os pais de Bruce Wayne forçando-o a transformar-se em Batman e este joga Jake num enorme recipiente de ácido verde, obrigando-o a transformar-se no terrível e hilário criminoso Coringa, magistralmente composto por Jack Nicholson, que gosta de “dançar ao luar com o diabo”) como nas totalmente autorais tais como as obras-primas “Ed Wood”(1994) e “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”(2003), ainda que este último seja baseado num romance de Daniel Wallace, etc.....

Dentro do “Planeta Burton” não temos dúvida de que se trata de grande arte fruto de um grande artista plástico que dialoga e muito com seus diretores de design, exerce um fantástico trabalho de direção com todos os elementos fílmicos, para imprimir uma aura inconfundível e suis generis no Cinema de hoje. Resumindo: ao contrário dos exemplos citados anteriormente no mundo da arte, diante de um trabalho de Burton, não vacilamos. Estamos diante de um grande artista. E como!

Burton é um artista que cumpre com galhardia (como Hitchcock, Polanski, Kubrick, Spielberg, etc....) a profecia de Oswald de Andrade (que para o grande escritor não se realizou): “Um dia as massas irão comer os biscoitos finos que fabrico”. Enfim, Burton faz parte do seleto grupo de realizadores de biscoitos finíssimos para as massas. Não é à toa que em “A Fantástica Fábrica de Chocolates” (2005) Burton parodia a seqüência com os macacos e o monolito, agora um tablete de chocolate, remetendo a “2001:Uma Odisséia no Espaço” e ainda a seqüência do assassinato no chuveiro de “Psicose”.

Juntemos num caldeirão de bruxa, pitadas da genialidade artística e técnica de Orson Welles e Kubrick, da inocência e pureza de Ed Wood ( “o pior cineasta do mundo”, um artista que tinha obsessivamente arte em sua cabeça e não nos projetos que conseguia realizar na prática, conforme nos mostrou o filme-tributo citado sobre ele), do Menino Maluquinho de Ziraldo ( que sobrevive saudavelmente ainda em nós se o permitirmos, não matando-o), da comunicabilidade de fabulistas como Esopo, Hans Christian Andersen e os irmãos Grimm, do amor ao sobrenatural e ao “mórbido” de Edgar Allan Poe, dos filmes de terror da Hammer, etc, etc.....Misturemos isto tudo e teremos um tanto da alma de artista de Tim Burton. Mas isto não o torna nunca previsível. Tim sempre nos surpreende como o fez na deliciosa comédia “Marte Ataca!” (1996), inspirada por uma coleção de figurinhas, resultando numa sátira demolidora aonde os marcianos chegam à Terra atacando indiscriminadamente, não poupando nem mesmo o presidente dos EUA e a primeira dama.

Embora já tenha flertado em parte com o musical antes nos estupendos “O Estranho Mundo de Jack” (1993- dirigido por Henry Selick e produzido por Tim) e “A Noiva-Cadáver”( 2005), duas das mais belas animações da História do Cinema, feitas meticulosamente ( predominantemente, em stop-motion ) e em “A Fantástica Fábrica de Chocolates”(2005), em “Sweeney Todd, o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (EUA/Inglaterra/2007), Tim se embrenha “por mares nunca dantes navegados”, com excepcional resultado: um musical pleno de ponta a ponta, gótico e sanguinolento que pode afastar aqueles que ( para mim um mistério...) não gostam quando ações se interrompem em sua forma “natural” e prosseguem com os personagens cantando. Mas a incontornável fusão de perversidade e inocência ( no melhor sentido desta palavra) que atritadas geram uma comovente poesia, um lirismo encantador, estão aqui presentes mais do que nunca, neste que talvez seja o trabalho de Tim mais rigoroso, bem-acabado tecnicamente e emocionante, superando até mesmo os já citados “Ed Wood” e o grandioso e subestimado “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”.

Ao se tratar do tema da vingança num filme (“O homem do ressentimento vive em estado larvar”- nos lembra Mircea Eliade, o grande mestre romeno da História das Religiões) sempre se corre o risco de se cair no protofascismo, vala comum onde caíram Neil Jordan no indefensável “Valente” (EUA/2007) e David Slade em “MeninaMá.com” (2005). Já deixando para o espectador tirar suas conclusões, sem adesões automáticas a seus personagens, com a mesma grandeza de “V de Vingança” (2006) de James Macteigue (produção dos Irmãos Wachovski) ou num nível menos elevado, como no caso do premiado com o Urso de Ouro em Berlim 2008, “Tropa de Elite” de José Padilha, em “Sweeney Todd,.....”, somos incitados a compreender as motivações de personagens vingadores, entramos e saímos de dentro de suas peles, com desfechos que estão longe de serem moralistas como também de serem caudatários da filosofia “olho por olho, dente por dente”que já é péssima por si só, ainda mais quando levada a extremos.

Richard Parker (Johnny Depp, irretocável, em sua sexta excepcional colaboração com Tim) vive na era vitoriana inglesa do século XIX com sua bela esposa Lucy (Laura Michelle Kelly) e sua filhinha. O Juiz Turpin (Alan Rickman) “cobiçando a mulher do próximo”, com um pretexto estapafúrdio, manda prender Richard para “roubar” Lucy. Richard fica preso 15 anos, ruminado vingança e volta de navio à sua Londres onde agora só vê podridão, “onde os baixos são escravizados pelos autos”, travando contacto com o jovem marinheiro Campbell Bower (Anthony Hope Jamie) para quem dá o endereço para onde se dirigirá que é onde morou, na Rua Fleet, um local nevrálgico da cidade.

Chegando na casa que foi sua, encontra a Senhora Lovett (Helena Bonham Carter, em mais um fantástico trabalho com o maridão Tim, numa prova de que na arte pode haver o nepotismo do bem...). Esta mal vive da venda de tortas de pouca aceitação popular e guardou todas as navalhas de Parker de quando este era um prestigiado barbeiro. Depois do encontro numa praça (saboroso) com o trapaceiro e barbeiro Signor Adolfo Pirelli (Sacha Baron Cohen, impagável tanto quanto em seu personagem e documentarista em “Borat, o segundo melhor repórter.....” - 2006), que junto a um explorado menino de feições e circunstâncias de um personagem de Charles Dickens, vende falsa loções para cura de calvície, Robert Parker numa disputa com Pirelli, para saberem quem é melhor barbeiro ( com este cantando afogado em sua vaidade), agora sob a identidade de Sweeney Todd se sai vitorioso e cria fama.

Por artimanhas do destino que não convém aqui adiantar, enquanto aguarda a concretização de sua vingança em relação ao Juiz Turpin, agora com a guarda da filha que teve com Lucy, tendo esta se suicidado, conforme relata a Senhora Lovett, Sweeney Todd, com um ódio cego que passa a destilar à humanidade dos que podem ir ao seu salão de barbeiro, mata todos os que pode com suas navalhas bem afiadas, deixa os corpos caírem por um alçapão embaixo de sua cadeira de barbeiro, até o subsolo, onde os corpos são processados para virarem um inusitado ingrediente que Lovett passa a usar em suas tortas, com grande sucesso comercial, saindo do limbo em que se encontrava.

O marinheiro Campbell se apaixona por Johanna Jayne (Jayne Wisener), filha de Sweeney/ Richard, com uma vida doméstica de prisioneira nas garras do Juiz Turpin. Este é também um dos plots que movimentam a história. Sim, há elementos que podemos considerar previsíveis nesta adaptação para o cinema pelo roteirista John Logan (de “O Aviador”), junto com Stephen Sondheim, que condensaram o musical homônimo de três horas estreado na Broadway pela primeira vez em 1979, de autoria do próprio Sondheim (letrista do clássico musical “Amor, Sublime Amor/West Side Story” de 1961 de Robert Wise e Jerome Robbins) e de Hugh Wheeler, com base numa peça de Cristopher Bond de 1973, que aproveitou uma lenda inglesa, que como toda lenda não se sabe o que é realidade histórica ou o que é ficção. Mas alguns aspectos de previsibilidade não tiram em nada o fascínio que é assistir ao filme. Nele forma e conteúdo dão as mãos de forma impecável, com o luxuoso auxílio do design de arte Dante Ferreti (candidato ao Oscar deste ano na categoria), com quem Burton dialoga magnificamente, num entrosamento precioso, de figurinos de grande originalidade em seus efeitos de Colleen Atwood (também concorrente ao Oscar) e de uma fotografia deslumbrante de Dariusz Wolski, onde predominam os tons escuros e sombrios, num clima gótico e a cor só aparece com força nuns devaneios que Lovett tem em sua expectativa de uma vida idílica amorosa com Sweeney Todd ou então no vermelho do sangue que esguicha dos pescoços.

Sweeney Todd pega uma navalha, ergue para o alto e se sente renascido após tanto sofrimento que o acompanhará sempre (saboreia o gosto da vingança, mas é um gosto muito amargo), dizendo em alto e bom som: ”Finalmente meu braço está completo outra vez”. Aqui Tim Burton evoca outra de suas grandes criações que é o maravilhoso personagem título “Edward, Mãos de Tesouras” (1990). Mas enquanto este feria as pessoas involuntariamente, querendo afagá-las, numa metáfora da incomunicabilidade humana digna de Bergman e Antonioni, o perverso Todd, imbuído de suas razões , que compreendemos mas não justificamos, mata pessoas com grande requinte.

Sobre a violência explícita em seu filme e o tom buscado e plenamente atingido é o próprio Tim Burton quem melhor explica, tendo como fonte a revista Pipoca Moderna número 35:

“As raízes de Sweeney Tood estão na tradição do Grand-Guignol, que é melodramática, com exagero de sangue, todo este tipo de coisa. Não é certo ser politicamente correto com algo assim”

“A sensação era que estava fazendo um filme mudo com música. Os atores se moviam de forma diferente”

“Eu cresci assistindo aos filmes de horror da Hammer, que usavam sangue bem vermelho. Eles tinha certa vibração. No meu filme, os personagens, especialmente Sweeney, são rígidos e contidos, mas o sangue, ele significa uma espécie de liberação. É como uma emoção bem vermelha”

Johnny Depp como Sweeney Todd canta bem para os propósitos do filme, como todo elenco e provavelmente está em seu melhor trabalho: ele evoca vários de seus personagens anteriores com ou sem Tim Burton, mas ainda nos traz uma original máscara perturbadora de pureza, perversão, vingança, dor, humor, solidão, crueldade, etc.numa chave contida, com momentos estupendos de explosão.

Consciente de que “quando eu expulso meus demônios meus anjos também vão embora” ou de forma mais simples de que “onde tem fada tem bruxa”, Tim Burton é um artista do cinema, que mesmo entrando em projetos aparentemente tipicamante hollywodianos (como seu magnífico “Batman”), é com sutileza, muito engenho e arte, um grande crítico da sociedade americana em particular e do nosso mundo de uma forma mais geral, pois conforme nos mostrou em outras de suas obras-primas, a animação “A Noiva-Cadáver”, o mundo dos mortos pode ter mais vida, danças e cores do que o gangrenado mundo cinzento dos vivos com suas convenções sociais e políticas que sufocam as pessoas.

Transgredindo alertas de Lupicínio Rodrigues a “estes moços, pobres moços”, podemos dizer que muitos personagens de Burton “deixam o Céu por ser escuro e vão ao Inferno à procura de Luz”. Luz que reluz na tela mágica do cinema grandioso, imprescindível e fundamental de Burton, desde as primorosas aberturas que já dão a senha do prazer com que veremos suas obras. Se Federico Fellini como dizia Glauber era o melhor pintor móvel do século XX, Tim Burton ao lado de Emir Kusturica (do essencial “Underground-Mentiras de Guerra-1994) não deixa morrer a vocação do cinema para as grandes fantasias feéricas, longe de influências neo-realistas (nada contra estas que se espalham hoje com belíssimos resultados em várias cinematografias) e se tornam os dois, os grandes pintores móveis vivos do cinema contemporâneo. A eles então.

Ps Tim Burton ganhou o Leão de Outro do Festival de Veneza de 2007 pelo conjunto de sua obra. Nunca ganhou Oscar de filme ou de direção. Este ano,2008, “Sweeney Todd,....” concorre em três categorias: ator ( Johnny Depp), direção de arte e figurinos. Poderia com toda justiça estar concorrendo também a filme, diretor, atriz, fotografia, montagem e roteiro adaptado. Ganhou o Globo de Ouro 2008 de melhor filme comédia ou musical e melhor ator (Depp) para este mesmo quesito.

*Texto publicado originalmente para o Jornal Montblãat em 2008, com pequenas modificações.


http://www.miscampinas.com.br/console/Eventos/Exibicao_do_filme_Sweeney_Todd_O_Barbeiro_demoniaco_da_Rua_Fleet681.jpg

http://blig.ig.com.br/lucasfilmes/files/2008/02/01.jpg

http://nycsunflower.files.wordpress.com/2009/11/tim-burton-by-hoffman.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Algumas Observações Suscitadas por “Anticristo” de Lars Von Trier




Importante: Este post contém spoilers, ou seja, detalhes importantes de filmes de Lars Von Trier serão revelados.

1) Lars Von Trier criou Anticristo(2009) como uma forma de exorcismo de seus demônios interiores que o estavam deixando em depressão. Anticristo é assim um filme sobre depressão, luto, dor, arrependimento, amor, morte, com cenas que podem chocar pela sua contundência explícita. Por razões que as armadilhas e encruzilhadas do destino ou então sociais, psicológicas, psicanalíticas,etc. explicam, caí em depressão e síndrome do pânico em três períodos da minha vida. O último ocorreu neste tempo (um ano) em que me mantive afastado do blog, sem ânimo para escrever nenhum post. Praticamente só saia de casa para consultas médicas e terapêuticas, tendo ido muito pouco ao cinema. Uma grande ironia do destino: eu que sempre fui fissurado em cinema e sem falsa modéstia, bastante corajoso para enfrentar muitos filmes fortes, nos meus dois últimos períodos de depressão tomei o maior medo dos filmes. Só de imaginá-los me sentia desconfortável e mal.

A propósito dos 80 anos de Ingmar Bergman o MAM-RJ e o Estação Botafogo 1 promoveram uma grande retrospectiva da obra deste diretor essencial. Era fim de ano e meu trabalho estava mais leve. Assim no espaço de quinze dias assisti a mais de trinta filmes de Bergman ou com roteiros dele (revendo obras e vendo outras inéditas pra mim), sendo que nos momentos de folga lia “Imagens” de Ingmar Bergman, um sensacional livro sobre o processo criativo de um gênio do cinema, publicado pela Martins Fontes. Numa tarde de sábado vi em seguida três obras da fase mais hermética de Bergman: “A Paixão de Ana”, “A Hora do Lobo” e “Vergonha”. Claro que depois de passar por estas experiências não se é mais a mesma pessoa. Se um grande filme nos modifica, nos faz reavaliar a vida e valores, imaginem vários! De Bergman!

Pois nas minhas crises de depressão o que era um grande prazer para mim passou a ser um instrumento de grande medo e tortura. Nas minhas crises fui readquirindo forças paulatinamente para poder, dentre outras atividades, voltar a ver filmes, algo que tanto amo. Nem DVDs em casa eu via. Logo eu que tenho considerável coleção de DVDs por serem vistos e revistos. Atenção para ler livros e revistas também não tinha. Ouvir música me deixava angustiado. Ler jornais nem pensar. Até ver televisão me era penoso. Enfim, perdi muito tempo da minha vida nestes estados de depressão. Claro que tendo condições econômicas (o pobre, coitado, nestas minhas crises, está condenado à loucura e morte) me cerquei de profissionais que julgo competentes e generosos para lidar com meu caso. Nesta última crise (como na anterior), com humildade, me vali da ajuda de cinco profissionais: a saber, um psiquiatra que me receita remédios (alguns de tarja preta) que tomo religiosamente, tendo com ele também conversas terapêuticas; uma terapeuta holística e cromoterapeuta fantástica, um psicanalista junguiano (algo novo pra mim, pois antes fiz análises lacanianas); um médico homeopata unicista que tem por trás de seu trabalho uma sólida formação em filosofia e um urologista pois um dos fatores que causou minha última depressão ( isto me atrevo a revelar) foi a descoberta em tempo de um início de câncer de próstata, o que me obrigou a fazer uma operação para sua retirada, o que acarretou um efeitos colateral com o qual tenho de lidar hoje. Graças a Deus, descobri o mal no ínício, mas vou ter de fazer exames periódicos por um período de cinco anos.

Agora saí da depressão, estou me sentindo muito bem, com bastante energia e pude então ver em DVD o tão polêmico Anticristo de Lars Von Trier, algo que desejava muito ver no cinema, na tela grande, mas não tive coragem em 2009. As crises mostradas no filme estão muito distantes das minhas. Mas alguns pontos em comum existem. Uma pessoa em depressão tende a ampliar as coisas tristes como sendo as maiores tristezas do mundo. Tudo acaba lhe assustando. O pânico toma conta. Em vez de dizer que o copo está meio cheio, neuroticamente acaba vendo só o copo meio vazio. Surge uma inveja muito grande das pessoas que estão bem e produtivas. Tudo se passa como se de certa forma o deprimido se tornasse um tirano. Um tirano que mesmo passando grande parte de seu tempo deitado numa cama, acaba observando o movimento dos outros e até, de certa forma também, fica torcendo para que os que o rodeiam estejam tão mal quanto ele. A imagem que me vem é a de um náufrago que está tendo ajuda e acaba por tentar puxar quem o acode para dentro da água. A idéia difundida de que “o ócio é a oficina do diabo” é a mais pura verdade.

Enfim, fiquem tranqüilos, pois agora estou me sentindo muito bem por ter sobrevivido ( havia momentos em que havia uma sensação de morte iminente, por só enxergava a vida em cores cinzentas e me avizinhava da loucura).

2) Sinopse não convencional detalhada de Anticristo de Lars Von Trier

O filme começa com belíssimo preto e branco em câmera lenta mostrando um casal transando com sexo explícito (Ela: Charlotte Gainsbourg, magistral, Palma de Ouro mais do que merecida em Cannes 2009; Ele: Willen Dafoe, num trabalho admirável). Enquanto isto vemos uma criança que sai de seu berço, derruba soldadinhos no chão e voa pela janela como um pássaro, morrendo na marquise. Corte: passamos para o cortejo fúnebre da criança com os pais arrasados. Ela chega a desmaiar. Corte: já se passou um mês depois da tragédia e ela esteve internada num hospital. Ao chegarem em casa, Ele que é psicanalista, considerando-se a pessoa que mais a conhece, critica a quantidade de remédios que o médico receitou e diz que vai cuidar dela como se fosse um dos seus pacientes. Remédios são jogados no vaso sanitário. Ela passa a ter crises sucessivas. Numa delas chega a ferir a cabeça batendo com força no vaso. Ele procura saber quais são os maiores medos dela. O arrependimento e a culpa que a contagiam têm como uma das razões o fato dela saber que o filho costumava se levantar à noite. Ela que interrompeu uma tese que estava escrevendo sobre o Feminicídio (assassinato de mulheres na História da Humanidade) aponta como medo maior a floresta, em especial a casa que eles lá têm que ironicamente se chama Éden.

Os dois encaminham-se para Éden e a floresta que a rodeia. Ele procura fazer exercícios com ela para que ela aprenda a andar por ali sem medo, mas às vezes ela sai correndo. Diz que o chão a está queimando. Ele diz que quer ter “a coragem de estar na situação que te apavora para ver que o medo não é tão perigoso”. Numa das conversas na casa ela diz que “A Natureza é a Igreja de Satã”. A Natureza passa a soar perigosa. Ele passa a ver signos demoníacos. Ela tem a impressão de que o filho está vivo.Ele lhe apresenta a autópsia do filho, algo que havia escondido dela e consta uma lesão no pé. Tomamos conhecimento de que ela calçava o filho com os sapatos trocados.

Animais surgem na floresta: corvo, servo, lobo. Uma raposa falante surge e fala que o caos reinará. Surgem três mendigos: a dor, o luto e o desespero. Em muitas das crises dela, eles acabam transando convulsivamente. Numa delas, ela machuca o peito dele e ele se torna ainda compreensivo. Mas a loucura vai tomando conta do ambiente. Ele de pênis ereto ejacula sangue. Ela acaba por fazê-lo desacordar e enfia-lhe numa das pernas um esmeril (com a haste) de amolar ferramentas. Com isso no período em que ela saiu, para esconder a ferramenta que usou, ele acorda e com dificuldade se arrasta até a floresta, onde se esconde num buraco. Ela o procura e o encontra. Em um gesto de fúria, o soterra. Ao ver que ele iria morrer, o retira do buraco e o leva à Éden. Lá ela em um dos seus delírios, se auto-mutila, cortando com uma tesoura o clitóris. Fica desacordada.Ele acha a ferramenta para remover a haste de esmeril, sentindo bastante dor. Ela acorda e parte pra cima dele. Ele acaba estrangulando-a na casa e com uma muleta sai pela floresta. Um contingente de pessoas sobe a floresta enquanto ele desce, mancando. Volta na trilha uma ária de ópera que remete ao sagrado, a mesma que pontuou o prólogo do filme.

Enfim esta é uma sinopse possível para este filme altamente instigante, misterioso, com fortes camadas psicanalíticas. Outras diferentes, ressaltando outros aspectos podem ser feitas.

3) Cannes 2009

O filme aturdiu tanto o festival de Cannes 2009 que na entrevista coletiva um jornalista indignado chegou a exigir que Lars explicasse o que quis dizer com seu filme. Lars, imperturbável, disse, com toda razão, que não devia nenhuma explicação. No material que foi distribuído em Cannes o diretor escreveu que convida os espectadores para “uma olhada por trás da cortina, uma olhada no mundo obscuro da minha imaginação”. Se pensarmos bem nenhum autor pode verdadeiramente explicar sua obra (que o diga David Linch...). Cabe às pessoas que a virem/lerem, amando-a, odiando-a ou indiferentes, tirarem suas próprias conclusões. Lars mesmo com toda virulência e contundência de suas obras é um poeta de imagens e sons perturbadores e “ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível” ou então “deixe a meta do poeta fora da disputa, pois ao poeta cabe atingir o inatingível”, conforme Gilberto Gil em uma de suas mais belas canções, uma autêntica teoria da Literetura e por extensão do Cinema também. ”Deixe-a simplesmente metáfora”. O jornalista foi agressivo e mal educado com Lars, algo muito comum hoje em dia para gerar notícias e lucrar com elas.

4) Se atentarmos bem, o psicanalista foi irresponsável. Não foi à toa que vemos uma tragédia em evolução. A psicanálise exige distanciamento entre o paciente e o terapeuta. Ele faltou com a ética profissional ao atrever-se a tratá-la, por mais que a conhecesse. Criticar os remédios receitados também foi uma temeridade. Estes muita falta fizeram a ela.

5) Numa seqüência ela diz que ele se mantinha distante do filho e dela. Ele se defende alegando que ela é que queria ficar sozinha com o filho em Éden para escrever sua tese. Irônica e sugestivamente ela que estudava o feminicíduo acaba por mutilar-se, sentindo prazer na dor. Também quis punir-se por estar transando enquanto o filho morria. Ao mesmo tempo, inconscientemente, queria também matar o filho, calçando-o com os sapatos trocados. Muitas mães sentem o desejo de matar suas crias. Já vi num sinal fechado de uma travessia movimentada e perigosa, aqui no Humaitá-RJ onde moro, uma mulher usar o carrinho de bebê para obrigar os carros a pararem para ela atravessar, apressada. Não podia esperar o sinal abrir como todos nós.

6) Ao atravessar a haste do esmeril na perna dele, ela quis fazê-lo ficar com “todo o peso deste mundo” para que ele compartilhasse com ela sua dor, culpa e arrependimento.O deprimido é um tirano que quer os outros sentindo a sua dor. Ainda pode-se lembrar que no mito de Édipo (“pés inchados”) quando Laios, o pai, descobriu que o filho o mataria e casaria com a mãe Jocasta, fez com que ele fosse levado para floresta, onde furaram-lhe os pés e o amarraram de ponta cabeça em uma árvore para ser devorado pelos animais selvagens. Pastores de Corinto o salvaram e ele foi criado pelos reis desta cidade grega. A fuga do psicanalista ao final, mancando como Édipo, é bem significativa deste mito. Ele também foi um grande transgressor como Édipo, matando a mulher.

7) Ainda que fruto da depressão de um grande artista de obras geniais e comoventes como “Ondas do Destino” (1996), “Dançando no Escuro” (2000), “Dogville” (2003), diferentes formas de como a tentação de fazer o bem até seus últimos limites, pode levar à auto-destruição e deve ser trabalhada ( a protagonista de Dogville, exceção, passa de vítima a algoz), Anticristo é uma obra solidamente construída em que nada é gratuito.O que provoca horror tem suas motivações e pertinências, sendo o filme estruturado em um prólogo, quatro capítulos e um epilogo bem definidos em que evoluem imagens inesquecíveis.

8) Acredito que depois de comparar o relato de minhas depressões com Anticristo, o leitor entenda melhor do porquê este filme me tocou tanto. Curiosamente em minha última crise houve momentos em que eu acreditava sinceramente que iria morrer e assim conseqüentemente iria desencadear muitas perdas. Eu me sentia também um Anticristo..

Domingos de Oliveira já disse certa vez que o mundo enlouqueceu, está doente e que só a arte salva. Eu concordo totalmente. Salvei-me pela arte seja escrevendo ou como espectador e espero continuar assim daqui por diante, não digo totalmente feliz sempre, pois isto é uma quimera, conforme Bergman demonstra no seminal “Gritos e Sussurros” ( sempre alternamos altos e baixos; a felicidade a rigor não existe; o que existe são momentos felizes como quando Agnes está numa paisagem florida numa cadeira de balanço com as irmãs). Estou determinado a degustar a vida, o que resta do tempo.

Lars Von Trier nos deve ainda, dentre outras criações a terceira parte de sua trilogia sobre os Estados Unidos, depois de Dogville e Manderlay. Aguardo com carinho, curiosidade e ansiedade a produção e exibição de Wasington (é assim mesmo). É mais um bom motivo para viver bem até lá, vendo filmes, lendo, escrevendo, conversando com amigos, etc.

A escritora de Von Trier tomou trilhas erradas para sua cura. Mas as pessoas para um mesmo problema acabam tendo sentimentos e reações diferentes. A rigor, não podemos julgá-la nem ao marido por querer ajudá-la de uma forma errônea.

Lars Von Trier nos mostra em suas obras a complexidade, as contradições e ciladas da arte de viver. Viver é muito perigoso, diz Riobaldo em “Grande Sertão:Veredas” de Guimarães Rosa. Mas vale a pena viver. Mesmo num mundo que conspira contra nós.

É melhor parar por aqui.

The End.

Ps. Textos que me ajudaram na construção do post:

http://cinema.uol.com.br/ultnot/2009/08/27/ult26u28833.jhtm

http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/?s=Anticristo

Links das Imagens

http://www.semanacineespiritual.org/crit/anticristo_sanchez_files/Anticristo.jpg

http://ideiasabstratas.files.wordpress.com/2009/09/2009horrormovieantichristphotocall1yxnmt9mvg-l.jpg

http://cheioderaminho.files.wordpress.com/2009/09/antichrist_lars_5-1024x434.jpg

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Maldade e a Bondade Que se Escondem nos Corações Humanos




Em torno de três anos colaborei com o jornal eletrônico Montblät (e depois site) capitaneado pelo grande jornalista Fritz Utzeri. Fritz havia saído do Jornal do Brasil, pois já se insinuava a sua decadência, o que está mais do que confirmado agora em que teremos só a versão eletrônica do jornal. Uma grande perda para a cultura brasileira. “Pior do que não ler jornais, é ler um só”. E é a isto que estamos condenados na cidade do Rio de Janeiro.

Fritz não se adaptaria a O Globo e partiu para um trabalho independente que chegou a acabar, o Montblät, mas agora foi retomado. Não mais colaboro com o jornal eletrônico, pois tenho outros planos. No início, quando fui gentilmente convidado para escrever no Montbläat apostei na idéia de que os leitores gostariam de textos minuciosos onde eu avisava que havia spoilers (detalhes importantes de filmes foram revelados), mas estes leitores não aprovaram a idéia. Senti-me então impelido a fazer então textos mais curtos evitando spoilers.

Entre os textos que escrevi, um dos que mais gosto é este sobre a obra de David Cronenberg que vai adiante, com algumas correções. Aos poucos vou colocar no Blog textos que ainda julgar pertinentes. Espero que vocês gostem também.

Nelson

“Senhores do Crime” de David Cronenberg

A Maldade e a Bondade que se Escondem nos Corações Humanos

O cineasta e ensaísta Paul Schrader (de “Mishima:Uma Vida em 4 Tempos”, “O Gigolô Americano”, roteirista do clássico “Taxi Driver” de Scorsese, dentre outros feitos) associa o trabalho de um diretor de cinema ao de um parteiro. Já o crítico de cinema seria um legista. Ou seja, um dá vida a uma obra de arte. O outro ao “examiná-la” age como se desvendasse as entranhas da obra de arte enquanto um corpo “acabado”.

David Cronenberg (como Bergman, Antonioni (“geômetra cartesiano dos sentimentos humanos”, conforme já o denominaram), Hitchcock, Buñuel e mais recentemente o malaio radicado em Taiwan, Tsai Ming-liang, dentre outros) é ao mesmo tempo um grande parteiro criador e um grande legista que revira seus personagens do avesso. Valendo-nos de uma feliz expressão do crítico musical Tárik de Souza para um livro de poemas seu, adaptando-a para o plural, Cronenberg é da dinastia nobre dos cineastas que fazem autênticas “autópsias em corpos vivos” que recria na tela, segundo uma ótica inconfundível. Sua obra é repleta de personagens captados em sua solene bizarrice, suas metamorfoses, suas identidades ambíguas e escorregadias, suas esquizofrenias, seus mundos virtuais, suas premonições, seus cigarros que queimam a pele, seus vídeos com torturas e assassinatos para deleite alucinatório, etc..., com explicitação dos fluidos e traumas do corpo como o sangue, vômito, miolos e veias arrebentadas de cérebros explodindo (como no fabuloso “Scanners- Sua Mente Pode Destruir” -1981), feridas, cortes, ossos expostos, vísceras, unhas arrancadas e outras características mais impactantes. Tudo isto o torna um cineasta muito especial, onde uma aparente frieza de “homem de ciência” esconde emoções bastante fortes e sutis e um intrincado e perverso jogo social que se instala com regras que muitas vezes não são nada claras e limites que são esgarçados ao máximo.

Em “A Mosca” (1986) temos um dos filmes mais “repulsivos” já feitos pelo que explicita, mas imantado do “belo horrível”, sendo um dos mais fascinantes pelas questões que sugere e levanta, dentro do universo “o feitiço volta-se contra o feiticeiro”. Em “eXistenZ” (1999), não lançado comercialmente no Brasil ( nem em DVD) pessoas entram em mundos virtuais sucessivos em que a realidade se torna movediça, impalpável, ininteligível. Um mundo futurista avançado onde se convive com répteis e anfíbios mutantes, havendo ligações com cordões umbilicais a uma espécie de placenta, possibilitando aos seres participarem de jogos que mal compreendem no universo de eXistenZ. Este é um dos melhores, mais perturbadores e originais filmes de ficção científica já feitos. “Videodrome- A Síndrome do Vídeo” (1983) não fica abaixo em qualidade: é uma obra premonitória do nosso mundo onde não se sabe mais onde começa e termina o homem e onde começa e termina a televisão. Estes universos se fundem, se confundem, com alucinações sucessivas que contagiam personagens e até mesmo a nós espectadores.

Sobre “Senhores do Crime” (EUA/Canadá/Inglaterra/2007), um trabalho que rima com “Marcas da Violência” (2005) em muitos aspectos, mas não deixa de ser um novo Cronenberg, estamos num território mais palpável que outros filmes mais antigos. Mas um exame atento nos conduzirá ao Planeta Cronenberg, pois se trata de um filme de um grande cineasta do cinema contemporâneo com temáticas recorrentes (a principal delas talvez seja a questão sobre o que é a identidade de um homem, o que a forma, o que a conforma, o que a deforma..) que fazem dele um autêntico autor na acepção dos tempos áureos do Cahiers du Cinéma , mesmo que seus dois últimos trabalhos citados, “gêmeos não univitelinos”, tenham na superfície um aspecto mais hollywoodiano.

Em “Marcas da Violência” tem-se uma antológica cena final, com a restauração da ordem (ou da desordem?) social e familiar depois de muita violência, seqüência que é feita com uma simplicidade impressionante, mas nem por isso isenta de nos provocar grande emoção. Em “Senhores do Crime” temos uma longa seqüência de luta numa sauna com o protagonista Nikolai nu, de tal forma que os movimentos do seu corpo ensangüentado são submetidos a uma vibrante, belíssima e incômoda coreografia que aproxima o filme dos Cronenbergs que mais conhecemos, como por exemplo, o de “Crash-Estranhos Prazeres” (1996). Neste, os personagens só transam mediados por situações associadas a acidentes, com muletas, parafusos e próteses e passeiam por carros acidentados numa estrada como se estivessem vendo uma instalação, uma obra de arte, numa crítica contundente indireta à mecanização das relações humanas, algo que é feito sem nenhum moralismo e com uma coragem tal que o filme estreou no Brasil bem antes dos EUA.

Com a desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a antiga KGB passa a ser a SSB e proliferam as máfias russas mundo afora. “Senhores do Crime” nos leva a um passeio pelos meandros da organização criminosa citada instalada em Londres, com paisagens que fogem dos cartões postais habituais. Tatiana (Sarah-Jeanne Labrosse), com 14 anos aproximadamente, morre no parto de sua filha. Aqui já temos a dualidade vida e morte explicitada em nuances potentes com o bebê todo embebido em sangue provando da vida e a mãe falecida. A enfermeira Anna de descendência russa (Naomi Watts, ótima como sempre) descobre dentro de um diário da jovem morta, um cartão de um restaurante. Indo até este local depara-se com um primeiro enigma, o dono do estabelecimento que serve de fachada para uma rede de prostituição e tráfico de drogas (a “vory v zakone”), o simpático Semyon (Armin Mueller-Stahl), num ambiente bastante familiar e festivo.

Anna passa a ter contacto também com Nikolai (Viggo Mortenson), motorista deste clã da máfia russa que tem relações afetivas ambíguas, no limite do homoerotismo com o filho de Semyon, o instável Kirill (Vincent Cassel). Kirill manda matar Soyka (Aleksander Mikic), através do barbeiro Azim( Mina E.Mina) pois Soyka estava causando problemas ao mimado filho do “chefão”, inclusive com citações à sua sexualidade desviante da “norma” hegemônica. Retaliações são armadas. O tio de Anna, Stepan (Jersy Skolimovski ,um grande cineasta que trabalhou no roteiro de “A Faca Na Água” de Polanski e foi o diretor de “Ato Final”, grande filme de 1970, dentre outros) entende russo e passa a traduzir o diário deixado por Tatiana. Ela foi estuprada por Seymon para mostrar ao filho como se transa com uma mulher, dentre outras perversidades em mente e a criança que nasceu tem o DNA dele. Esta descoberta de Anna acaba comprometendo-a e ao tio, o que faz com que o misterioso Nikolai tenha de tomar decisões perigosas.

Em “Spider-Desafie a Sua Mente” (2002) tem-se uma história narrada por um esquizofrênico que se instala numa pensão após longo internamento. Com a marca Cronenberg temos um fabuloso estudo de uma tentativa de construção desesperada de uma identidade onde as aparências enganam sim. “Senhores do Crime” concentra mais esta questão da identidade, principalmente, na personalidade de Nikolai (numa grande composição contida de enormes sutilezas de Viggo Mortensen, ainda melhor do que em “Marcas da Violência”), um ser capaz de cortar os dedos de um cadáver, ajudar a jogá-lo no rio, mas também de promover mudanças benignas significativas no rumo das histórias paralelas que correm, pondo em risco a própria vida.

Em entrevista da Reportagem Local da Folha de São Paulo, Cronenberg explica muito bem aspectos do seu projeto plenamente logrado:

“O crime é sempre fascinante porque os criminosos vivem em constante estado de transgressão. Eles estão além da sociedade, ainda que aparentem fazer parte dela. Trata-se, igualmente, de uma história multicultural. Toronto, a cidade em que vivo, como Londres, o local em que a história transcorre, orgulham-se de ser cidades multiculturais. Ao contrário dos EUA, ao desembarcar em qualquer uma delas não é preciso abandonar sua cultura e sua herança nacional. A cultura de todas essas comunidades cujas atividades giram em torno do crime é a de seus países de origem”

Os mafiosos estão repletos de tatuagens exibidas com orgulho. Nikolai também tem as suas e faz por merecer outras que o filiam com força à “vory v zakone”. Sobre estas “marcas da violência” Cronenberg as define muito bem na reportagem citada:

“Com essas tatuagens, surge a impressão de que o corpo conta uma história.
Elas são o elemento visual mais importante. E a metáfora do completo envolvimento com um código, uma ideologia.”

David Cronenberg consegue fazer alguns filmes que se comunicam muito bem com o grande público, outros nem tanto, mas que não deixam de trazer leituras cada vez mais ricas a cada nova visão de suas obras. Se as sinfonias de Ludwig van Beethoven são para serem ouvidas sempre, com renovado frescor, captando-se tessituras, harmonias, sonoridades, antes insuspeitadas, com os grandes filmes de modo geral, o mesmo acontece. Com Cronenberg, um dos gigantes do cinema contemporâneo as descobertas acabam sendo maiores ainda nas revisões. “Spider- Desafie a Sua Mente” (2002), por exemplo, se esconde bastante numa primeira visão revelando com grande força sua enorme complexidade nas revisões que se promover, com um trabalho divino de Ralph Fiennes como protagonista e Miranda Richardson interpretando três personagens magnificamente.

A obra máxima de Cronenberg é provavelmente o maravilhoso “Gêmeos- Mórbida Semelhança” (1988), uma das obras incontornáveis do cinema do século XX. Nele podemos fazer uma forte leitura política que provavelmente o diretor intuiu e deixou fluir com sua força de artista maior. Se há uma seqüência emblemática do kafkianismo galopante a que estamos submersos hoje num mundo onde, nos lembrando de Ernesto Sábato, “o homem do século XX (e por extensão do XXI) é um gigante técnico mas um infante ético” e “a maior catástrofe contemporânea é a HEGEMONIA ( grifo meu) da ciência”, enfim se podemos nos ver numa seqüência síntese de toda esta problemática ela está em “Gêmeos....”. Vejamos o porquê adiante.

Um casal de gêmeos idênticos (genial criação de Jeremy Irons, onde depois de certo tempo aprendemos por gestos e olhares sutis a saber quem é quem, mesmo quando os dois contracenam juntos) cresce sem que eles construam uma identidade própria, numa grande interdependência, seguindo ambos a carreira de ginecologistas com bastante sucesso e até dividindo entre si as paqueras que fazem. São intelectualmente desenvolvidos e emocionalmente retardados. Uma cliente tem o útero tripartite o que passa a despertar grande interesse neles. Ela acaba sentindo que um é diferente do outro em certos aspectos. Um deles se apaixona por ela. O pacto tácito entre os irmãos é quebrado e os gêmeos caem numa instabilidade emocional atroz. Um deles enlouquece, rouba dispositivos médicos de uma exposição de artes plásticas e com estes equipamentos falsos examina uma cliente. Esta sente uma dor horrível. Ele com bastante energia manda-a se calar, pois afinal ele é médico e sabe o que faz! Ela com dores atrozes acaba se conformando ( afinal ele é o dono do saber...). Não é este o nosso mundo de hoje, com tantos “truques mau feitos dos magos e o chicote dos domadores”? Não “somos todos iguais nesta noite”, nestas trevas que se abate sobre a Terra, conforme Ivan Lins e Victor Martins comentavam sobre a ditadura militar brasileira mas que agora ganha significados ainda mais perigosos, porque mascarados por legiões de capatazes, de “gravata, farda, batina ou avental”?

Em matéria de Luiz Carlos Merten no O Estado de São Paulo, Cronenberg explica de forma preciosa seu trabalho com os atores, sempre excelente:

“Um ator é antes de mais nada um corpo. O físico é seu instrumento de trabalho. Quando um cineasta filma um ator, o material sensibilizado pela película - ou mesmo que fosse a tecnologia digital - não tem nada de abstrato. É uma matéria viva, com nervos, músculos e contornos.”

Cronenberg flagra estes corpos em mutações explícitas ou camufladas criando uma obra conjunta das mais expressivas da História do Cinema e que acabam impregnando nosso inconsciente, nos provocando inquietações políticas, sexuais, psicológicas, sociais, psicanalíticas, antropológicas, etc..., mas mantendo sempre uma aura de mistério que é fundamental e provavelmente indecifrável. Somos um teorema que não se provará jamais, tantas são as indeterminações de que somos feitos. Daí a loucura de um mundo que se propõe a medidas higienizadoras, o fracasso monumental destas tentativas de catalogação do ser humano, seja enquanto consumidor, cidadão, discípulo, empregado, espectador, eleitor, ou outra etiqueta que se queira. A máfia russa de “Senhores do Crime” também ao seu modo tenta catalogar pessoas, com tatuagens e outros ritos. O fiasco é retumbante.

“XXY” (Argentina/2007) de Lucia Puenzo é um bom filme que resulta no conjunto um tanto acanhado, com indecisões nos personagens que se refletem na direção. Alex é um ser hermafrodita para quem o pai biólogo não autorizou uma operação quando nasceu (o pai o julgou um ser perfeito no seu grande amor pela cria). Assim Alex cresce como um ser com pênis e vagina, tendo ainda seios. Numa relação com um rapaz com tendências homoeróticas (filho desprezado de um cirurgião plástico que visita a família de Alex em seu exílio no campo), a hermafrodita passa a ser ativo na relação com o parceiro, sentindo os dois grande prazer. Alex decide não mais tomar remédios como cortisona para evitar que a barba cresça. Quer que a natureza decida o que ele vai ser e não a ciência.

Este bom, delicado e sensível “XXY”, mas limitado, nas mãos de um Cronenberg, solicitando a mudança do roteiro (conforme fez com o primeiro tratamento de “Senhores do Crime”) daria com certeza um filme muito mais instigante e profundo sobre este tema de complexa identidade de gênero.

Se Cronenberg fosse um poeta das letras, no que diz respeito à economia de linguagem, estaria mais próximo da secura, da “educação pela pedra” de João Cabral de Melo Neto do que da transbordante energia, do derramamento de Fernando Pessoa (Fellini está mais próximo deste). Mas atenção: Cronenberg não é um engenheiro ou matemático assim como João Cabral também tem muitas sinuosidades em seus poemas conforme já apontou Ferreira Gullar. Cronenberg parece ter lido “Água Viva” de Clarice Lispector onde ela deixa bem claro: “Já aprendi matemática que é a loucura do raciocínio, mas agora quero o plasma, quero alimentar-me diretamente da placenta”. Uma placenta é o que é o cinema de Cronenberg onde ele e nós nos alimentamos direta e fartamente.

David Cronenberg é um artista do cinema ( assim como, guardadas as devidas proporções, Nelson Rodrigues e Jean Genet na dramaturgia universal, dentre outros) que tendemos a rotular de doentio, o que é um grande equívoco. Cronenberg (assim como Nelson, Jean Genet e outros) se deixam aparentemente contaminar pelas doenças do mundo para melhor nos expor a elas, nos aturdir com perplexidades as mais variadas. Não é um simples pour épater le bourgeoisie. Há um projeto bastante consistente, em parte consciente e por outro lado inconsciente (“uma parte de mim é permanente, outra parte se sabe de repente, traduzir uma parte na outra parte que é uma questão de vida e morte, será arte?” nos lembra Ferreira Gullar). Este resultado que aflora “isolando” personagens e situações, para que os compreendamos melhor, revela a doença de uma civilização. Será esta curável, determinada social e politicamente ou será atávica, permanente, arquetípica? Ao sairmos de um filme de Cronenberg não somos mais os mesmos. Há de certa forma uma “invasão de nossos corpos”, sofremos mutações. Acredito eu que para melhor. “A luz nasce da escuridão” em que seu cinema nos mergulha. Experimentem. Vale muito a pena.

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Ps “Senhores do Crime cuja melhor tradução para o título original deveria ser “Promessas do Leste” só foi indicado a melhor ator ( Viggo). Merecia muito mais. Mas se a Academia se curvou ao hipertransgressivo “Onde os Fracos Não Tem Vez” dos irmãos Coen, seria exigir demais que seus membros se curvassem também diante do genial e essencial Cronenberg.

Nelson Rodrigues de Souza

sábado, 10 de julho de 2010

Seriam os Bonequinhos, as Estrelinhas e Cotações Diretas Dados aos Filmes Algo Ridículo, Um Mal Necessário ou Algo Mais?




O célebre crítico de teatro Yan Michalski, que escreveu durante anos no Jornal do Brasil nos seus áureos tempos, sempre resistiu quando lhe propunham dar signos de valoração aos espetáculos. Acreditava Yan (com certa razão) que esta atitude desestimularia o leitor a meditar sobre os textos que escrevia e tirar suas próprias conclusões. De minha parte considero os signos um mal necessário. Sim: existe o perigo de que Yan nos fala, mas também há grandes vantagens nestes signos. Eles ficam mais facilmente na memória dos leitores do que os textos e os leitores preguiçosos pelo menos terão algum dado crítico sobre os filmes. Mas a maior vantagem desta atitude, creio, está nos quadros com vários signos segundo a mesmas convenções que podem ser construídos, com posicionamentos de diferentes críticos e personalidades do mundo das artes. È algo que pode ser encontrado no site eletrônico Contracampo (http://www.contracampo.com.br/) e que havia no site Cinequanon (http://www.cinequanon.art.br/). Este último parou com as cotações não sei o porquê.

A Folha de São Paulo tem inúmeros críticos de cinema (um tanto excessivos pelo meu gosto) e se furta a apresentar um quadro comparativo de cotações, o que permitiria ao leitor relativizá-las. Por exemplo, o excelente “O Pequeno Nicolau” de Laurent Tirard foi muito mal recebido por André Barcinski. Na ausência de outras críticas, um quadro que relativizasse as diferentes visões poderia ser bastante útil ao leitor e mais justo com o filme. Claro que os espectadores devem sempre desconfiar do que lêem e ( utopicamente) conferir tudo. Mas sabemos que a maioria não tem tempo, dinheiro e gosto para fazer isto. Da forma como foi feita, a Folha prestou um desserviço aos seus leitores que acreditarem na crítica.

Em O Estado de São Paulo temos dois críticos de cinema: Luis Carlos Merten e Luiz Zanin Oricchio há anos. Há um bom contraponto entre os dois, pois nem sempre concordam. Merten é mais receptivo ao cinemão hollywoodiano. Zanin tem mais restrições a este cinema e visão diversa sobre outros filmes. Isto não impede de concordarem muitas vezes. Mas O Estado de São Paulo se ressente também de um quadro onde se possam ter outras cotações diretas (ótimo, bom, etc...) sobre as obras, o que poderia ser feito com manifestação de outros profissionais da área de cultura da casa.

O jornal O Globo há anos tem o clássico bonequinho em diferentes estados de espírito. Às vezes há duas críticas para o mesmo filme, chegando a haver casos em que o bonequinho aplaude de pé e outro vai embora, para um mesmo filme. Mas isto é pouco. Sabemos que provavelmente poderia haver opiniões não tão extremas. Como O Globo tem um número razoável de críticos, seria muito interessante um quadro comparativo de posturas do bonequinho diante de uma obra. O leitor ganharia em dialética e suas escolhas cinematográficas como consumidor seriam mais nuançadas. Teria de decidir se vai ver um filme ou não com mais cautela, com mais risco.

Quando há um bonequinho só em questão, já vi ocorrerem efeitos perversos na recepção dos filmes no circuito de arte do Rio de Janeiro. Filmes dos quais gostei muito fracassaram neste circuito por causa de um bonequinho dormindo ou indo embora. Sabemos que a primeira semana é decisiva para a carreira de um filme e uma cotação negativa pode afastar público sem que haja tempo para que o trabalho do boca a boca reverta esta situação. Um quadro relativizado que polemizasse com estas reações negativas seria de grande utilidade para o leitor que não está disposto a conferir tudo. Nem todo espectador é cinéfilo inveterado. É forçoso reconhecer que bonequinho aplaudindo de pé (o que tem acontecido em excesso) tem feito filmes ganharem uma boa sobrevida nos cinemas do circuitinho, englobando aí as ousadias do Arteplex.

O Jornal do Brasil apresenta um quadro comparativo. O problema é que os filmes são em pequena quantidade e há demora em haver atualizações. Além do mais, muitos colaboradores vêem poucos filmes, o que enfraquece o quadro. Curiosamente o colaborador que mais filmes vê é o crítico musical Tarik de Souza! Assim há algo de muito errado com o quadro que deveria ser corrigido. Quem se dispõe a ter seu nome como avaliador têm de ter a generosidade (e honestidade?) de ir ver o máximo de filmes possíveis.

Eu sou viciado em ler críticas de cinema, seja dos grandes jornais como dos sites eletrônicos. Mas gosto de ver também as cotações dos filmes e procuro confrontar os diferentes signos que muitas obras recebem. Eu também tenho as minhas próprias cotações que gravo mentalmente. Não as anoto para não ter cristalizado uma visão que pode ser mudada mais tarde. Mas como este blog trata de cinema (e outras perplexidades...) e tenho visto muitos filmes que não consigo comentar aqui, vou passar a fazer cotações. Espero que os leitores não me levem a ferro e fogo e confrontem minhas avaliações com o de jornais, sites eletrônicos, blogs e as próprias. A última coisa que gostaria de fazer no mundo é desestimular alguém de ver um filme que lhe poderia trazer muito prazer. Se o espectador for ver um filme bem cotado e não gostar o mal é menor.

Por mais responsável que seja um crítico de cinema e leve a sério seu trabalho, se o que faz não for relativizado (o que pode ser feito com um quadro comparativo, insisto) seu esforço pode ser como o de um baloeiro que lança enormes balões. Balões podem cair no mar, num prédio, numa escola, numa mata, num rio, numa igreja, etc. Enfim, os efeitos podem ser perversos.

O crítico de arte Rodrigo Naves (de quem assisti ótima palestra num dos seminários que Adauto Novaes organizava, o que resultava em alentados livros da Companhia das Letras) lança agora pela mesma Companhia das Letras “O Vento e o Moinho-Ensaios sobre arte moderna e contemporânea”, com reflexões que cobrem trinta anos de atividade. Na revista Bravo! de julho de 2010, numa excelente matéria sobre a pintora mexicana Frida Kahlo, Naves comenta que a pintura dela tem o prestígio que hoje o mundo das artes lhe dá muito mais pelo trágico acidente que ela sofreu quando jovem, com reflexos para a vida toda, do que por seus méritos artísticos. Segundo Naves o trabalho de Frida seria mediano!(sic). Eu que freqüentei vários museus e exposições seja no Rio de Janeiro, Nova York, México, Paris, Barcelona, Madri, no fundo me considero amador (no melhor sentido desta palavra: aquele que ama) em artes plásticas. No entanto deixo declarado aqui que sou apaixonado pelo trabalho de Frida Kahlo. Só um exemplo: o quadro O que a água me deu de 1938 reproduzido numa página inteira da revista é deslumbrante e dá conta do complexo mundo interior da pintora, suas fixações e angústias. Um dos mais belos filmes que vi na vida foi “Frida:Natureza Viva” do mexicano Paul Leduc, que entrelaça vida e obra da artista de forma magistral.Como as esculturas de Camille Claudel, Frida desperta em mim fortes emoções com seus trabalhos.Sua obra pra mim é um monumento.

Claro que Rodrigo Naves tem todo o direito de não se entusiasmar com a obra de Frida. Mas quem acreditar nele neste quesito pode estar perdendo maravilhas da história da arte. Se isto acontece com Naves o mesmo pode estar acontecendo com muitas avaliações de críticos de cinema, ainda que eles sejam responsáveis e sinceros. Pessoas geniais como Frida (ou nem tanto), enquanto cineastas, podem estar sendo alvo de depreciações injustas.

Depois de todas as considerações acima, esperando que o leitor não me leve a ferro e fogo e procure por outros posicionamentos, vão adiante cotações para filmes que vi ultimamente, de acordo com o seguinte critério:

0- péssimo

* ruim

** regular

***bom

**** muito bom

*****obra-prima

(Sou bonzinho. Não adoto bolinha preta para péssimo, mas uma bolinha branca.....)

Agora a cotação para filmes vistos:

Descobrindo o Cinema Filipino- CCBB-RJ

Serbis de Brillante Mendoza *****

Manila de Adolfo Alix Jr. e Raya Matin****

Manila nas Garras de Neon de Lino Brocka ****

Kinatay de Brillante Mendoza ****

Um Pequeno Filme Para o Índio Nacional (Ou a Prolongada Agonia dos Filipinos) de Raya Martin*

Independência de Raya Martin ***

Circuito Exibidor:

Brilho de Uma Paixão de Jane Campion ****

Em Teu Nome de Paulo Nascimento **

O Escritor Fantasma de Roman Polanski ****

A Jovem Rainha Vitória de Jean-Marc Vallée ***

Mademoiselle Chambon de Stéphane Brizé ****

Olhos Azuis de José Joffily ***

Patrick 1,5 de Ella Lemhagen **

O Pequeno Nicolau de Laurent Tirard *****

O Profeta de Jacques Audiard ***

O Que Resta do Tempo de Elia Suleiman ***

O Segredo dos Seus Olhos de Juan José Campanella ****

Toy Story 3 de Lee Unkrich ****

Tudo Pode Dar Certo de Woody Allen ****

Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz *****

Vittorio de Sica- Minha Vida,Meus Amores ****

E vocês, qual a cotação segundo meu critério que dão aos filmes vistos? Não se intimem. Manifestem-se.

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Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 6 de julho de 2010

Boa Pessoa Dorme Mal





Boa Pessoa Dorme Mal

Quando ouvi de meus próprios lábios não a melodia a que estava acostumada e sim esse surpreendente “eu-só-gravo-se-puder-escolher-todas-as-músicas-e-ponto-final”, eu pensei que o mundo houvesse explodido já naquele momento e nada mais teria importância dado que havia jogado fora a chance que há anos andava acalentando! Era a sinceridade de um instante rompendo com as regras de um eterno jogo de cartas marcadas, o qual poderia ajudar-me a passar todas as manhãs, tardes, noites na pasmaceira própria das vidas anódinas, mas em hipótese alguma contribuiria para a minha corrida particular, com um só participante e mesmo assim sem vitória garantida: a busca desse espanto que atende pela alcunha de felicidade.

Com essa, esses Mefistófeles travestidos de Mecenas não contavam: a estrelinha mambembe, que por descuido foi incluída na trilha sonora de uma novelinha dessas aí e surpreendentemente suplanta os medalhões e pratas da casa, caindo literalmente, mas no bom sentido, na boca do povo ( dado que cantam sem parar o seu cavalo de batalha primeiro e único) é convidada para gravar um CD com o máximo de requinte de produção e o que faz?Recusa-se a... se...

Os semblantes estupefatos daquelas feras, esta tarde, diante da minha ousadia, é algo que até agora ressurge diante de mim tal qual uma miragem. Confesso que morri e ainda tremo de medo, mas se eu não arriscasse não poderia agora neste quarto de hotel, atendendo a um pedido-ameaça deles, tentar preparar uma lista das dez faixas que pretendo gravar. Tenho de apresentá-las logo pela manhã, caso contrário eles desistem da empreitada. São umas velhas-raposas! Estão crentes que eu vou me complicar toda e não conseguirei colocar-lhes nenhuma proposta concreta. Pois sim...

Meu Deus! Não é que a minha cabeça agora está tão confusa que só sabe precisamente aquilo que não quer: algo tecnopop tal como essa que gravei e que eles querem me impingir atualmente. Senti curiosidade em saber como interpretaria tal ritmo do momento, não tenho nada contra, mas decididamente não é a minha!

Aqueles safados poderiam dar-me mais tempo, mas querem que eu escolha às pressas para depois me pulverizarem delicadamente, explorando os pontos fracos.

“Lutar... Lutar... Lutar... pra gente ser feliz... cantar... cantar... cantar... como a gente sempre quis.”

Mas lutar como, cantar o que?

Uma música do Djavan? Sim, eu não tenho medo do lugar comum. Encontraria uma daquelas com bastantes sinestesias, não importa que sentido “mais profundo” elas tenham. Mas se me perguntassem depois o que elas significam? Que diria eu? Que apenas as sinto e isso basta! Ficarão convencidos?

Caçar numa arca perdida uma subestimada canção do Lupicínio não seria nada original, mas não seria ótimo? “Felicidade não vá embora... não! Não vá...”

Uma canção da maravilhosa Piaf agora não seria encarada como o máximo do oportunismo? Uma música do Chico já algum tempo gravada, mas não tão badalada, como Soneto, por exemplo-“Por que me descobriste no abandono?” – não é uma boa pedida? Procurar um nordestino de talento como Geraldinho Azevedo e fazer um ótimo exercício vocal com Bicho-de-Sete-Cabeças seria visto como óbvio paternalismo?

Gravar o que era considerado a vanguarda paulista: Arrigo, Itamar, etc.....não seria a modernidade já com gosto de café-requentado? Não seria pedante demais?

Ah! Sim... uma sublime obra-prima do Caetano: Terra – “Por mais distante o errante navegante. Quem jamais te esqueceria”. Não seria minha interpretação uma heresia, uma caricatura? “Eu preciso aprender a só ser” do Gil, não seria uma boa? Gil & Caetano não seria o óbvio ululante? Mas e daí? Se todos assim pensassem o que seria deles?

Será que o Paulinho da Viola não tem outras músicas no estilo de Sinal Fechado? Se as tem por que não as grava? Essa música é a minha cara! Regravá-la agora depois de interpretações já antológicas não seria uma temeridade?

Meu Deus! Se não me cuidar e continuar me descabelando deste jeito acabo materializando a própria cantora careca! (aquela que ainda usa o mesmo penteado!).

Estou já esgotada e não tenho nada decidido ainda! Nenhuma certeza. Preciso acalmar-me e raciocinar com clareza. Não posso permitir que minha emoção ponha por água abaixo meu sonho. Amanhã tenho de expor-lhes com concisão as minhas idéias. Caso contrário me fulminarão com o maior desprezo e impiedosa razão. Deixa eu tomar mais uma dose de whisky para ver se me acalmo!

Por que que eu tinha de vir sozinha para o Rio de Janeiro? Nenhum amigo para me suscitar qualquer idéia que seja. Mamãe está tão longe, não pode soprar-me nem uma canção de ninar.Tudo e todos tão distantes!

Mas vamos ligar esse rádio pra ver o que ele me sugere: “ Oh! Oh! You are the sun. You are the rain, baby. Oh! Oh!”

Vamos girar isso aqui: “Menino Deus, do corpo azul dourado. Quando tua luz se acende a minha voz comporá tua lenda. E por um momento haverá mais futuro do que jamais houve.”

Sim! Por que não! É isso aí! Gravarei uma antologia da MPB que fale direta ou indiretamente de Deus. Por que não?

Está tudo muito claro na minha frente:

1-Se Eu Quiser Falar Com Deus – Gilberto Gil

“Tenho que lamber o chão dos palácios,

dos castelos suntuosos do meu sonho”.

2-Sobre Todas as Coisas – Chico Buarque / Edu Lobo

“Ou será que o deus

que criou nosso desejo é tão cruel

mostra os vales onde jorra o leite e o mel

e esses vales são de Deus”.

3-Menino Deus – Caetano Veloso

“Quando a flor do teu sexo abrir as pétalas para o universo”

4-Paixão e Fé – Tavinho Moura / Fernando Brandt

“Velejar, velejei

no mar do senhor

lá eu vi a fé e a paixão

lá eu vi a agonia da barca dos homens”.

5-Há um Deus – Lupicínio Rodrigues

“Há um Deus sim

e esse Deus há de ouvir a minha voz”

6-Azul – Djavan

“Eu não sei se vem de Deus

ou virá dos olhos seus

essa cor que azuleja o dia”.

7-Esotérico

“Se eu sou algo incompreensível

meu Deus é mais que um.... que dois...

que dez milhões.”

8- Pele – Caetano Veloso

“Deus deseja que a tua doçura

que também é a dele

se revele mais pura na sua pele”.

9-Partido Alto – Chico Buarque

“Deus me fez um cara fraco desdentado e feio

pele e osso simplesmente quase sem recheio”.

10-Saudosa Maloca – Adoniran Barbosa

“Deus dá o frio conforme o cobertor”.

O que os produtores vão achar pouco me importa! Ou saí esse CD ou nada feito! São essas dez mesmo! Sem tirar nem por!Existe algo cabalístico em tudo isso que não posso alterar de jeito nenhum! Se eu pesquisasse mais, até encontraria jóias menos conhecidas. Mas os primeiros filhos que nasceram são esses e não tenho mais o direito de abandoná-los. Chega de almanaques! Quero um disco com unidade temática! Diferentes visões, diferentes referências, mas todas belas e sublimes. Agora é só me acalmar, ir deitar, que já é madrugada!

Esses críticos que não me venham com essa artimanha de que “eu vendi a alma ao diabo para conseguir o meu primeiro sucesso e agora ele está me cobrando”, caso eu fracasse.

Por que meu Deus, eu estou tão nervosa ainda! Suando frio. Tenho que descansar... descansar... Essa ansiedade é terrível. Esta minha insônia crônica! Preciso estar bem disposta amanhã para rechaçar aquelas aves de rapina. Deixa eu tomar meu sonífero. Este que me receitaram me parece um tanto fraco. Deixa-me tomar mais um... Um não... dois! Três! Quatro!Ou mais? Preciso repousar urgente! “Agora sou uma estrela... Agora sou uma estrela”.

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Nelson Rodrigues de Souza

domingo, 4 de julho de 2010

A Carteirinha de Estudante Falsa é Uma Metáfora das Hipocrisias da Sociedade Brasileira




O que pode passar na cabeça de quem falsifica uma carteirinha de estudante?

1- Estes produtores e exibidores são gananciosos e só vou poder ir ao cinema, ao teatro, aos shows, à ópera, aos concertos, aos espetáculos de dança, etc., se puder pagar meia-entrada.E algumas vezes a meia-entrada já é cara....

2- Aliás, é um favor fazer carteirinha falsa, pois assim freqüento a vida cultural da cidade. Melhor eles ganharem com a minha falsificação do que eu não sair de casa.

3- Muitos políticos cometem delitos infinitamente tão maiores que o que eu faço é brincadeira de criança

4- Se a gente deixa de falsificar eles não vão abaixar os preços mesmo.....

5-etc...

O que pode passar na cabeça dos produtores e exibidores:

1- Vou elevar, inflacionar os preços dos ingressos, pois assim com este enxame de carteirinhas falsas mantenho a margem de lucro que desejo.

2- A fiscalização rigorosa que volta e meia anunciam é ineficaz e vou manter então minha política.

3- Os custos envolvidos na minha produção/exibição são altos mesmo e vou manter os preços elevados. Exibir um filme mesmo em cópia digital (que alguns espectadores puristas dizem ser ruim...) é caro e vou manter os preços que pratico.

4- É claro que tem os justos que pagam pelos pecadores, mas eu não tenho saída. Paciência.

5-etc...

E assim E La Nave Va. Os exibidores/produtores fingem que estão fiscalizando com rigor e consumidores de cultura fingem que suas carteirinhas são verdadeiras.

De minha parte nunca ousei falsificar uma carteirinha, pois primeiro me vem um grande pudor, senso de honestidade e orgulho. Isto mexeria com a minha auto-estima às vezes já tão combalida por vicissitudes da vida. Além do mais estou com 55 anos, com ostensivos cabelos brancos. Já pensou se me param num evento e perguntam: “O senhor estuda o que mesmo e aonde?” Eu iria morrer de vergonha pego em flagrante. Iria gaguejar feio. Não teria cara de pau suficiente para insistir que a minha carteirinha é quente.

Mas esta minha honestidade tem seu preço. Como estou na faixa da “classe média empobrecida da Era Lula”, eu que era um amante inveterado do teatro, tendo visto o que pude do Teatro dos 4 em seus tempos áureos, vibrado com os trabalhos de Rubens Correia e Ivan Albuquerque, fora e no Teatro Ipanema, dentre outras delícias, agora tenho ido muito pouco ao teatro. Os monólogos proliferam em diferentes níveis de qualidade, mas os preços, de modo geral são inacreditáveis. Por que que com um só ator/atriz em cena os preços são tão altos? Logo me vem a resposta: ganância ou defesa das malditas carteirinhas falsas, ou as duas coisas...Tem gente que tem teatro, patrocínios e mesmo assim os preços são altos.Será que a manutenção de um teatro é tão cara assim? Quanto aos elevados preços dos shows e musicais, peças com grande ou razoável número de atores, de modo geral, se pode fazer comentários análogos.

Existem os espetáculos a preços populares. Mas confesso que não tenho paciência, com exceções saudáveis, para entrar na disputa por estes ingressos. Quando assim procedo, me sinto participando do “pavilhão dos humilhados e ofendidos”, conforme uma expressão que Arnado Jabor criou anos atrás.

Já deixar de ir ao cinema eu não agüento. Mas sou exigente. Não me arrisco a ver, por exemplo, uma comédia que me parece ser boba ou filmes de gênero terror que me parecem sensacionalistas. Escolho bem o que devo ver. Assim posso estar perdendo algumas pérolas conforme me comentam.

Esta situação da carteirinha e o encaminhamento do problema é algo bastante significativo da hipocrisia que permeia a sociedade brasileira. Produtores/exibidores têm as suas razões. Os consumidores/espectadores também as têm. Mas como são tortuosas e falaciosas estas razões!

Soluções para este problema eu até tenho. Mas não tenho vocação pra “polícia” e vou omiti-las aqui, pois no fundo se trata de um caso de falsificação muito sério: o indivíduo finge ser quem não é. Caso brabo de 171.

Do jeito que anda a carruagem, muito convenientemente a sujeira vai continuar sendo varrida para debaixo do tapete e finge-se que está tudo sobre controle.

Mas volta e meia me dá uma revolta. Até quando este estado de coisas vai continuar? Até quando “esta aparente boa ordem do mundo burguês”? Até quando esta tragicomédia vai ser encenada?

Abafo minha revolta e vou ver o que posso. Ainda bem que o que vejo muitas vezes é um bálsamo para a alma e me faz me reconciliar com a vida. Mas com a sociedade brasileira não há ainda reconciliação possível. É uma ilha cercada de hipocrisias por todos os lados. Preciso muitas vezes tomar cuidado para não ser contaminado também. Os tentáculos do polvo são muito fortes e ameaçam nos pegar no dia a dia.

Resta batucar na cabeça os versos de Caetano: “E o que se revelará aos povos surpreenderá a todos não por ser exótico, mas por poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio”

No Brasil a violação do óbvio é uma coisa inacreditável. Por exemplo, esta lei da ficha limpa só agora surge como um problema a ser resolvido. Levamos mais de quinhentos anos para aprender que um político para se candidatar tem de ser honesto...

Mas chega por aqui. Vou pegar um cineminha mesmo sabendo que me exploram. È o mínimo que posso fazer por mim nesta selva de gente esperta onde a única lei realmente eficaz é aquela do Gerson que gostava de ganhar vantagem em tudo.

Começam a surgir laivos de mau - humor. É melhor eu parar por aqui. Mas fica ecoando no ar a pergunta de Bertold Brecht em “A Alma Boa de Setsuan”: a saída, onde está a saída. Deve haver uma saída.....

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Nelson Rodrigues de Souza