sexta-feira, 4 de março de 2011

À Procura do Fogo Sob as Cinzas












À Procura do Fogo Sob as Cinzas

“Incêndios” (Canadá/2010) de Denis Villeneuve

(O texto contém spoilers, ou seja, detalhes fundamentais de narrativas são revelados para a análise pretendida)

Para quem tem a síndrome Peter Bogdanovich, crítico, ensaísta e cineasta americano que nos seus anos áureos (“A Última Sessão de Cinema”/1971, “Lua de Papel”/1973, “Esta Pequena é uma Parada”/1972, “Na Mira da Morte”/1968) insistia que todos os bons filmes já haviam sido feitos, o que indiretamente implica que todas as boas histórias já tinham sido contadas, “Incêndios” com seu mar de pequenas histórias em paralelo forma uma grande, bela e bastante impactante história que é um autêntico antídoto a essa nostalgia bogdanovichiana.

“Incêndios” é baseado numa peça do libanês radicado no Canadá Wadji Mouawad e tem boa parte de suas cenas passadas num país onde há conflitos e vendettas entre muçulmanos e cristãos, num espírito mais agudo e amplo do que vimos em “Abril Despedaçado” de Walter Salles. Presume-se pelo autor teatral que seja o Líbano, mas a rigor como o filme não menciona de propósito o espaço em que se dão estes conflitos, o que é abordado fica valendo para todo país onde intolerâncias seculares fundamentalistas estão em jogo.

Jean Libel (Rémy Girard) que durante anos teve como assistente Nawal Marwan (Lubma Azbal) no Canadá, quando esta morre, mostra o testamento dela aos filhos gêmeos Simon (Maxim Gaudette) e Jeanne Marwan ( Mélissa Désormeaux-Poulin) , o que é uma autêntica demonstração do que é enunciado no filme: “A morte nunca é o fim de uma história”.

Nawal se recusa, a princípio, a ser enterrada como todo mundo. Quer ser colocada de costas no caixão e não quer nenhuma lápide. A condição para que isto seja revertido é que os filhos procurem por um pai que eles julgavam morto e por um irmão que eles não sabiam que tinham, quando então cartas endereçadas a estes seres desaparecidos serão entregues. Jeanne mesmo impactada aceita sua missão. Simon de início se revolta. Aqui já se cria uma grande adesão do espectador sobre o porquê deste imbróglio a ser desvendado.

O filme passa a ter histórias paralelas muito bem construídas em que se conjugam a vida e vicissitudes graves que Nawal passou a ter depois que numa aldeia hiperconservadora ficou grávida e a busca inicial de Jeanne por vestígios históricos da mãe, ganhando depois a adesão do irmão. O filme é dividido em vários segmentos em que passado e presente se alternam com grande força dramática, onde dentre várias sequências fortes, uma que se retém são os tiros que matam o motorista muçulmano de um ônibus e uma saraivada de tiros que matam passageiros. Nawal, cristã disfarçada de muçulmana sobrevive, o ônibus está para ser incendiado e temos belos e terríveis movimentos que vão dos interiores do veículo para exteriores onde um dos incêndios se consuma. Mas há também os incêndios mais dolorosos da alma, tanto da mãe como dos filhos.

Através de muitas peripécias que não serão detalhadas aqui e que há quem as considere rocambolescas chega-se a uma situação típica de uma tragédia grega como a de Édipo Rei em que a busca por causas externas de desgraças latentes leva a um doloroso autoconhecimento.

Assim como “A Espiã”/2006 de Paul Verhoeven e “Ilha do Medo”/2010 de Martin Scorsese, para ficarmos só em dois exemplos, onde a maturidade dos diretores nos faz encarar como trapaças da sorte/destino o que poderia ser tido como rocambolesco ou folhetinesco demais, Denis Villeneuve, com bastante sobriedade e segurança narrativa nos faz mergulhar em seus “truques de roteiro” com bastante ansiedade e suspense, sendo que a linha tênue que separa o sublime do patético, tende para o primeiro com louvor.

Ao fim e ao cabo Simon e Jeanne tem a revelação de que o pai e o irmão são uma só pessoa. A mãe por ter matado um líder cristão vive presa por uns quinze anos numa mais do que inóspita prisão e é estuprada por uma “armadilha/ironia/trapaça do destino” justamente por seu filho desaparecido, que de franco atirador passa a ser um torturador. Os filhos gêmeos são frutos deste estupro.

Aqui se ressalta melhor a sobriedade de Denis Villeneuve: revelações que poderiam soar como excessivamente melodramáticas, por poderosas elipses são suavizadas e o espectador que imagine melhor as reações dos personagens.

O pai/irmão é encontrado trabalhando no Canadá e recebe as duas cartas, os irmãos/filhos desaparecem e temos uma sequência antológica de tocante beleza que agora se constrói não pelas imagens fortes, mas pela leitura das cartas. Na “Carta ao pai” Nawal destila seu ódio contra o estuprador e assina como puta da cela onde esteve. Na “Carta ao filho” ela se enche de amor para saudar a graça de gerar um ser humano e roga pela paz entre os intolerantes. Assim tudo que parecia um tanto caprichoso demais e hermético no início, passa a fazer “todo o sentido do mundo” neste final.

Em mais uma sequência belíssima vemos o pai estuprador/filho amado e procurado no túmulo de Nawal, agora com lápide, numa forma em que ela agora pode encarar o mundo que deixou, altiva, sem vergonha, não mais de costas. É a forma que Nawal, independentemente de religiões, planejou/encontrou para renascer.

“Incêndios” é um mosaico de cenas fortes, de uma beleza muitas vezes crua que nos traz uma história que o cinema nunca havia contado antes. Sem negligenciar os elementos cinematográficos em todos os planos, temos aqui uma história comovente como poucas, indicando um dos caminhos que o cinema ainda pode trilhar bastante. Histórias singulares que a realidade e/ou a imaginação humana criam não faltam jamais, o que faz dos discursos bogdanovichianos algo um tanto retórico e datado.

Com algumas exceções, desde “Desejo e Reparação”/2007 de Joe Wright em que a reparação de um ato de consequências graves na juventude se dá na velhice no âmbito da ficção, pois não era possível na realidade, um filme de grande contador de histórias, uma das várias vertentes/veredas do Grande Cinema, não me tocava/fisgava tanto como “Incêndios”, fora do cinema asiático, que nesta “praia”, dentre outros, gerou os fantásticos “Mother”/2009 de Joon-ho Bong exibido no Rio o ano passado e “Poesia”/2010 de Lee Chang-dong a estrear logo mais.

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Sobre o Oscar

Li muitas críticas negativas ao Oscar de 2011 e sua transmissão. Muitas delas válidas. Um grande equívoco, por exemplo: não ter considerado “Ilha do Medo” de Scorsese em várias categorias como filme, ator, diretor, fotografia, roteiro adaptado, montagem, etc.

Mas num tempo em que há muitas pessoas que acreditam que podem ver um filme num celular ou algo que o valha em diminutas dimensões e há a indisposição de muita gente a sair de casa, viciados que estão em seus downloads, o Oscar passa a representar uma grande festa do Cinema Americano que ecoa por todo mundo e que nos faz lembrar o imenso prazer que é estar imerso na sala escura com a tela grande. Basta olhar nos jornais e ver a quantidade de filmes em cartaz de variadas qualidades que conseguiram boa repercussão/visibilidade graças ao Oscar e vão atrair, principalmente, os que não vão cair na gandaia neste carnaval.

A França tem o César, a Inglaterra o Bafta, a Espanha o Goya, a Itália o David de Donatello, a Europa o European Awards, etc. Pena que estes prêmios, por uma má cobertura das diferentes mídias, não tenham dimensão que rivalize com os pés do Oscar... Já o Brasil tem um grande prêmio onde se destaca o patrocinador (o que é contraprodutivo) e é realizado numa época em que já estamos com outros filmes brasileiros na cabeça e os filmes premiados não terão suas carreiras revalorizadas. Que esta festa do Cinema Brasileiro seja reavaliada, valorizada e feita numa época não tardia.

Graças à indicação de Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, “Incêndios” chegou ao circuito brasileiro, assim como chegará logo ”Em Um Mundo Melhor” de Susanne Bier, vencedor na categoria. Caso contrário, provavelmente, seriam apenas, no máximo, itens de festival para minorias cinéfilas. Algo análogo também aconteceu com o ótimo documentário “Trabalho Interno” (já comentado no Blog), vencedor na categoria e em cartaz.

Ps Só não incluí “Ilha do Medo” entre meus melhores de 2010 porque na época de lançamento não pude vê-lo por problemas de saúde. Quinta-feira o vi numa sessão lotada no CCBB-RJ na Mostra Melhores do Ano organizada pela Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro. Quem não o viu no cinema, não deve perdê-lo em DVD. Ou (o que fazer?) através de download.

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Nelson Rodrigues de Souza

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