quinta-feira, 24 de março de 2011

Ou Feia ou Bonita, Ninguém Acredita na Vida Real

















Ou Feia ou Bonita, Ninguém Acredita na Vida Real

(Sobre “Cópia Fiel” (França/ Irã/ Itália/2010) de Abbas Kiarostami etc. )

O texto contém spoilers, ou seja, detalhes fundamentais de narrativas são adiantados para a análise pretendida.

Uma das interpretações mais belas de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust é a ideia de que somos muito mais felizes nas rememorações do que vivemos do que nos próprios momentos em que as coisas/fatos são efetivamente vividos. Quando, por exemplo, estamos apaixonados e estamos à espera de alguém, tantos contratempos&angústias podem acontecer antes, durante e depois de um ato amoroso que é na recordação que escoiamos todos estes incidentes indesejáveis e vivemos com mais plenitude tudo o que aconteceu de bom. Com o que Proust não contava é com nossos mecanismos neuróticos que podem nos fazer, ao terminarmos uma relação, nos concentrar muito mais nos aspectos relativamente ruins do que nos bons momentos vividos. É o que acontece com o casal de “Cópia Fiel” e que é visto com uma agudez espantosa em “Cenas de Casamento” de Ingmar Bergman, um filme contundente que dificilmente será superado neste sentido com os mais variáveis estados de espírito dos seres humanos quando se deparam com uma relação terminal.

Mas se “Cópia Fiel” nesta ótica é um filme menor comparado à genialidade de Bergman (que bebeu na fonte de Strindberg onde numa situação mais radical, “Senhorita Júlia” se mata por não suportar sua paixão por um homem de classe social inferior), esta grande obra de Kiarostami introduz, como em muitos dos seus filmes, a questão da metalinguagem e os desvios e aproximações entre realidade e ficção. Realidade, que é hoje uma palavra prostituta, pois a complexidade do mundo atual, tanto nas relações amorosas com seus autoenganos e enganos a dois, como “no mundo exterior”, está acachapante. Exemplos: O que está acontecendo realmente no Japão? Depois de estardalhaços apocalípticos nucleares, as notícias minguaram. Qual é a realidade: houve exageros da mídia no início dos fatos ou agora estão nos sonegando informações?; A Região Serrana foi duramente atingida pelas chuvas com imagens aterrorizantes pela tevê e jornais virtuais ou impressos. De uns tempos pra cá não se comenta mais nada. Como estão sendo feitas as reconstruções de vidas, moradias e estabelecimentos? Já soube por quem visitou Friburgo que as pessoas andam ainda atônitas pelas ruas e há lugares onde se sente cheiro de carniça devido aos mortos sepultados/insepultos por lama, terra e/ou concreto. Qual é o real das Serras hoje?; O ditador da Líbia Kadaf estava determinado a exterminar todos os revoltosos. O Conselho de Segurança da ONU demorou, mas aprovou uma intervenção de tropas (incluindo os EUA, mas não com hegemonia deste). Mas já há quem diga que estas tropas em seus bombardeios estejam matando mais gente do que Kadaf fez com seu povo. Qual o real em jogo? A imprensa de que dispomos vai dar conta deste real ou teremos de esperar por um grande documentário a respeito?; Dilma e Obama se encontram como se estivéssemos num sonho. Mas quais as reais condições que os dois têm de transformações benignas bilaterais para termos um intercâmbio não predatório, dado as bases que os sustentam? Dá para acreditar que num momento de grande crise econômica, se envolvendo em mais uma guerra, com o Japão ruindo, os EUA serão menos protecionistas com seus produtos de exportação/importação? Não é surreal termos indústrias de suco de laranja, antes grande exportadores para os EUA, se instalando na própria corte, gerando empregos por lá?; Jafar Panahi (de “Fora do Jogo”, “O Balão Branco”etc.) está condenado a seis anos de prisão no Irã e depois a 20 anos sem filmar. Cineastas iranianos como Abbas e Asghar Farhadi (diretor de ''Nader and Simin, A Separation'', vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim- 2011) estão adotando uma política de não criticar o governo de Mahmoud Ahmadinejad abertamente no Ocidente para poder continuar a fazer filmes no Irã, onde aí teriam sim elementos críticos para mudar a sociedade iraniana. Não há cinismo aí. Mas este pragmatismo não soa algo irreal, ou uma grande dificuldade de se lidar com o real?

Em “Blow-Up” (Inglaterra/Itália/1966) de Antonioni que não perde atualidade, pois continua sendo uma grande metáfora sobre incomunicabilidade e alienação, um fotógrafo que não consegue resolver o enigma de um morto captado numa foto, termina por contribuir/validar uma partida de tênis sem bola, num dos mais belos e significativos finais de filmes já feitos, mesmo que Ely Azeredo, decano da crítica cinematográfica, o considere um erro ( seria felliniano demais..).

Pois bem! Vivemos num mundo hoje em que todos os dias somos confrontados com mortos nas fotos que tiramos. O que é o real disto tudo? Devemos jogar tênis sem bola todos os dias para não nos amofinarmos?

E as nossas relações amorosas? Estão plenas? Plenitude aqui é uma utopia? Qual o peso do dinheiro corruptivo na manutenção destas relações, sejam homos ou heteras? Em quais fantasias benignas estamos envolvidos? Mas e as malignas,como as estamos escamoteando? Enfim, qual a realidade que vivemos que escapa aos sonhos que acalentamos? Ou melhor: que conformação a fórceps estamos tentando dar à realidade para que ela se aproxime mais dos nossos sonhos?

Abbas Kiarostami pode não ser um leito atento de Walter Benjamin, mas não deve ter passado em branco para ele, que escreveu o roteiro de seu filme europeu, o ensaio “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”, pois a primeira parte do filme discute temas muito caros a Benjamin neste ensaio em que se ressalta a perda de aura das obras de arte numa era de reprodutibilidade ainda distante dos recursos que se tem hoje. O que pensaria Benjamin deste nosso mundo de grande poder da web de gerar cópias fiéis?

“Cópia Fiel” se abre com uma palestra de um escritor inglês James Miller (William Shimell, cantor lírico britânico em sua estreia sedutora no cinema) sobre seu livro “Copíe Conforme” numa localidade da Toscana, onde a obra foi traduzida e ganhou um prêmio de melhor livro estrangeiro. Ele discorre sobre o poder das cópias na História da Arte. Como ele valoriza bastante a relação subjetiva que há entre quem está diante de uma obra de arte e o que é visto, ele não vê nenhuma grande problemática nas cópias fiéis. Assume aqui uma visão inversa à de Benjamin em seu famoso ensaio.

Ella (Julliette Binoche, prêmio de melhor atriz em Cannes 2010 neste que deve ser seu mais intenso e melhor trabalho), uma francesa que vive na região, dona de uma galeria de antiguidades, assiste parte da palestra, deixa seu endereço com o tradutor sentado ao lado e marca encontro com James em seu local de trabalho, onde originais convivem indistintamente, a primeira vista, com cópias. Sua saída se dá por questões ligadas ao filho problemático que não a encara nos olhos, quer saber tudo da vida dela e reage ao saber que seu sobrenome não aparece numa dedicatória.

Ao se encontrar com James, Ella é incitada a fazer um passeio de carro em que ela dirige,vai expondo suas divergências com as teorias dele, ao mesmo tempo em que lhe pede que autografe alguns exemplares de “Copie Conforme” que ela comprou. Ele se dá à tarefa e contempla com gosto a paisagem. A relação entre os dois é tensa, pois há quase que uma competição intelectual. Até mesmo uma piada que ele conta é esvaziada. Ela aponta contradições entre o que ele escreveu e o que diz no momento. Ele rebate.

Numa das paradas ele conta uma história sobre uma mulher e seu filho que a emociona. Ele foi testemunha de um fato que aconteceu com Elle. Noutra parada para um café enquanto James atende seu celular do lado de fora, uma senhora atendente os contempla como marido e mulher e discorre com Elle sobre vantagens e desvantagens de uma mulher casada. A partir daí o filme começa a ter um turning point bastante significativo e dos mais intrigantes do Cinema. Elle e James passam a incorporar aos poucos um casal que já se conhece há quinze anos e estão em crise, com muitas recriminações e queixas recíprocas. Os cuidados e a educação do filho são discutidos, a apatia do marido dormindo quando ela esperava grandes carinhos numa noite de aniversário de casamento é salientada, a leviandade dela em dirigir em alta velocidade com o filho no banco de trás também, comparações descabidas são feitas etc.

Afinal, como o que vimos antes se atrelaria de uma forma realista ao que assistimos agora? Acredito que por mais que assistamos o filme, este enigma continuará. Como em “Cidade dos Sonhos” de David Linch não há esteio realista que seja desvendado para dar maior sustentação ao filme. Interessa aos autores o mistério poético. Considero muito redutor crer que se trata de um sonho de uma das protagonistas de Linch. Sem a mirada surreal de Linch, Abbas Kiarostami recorre à metalinguagem questionando mais uma vez o status do real num mundo de muitas cópias fieis (e infiéis disfarçadas).

Estarão James e Ella criando uma cópia de uma relação que poderiam ter tido? Teriam realmente se encontrado “O Ano Passado em Marienbad”? Não creio que saberemos a resposta. O importa mais é que os sentimentos que eclodem são muito verdadeiros. Depois de se confrontarem com um quarto em que teriam se encontrado 15 anos atrás, com James sempre se mostrando ainda frio, tendo tido raros momentos de afeto explícito, um clima instalado para uma relação amorosa é quebrado porque ele, conforme já tinha avisado, tem que pegar um trem para voltar à Inglaterra. Depois que ele sai de campo do banheiro, onde o vemos de frente como a vimos também, olhando para nós, passando batom e colocando brincos, efusiva com a possibilidade de agradá-lo que depois se frustra, uma imagem linda e fixa da paisagem de casas antigas com um sino batendo, vista através da janela, converge para os letreiros finais.

Fica no ar então o sentimento: afinal o que há de ficção também em nossos mundos de espectadores perplexos diante de um jogo amoroso que pode ser fictício dentro da ficção? Se todo filme, independentemente de sua qualidade, nos tira um tanto de nossa realidade, ao sairmos da sala escura do cinema, com “Cópia Fiel”, este sentimento é mais agudo, pois nos instiga a pensarmos nos jogos mentais que todos fazemos para afirmarmos um eu seja no trabalho, nas relações amorosas, num mundo que quer nos converter a um “eu mínimo” destinado não à felicidade e ao prazer, mas sim a uma amarração a engrenagens pré-estabelecidas. Neste sentido não estamos muito longe do mundo mostrado em “Metrópolis” de Fritz Lang (visto esta semana no Teatro Municipal com orquestra) onde um reino subterrâneo de seres automatizados sustenta uma elite que vive em camadas superiores. James e Ella não pertencem a uma classe proletária, mas não deixam de ser alvos de autoenganos e de uma alienação em que não há partida de tênis sem bola que apare as angústias geradas. A rigor vivem em uma cópia pouco fiel do mundo dos seus sonhos.

Em “E a Vida Continua” (Irã/ 1991) Kiarostami faz de um terremoto real um meio onde se instala uma ficção onde um cineasta procura um garoto que participou de um filme anterior feito por Kiarostami, “Onde Está a Casa do Amigo?”( Irã/1987). Neste jogo metalinguístico temos também a questão da realidade e suas cópias fiéis fictícias.

Em “Através das Oliveiras” (Irã/França/1994), numa região arrasada por um terremoto, temos uma filmagem em que o acaba importando mais é a relação entre um casal de atores na realidade, fora do filme que fazem. O que é original aqui e o que é cópia nestas vidas?

Em “O Gosto da Cereja” (Irã/França/1994), Palma de Ouro em Cannes, um homem deambula de carro a procura de alguém que o ajude no suicídio que pretende fazer. “O Gosto da Cereja” surge aqui como emblemático das alegrias que se pode ter na vida e que o protagonista está por abandonar. Até uma leitura homoerótica o filme sugere. Numa via-crúcis para pegação, o protagonista pode, inconscientemente ou não, estar querendo encontrar alguém que o ame e salve. Mas não podemos nos fechar sobre esta hipótese. Temos um filme bastante aberto. Culmina com morte dele, mas Abbas reserva uma surpresa: todo aparato para fazer seu filme acaba se mostrando, desdramatizando um tanto a sequência final, onde ele está por ser enterrado. Kiarostami não se cansa de questionar o real que a ficção traz e a ficção que também contamina o real. “O Gosto da Cereja” lida com dois tabus que a sociedade iraniana está impedida de discutir pela tirania imposta: o suicídio e a homossexualidade.

“Cópia Fiel” é o primeiro filme europeu de Abbas Kiarostami, feito com atores não iranianos (um inglês, uma francesa), falado em três línguas: francês, inglês, italiano. Se de inicio causa estranhamento, com o tempo, tendo a memória de alguns filmes feitos por este grande artista contemporâneo, logo se percebe suas filiações e inquietações, o rigor habitual com que os planos e sequências são construídos e temos diante de nós mais um belíssimo momento autoral. E aqui estamos diante da mais cristalina realidade.

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Ps O título do Post vem de um verso de Caetano Veloso

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. FRANCISCO MONTEAGUDO25 de março de 2011 às 18:52

    "CÓPIA FIEL" foi um dos filmes mais interessantes e instigantes que tive a oportunidade de assistir. O comentário analítico do Nelson, ressaltando outros filmes que também jogam com a realidade, abriu ainda mais perspectivas para a análise dêsse extraordinário filme.

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