quinta-feira, 17 de março de 2011

Com Quantos Recuos e Avanços se Faz um Homem?












Com Quantos Recuos e Avanços se Faz um Homem?

(Sobre “Em Um Mundo Melhor” (Dinamarca/Suécia/2010) de Susanne Bier etc.)

(Este texto contém vários spoilers, ou seja, detalhes fundamentais de algumas narrativas são adiantados para a análise pretendida)

Em “A Coragem de Criar” (Editora Nova Fronteira) do psicanalista Rollo May algumas ideias básicas sobre coragem/medo são expostas com bastante acuidade. Para o artista realizar uma obra ele tem de vencer o medo de concorrer com Deus. A coragem não é a ausência de medo, mas a capacidade de seguir em frente, apesar do medo. A coragem física, diferentemente da coragem moral, degenera em brutalidade.

Em “Em Um Mundo Melhor”, Susanne Bier como em outros filmes seus, com seu roteirista colaborador frequente Anders Thomas Jensen, estica a corda de questões éticas delicadas onde os conceitos de coragem física, coragem moral e medo se embaralham de modo muito nítido e eficiente, propondo ao espectador que faça junto com seus personagens escolhas ousadas. Há permeando esta obra recente, não isenta de defeitos de roteiro, mas com interpretações notáveis de todos os atores, uma discussão sobre qual o lugar do pacifismo nos dias de hoje, colocando em xeque as ideias de Rollo May expressas.

Anton (Mikael Persbrandt) é um médico que fica na ponte Dinamarca/ África (país não especificado), onde neste imenso continente presta serviços humanitários num alojamento de refugiados de guerra e um assassino conhecido como Machão tem a grande perversão de abrir a barriga de mulheres grávidas “para saber o que contém”. Anton dedica parte de seu esforço como médico a salvar a vida destas mulheres, dentre outros casos. Na Dinamarca mora sua mulher Marianne (Trine Dyrholm) de quem está se separando, com dois filhos, sendo o maior Elias (Markus Rygaard), que sofre constantes bullyings na escola por ser visto como diferente, apresentando notáveis defeitos nos dentes, um bode expiatório de recalques de parte da turma, havendo um líder destes ataques, Sofus (Simon Maagaard).

Claus (Ulrich Thomsen) fica viúvo e volta de Londres para a Dinamarca, com seu arredio filho Christian (William Johnk Nielsen) que despreza o pai por acreditar que ele desejasse a morte da mãe que sofria de câncer, quando o que de fato ocorreu é que Claus, por piedade e afeto, vendo o sofrimento da mulher em estado avançado da doença, acabou por desejar sua morte.

Christian matriculado na mesma escola de Elias, o vê sofrendo bullying, recebe uma bola arremessada no rosto e resolve ao seu modo, dar pancadas com um cabo em Sofus no vestiário, usando até uma faca no pescoço deste para intimidação. Este passa a ter risco de perder a vista. Com a faca escondida e negações sucessivas o trio é convidado a fazer as pazes.

Há certo grau de psicopatia em Christian que o filme não aprofunda e à sua maneira vai colocando panos quentes como se fosse um caso apenas de carência familiar e desenraizamento social. Christian e Elias ficam amigos. Fica no ar a ideia de que se não houver um fim entre as retaliações dos jovens, tudo se passa como numa guerra que não vai ter fim.

Anton em momentos que fica com o filho aparta uma briga entre seu filho menor e outra criança. O pai desta aparece dando esporros e chega a bater no rosto de Anton mais de uma vez. Este quer ensinar aos jovens que diante de um idiota não deve haver reação física, pois isto degenerará em brutalidade (conforme May). As crianças ouvem as lições, mas ficam mesmo estupefatas com a falta de reação. Numa das sequências mais belas do filme, Anton corre numa ponte e se joga nas águas de um lago para dissipar a angústia e violência contidas com o não revide à altura.

Christian e Elias da visão privilegiada do alto de um prédio iniciam um processo de descoberta de onde trabalha o agressor. Anton faz questão de ir reencontrar este, que trabalha como mecânico, junto aos jovens e novamente leva tapas no rosto numa troca de palavras rudes, sem reagir, reiterando o que já tinha ensinado.

Em paralelo (e aí as pontes com a África mais do que se justificam) vemos Anton receber a visita estrepitosa do líder Machão com feridas fortes abertas numa perna. Apesar do protesto dos que o circundam fala mais alto seus ideais de médico e acaba atendendo ao insólito visitante. Quando uma das vítimas deste morre, ele ainda caçoa dizendo que ela agora está preparada para algo que só pode ser necrofilia. Numa sequência de forte impacto emocional, vemos Anton perdendo a paciência e carregando Machão para fora da tenda e entregando-o para os populares que acabam fazendo um linchamento. Anton foi atingido em seus limites de generosidade. Sua coragem moral sucumbiu a ações físicas e um covarde linchamento ocorre por mais que saibamos dos horrores de que Machão é capaz. Do ponto de vista dramático a sequência é bastante pertinente. O filme correu o risco de ser politicamente correto aqui, mas se afasta desta tendência, sendo realista.

Na Dinamarca Christian descobre como fazer bombas pela Internet depois que descobriu em casa de parente matéria prima para tal empreitada. Com a relutante ajuda de Elias, os dois planejam destruir o carro do mecânico. A partir daqui o filme alterna momentos da alta tensão dramática com alguns talvez politicamente corretos demais, conduzindo tudo a um final de contemporização em que se tem um mundo melhor. Se mesmo assim temos um belo final, isto se deve à excelência dos atores que conseguem nos convencer mesmo em situações dramáticas um tanto forçadas.

“Em Um Mundo Melhor” levanta questões bastante pertinentes no mundo de hoje, mas não vai às suas últimas consequências, havendo arrefecimento de ímpeto. De qualquer forma é um filme que merece ser visto, pois mostra contrapontos bastante interessantes: para acabar com o bullying na escola as reuniões de pais e alunos foram insuficientes e só uma violência mais extrema de Christian pode conter; o mesmo pai que mostra uma suposta covardia como uma lição de coragem moral, é aquele que na África com muita coragem de todos os matizes enfrenta situações no dia a dia que poucos mortais aguentariam pois se trata de um cardápio de miséria ostensiva entremeada com muita violência e suas sequelas.

Além do mais, as situações finais mesmo com certo ar clichê, pela força que têm e dos intérpretes não deixam de nos emocionar. Assim um carro na África seguido por várias crianças negras em festa, por mais que possamos tê-las visto em outros filmes, acaba sendo perfeita para um the end, pois não há como imaginar um mundo melhor se não soubermos o que fazer com estas crianças.

“Hair” montada brilhantemente por Cláudio Botelho/Charles Möeller em termos musicais, coreográficos e de interpretações é um grande triunfo e nos dá vontade de revisitar. Mas se nos atermos à essência de sua dramaturgia, essa captação do que era o mundo hippie dos anos sessenta/setenta revela-se um texto um tanto datado, pois o mundo em que vivemos está muito mais complexo do que aquele que gerou esta peça de grande sucesso. O que fica pairando no ar é a ideia da necessidade de utopias, algo do qual nos ressentimos hoje e que é o maior barato da peça. “Em Mundo Melhor” em que pese certas simplificações dá muito mais conta do mundo em que (sobre) vivemos do que “Hair”. Como pensar em pacifismo sem crítica quando observamos que governos depostos no Egito, na Tunísia e agora numa tentativa na Líbia (numa crise imprevisível com a resistência de Kadaff aos rebeldes, retomando até posições que estes pareciam já ter consolidado) só acontecem com uma saudável resistência popular que não pode se dar ao luxo das técnicas de resistência pacíficas que Gandhi criou/legou para libertação da Índia do colonizador inglês, o que é visto com força no subestimado “Gandhi” de Richard Attenborough, com antológica atuação de Ben Kingsley.

Já um filme que trata de questões correlatas às de “Em Um Mundo Melhor” é uma das obras-primas de Luis Buñuel, “Nazarin” (México/1958). Um padre (Francisco Rabal) resolve pregar o evangelho numa região camponesa. No entanto todas as suas ações na tentativa de fazer o bem, resulta em más consequências, quando não são inócuas. Ele arruma um emprego e se oferece por um baixo salário. Os colegas empregados discutem com ele, pois sua atitude galvaniza e legitima a exploração. Ele vai embora e de longe ouve (ouvimos) um tiro. Houve briga entre patrões e empregados. Ao chegar numa região onde reina a peste vai dar extrema unção a uma mulher moribunda. Como o marido desta chega, ela rejeita o ato misericordioso do padre e quer mesmo um beijo demorado e prazeroso do marido para levar como lembrança de seus últimos momentos terrenos. Confrontado com vários senões destas ordens, Nazarin acaba por aceitar um abacaxi que segura como se fosse um Che Guevara com sua arma, dirigindo-se ao público espectador.

Numa sequência numa prisão Nazarin ouve de um preso algo deste teor “Sua bondade e a minha maldade não servem para nada”. O corrosivo Buñuel parece comungar da máxima de Bertold Brecht em “A Alma Boa de Setsuan”, onde se conclui que “num mundo injusto não há lugar para a bondade”. Os deuses vêm à Terra e descobrem que a única alma boa é a prostituta Chen Tê. Dão lhe recursos para que ela tenha um negócio. Ela acaba sendo explorada pelas pessoas. Surge então o primo Chui Tá e põe ordem na casa. Mas o primo é uma invenção dela, seu duplo. São a mesma pessoa. Ela e ele convivem num só ser para se protegerem num mundo absurdamente injusto.

“Em Um Mundo Melhor” também há sentimentos de bondade e sabedoria que redundam contraproducentes. Se Anton tivesse reagido com mais firmeza diante do mecânico agressor e não tivesse oferecido a outra face, não haveria razão para os jovens se vingar, explodindo o carro e colocando a vida de pessoas em risco, inclusive a de Elias que só se salva depois da forte explosão por uma facilidade/truque de roteiro.

Em “Brothers” (2004) de Susanne Bier, um pai é tido como desaparecido na guerra do Afeganistão onde está preso e para se salvar é obrigado a matar um colega. Quando volta para casa, bastante perturbado por esta grande culpa, encontra a mulher com um caso com o irmão que foi sempre a seu ver um “porra-louca” e que conquistou o amor das crianças. Todos passam a estranhar o comportamento do pai e sua crescente agressividade.

Em “Coisas Que Perdemos pelo Caminho” (EUA/2007) de Susanne Bier, uma viúva passa a ter uma relação tumultuada com um out-sider, onde limites dos sentimentos dos personagens serão testados. Se aqui estamos longe dos melhores roteiros de Bier, o que ressalta são os ótimos trabalhos de Halle Berry e Benicio Del Toro.

Susanne Bier mesmo não sendo uma das grandes diretoras mulheres do cinema (como Agnès Varda, Jane Campion etc.) merece ser acompanhada pelos teoremas emocionais que propõe com forte carga dramática e humana. O desprezo que um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (e Globo de Ouro na categoria) costuma gerar em certos segmentos, não deve ser algo impeditivo para não se ver o filme. Muito pelo contrário. Não há por que ficarmos lamentando que grandes filmes de 2010 como “Deuses e Homens” de Xavier Beauvois, “Cópia Fiel” de Abbas Kiarostami etc. não foram sequer selecionados entre os cinco finalistas. E crucificando Susanne Bier....

Ps1A complexidade do nosso mundo é tal que o grande escritor João Silvério Trevisan num dos seus últimos artigos para a revista G Magazine, de uma forma que merece ser bem discutida dados os perigos inerentes, conclamou o pessoal GLBT a aprender artes marciais e que tais, para se defender em legítima defesa de ataques homofóbicos como os que pululam na vida e nos jornais.

Ps2 Vale a pena meditar sobre esta letra que dialoga com o já escrito:

Alma (A Paz Que Eu Não Quero)

O Rappa

Composição: Marcelo Yuka

A minha alma tá armada e apontada

Para cara do sossego!

(Sêgo! Sêgo! Sêgo! Sêgo!)

Pois paz sem voz, paz sem voz

Não é paz, é medo!

(Medo! Medo! Medo! Medo!)

As vezes eu falo com a vida,

As vezes é ela quem diz:

"Qual a paz que eu não quero conservar,

Prá tentar ser feliz?"

As grades do condomínio

São prá trazer proteção

Mas também trazem a dúvida

Se é você que tá nessa prisão

Me abrace e me dê um beijo,

Faça um filho comigo!

Mas não me deixe sentar na poltrona

No dia de domingo, domingo!

Procurando novas drogas de aluguel

Neste vídeo coagido...

É pela paz que eu não quero seguir admitindo

É pela paz que eu não quero seguir

É pela paz que eu não quero seguir

É pela paz que eu não quero seguir admitindo

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Nelson Rodrigues de Souza

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