quinta-feira, 10 de março de 2011

Retrato do Poeta Enquanto Jovem Impetuoso














Retrato do Poeta Enquanto Jovem Impetuoso

Sendo o Cinema uma arte relativamente recente cujos primórdios remetem aos experimentos dos Irmãos Lumière, Méliès etc. (fim do século XIX / início do XX), os conceitos da História da Arte como classicismo, romantismo, neoclassicismo, academicismo, realismo, modernismo, pós-modernismo etc. não se aplicam com propriedade. Isto não implica que não consideremos certos filmes como caudatários do academicismo, de forma em que há uma linha tênue que os separa do classicismo.

É comum ouvirmos/lermos sobre “filmes do Oscar”. Seriam filmes que se fundam em cânones já consagrados pela Academia de Hollywood gerando histórias lineares, muitas vezes com aplicada reconstituição de época, com temas como superação, martírio dos judeus etc. Assim explicaríamos a vitória por exemplo de “Shakespeare Apaixonado”, “A Lista de Schindler”, “O Paciente Inglês”, “Titanic” ou “O Discurso do Rei”, dentre outros. Seriam filmes acadêmicos por excelência. Mas como explicar a vitória de “Menina de Ouro”, “Onde os Fracos Não Tem Vez”, “Guerra ao Terror” etc.? Seriam exceções que confirmam a regra?

De minha parte se tenho grande estima por “Menina...” e “Onde os Fracos...”, não deixo de reconhecer grandes valores na maioria dos filmes anteriores mencionados. Por mais que haja elementos que me incomode em “O Discurso do Rei” (conforme já exposto neste Blog) não o considero um filme simplesmente acadêmico, mas sim um filme (como todos os outros) que se vale do classicismo para expressar seu discurso cinematográfico.

Este é mais um caso (como os do plano-sequência longo já comentado em post anterior) em que não tenho uma teoria pronta para delinear com clareza a fronteira entre estas duas atitudes. O que vige é uma questão de sensibilidade pessoal. Um filme acadêmico seria um filme linear que por clichês chamativos ostensivos, piscando demais para o espectador, me fizesse pesar as pálpebras para acompanhá-lo. Já o de figurino classicista seria aquele, em que pese suas linearidades e recorrência de temas, me tomasse pelas mãos, me conduzindo com leveza no olhar do início ao fim.

Esta minha distinção é um tanto vaga e pessoal. Mas é o que posso escrever aqui. Quando fizeram uma enquete na França no fim do século XX sobre qual seria o melhor filme francês da História não emergiu um filme da nouvelle vague ou posterior a ela, influenciado por ela e sim um daqueles estigmatizados pelo Cahiers Du Cinéma dos seus áureos e influentes tempos, pejorativamente tido como Cinema “La qualité française” (um cinema que seria do tipo Projac). O maravilhoso “Boulevard du Crime”( 1945), colaboração do poeta Jacques Prévert com o cineasta Marcel Carné, tido como realismo poético foi o filme escolhido. O próprio Truffaut, enfant terrible do Cahiers teria reconhecido anos depois a grandeza desta obra-prima de Carné.

A dupla Ismail Merchant/James Ivory (o primeiro como produtor, o segundo como diretor) tem filmes memoráveis que alguns os têm como acadêmicos, o que é flagrante injustiça: “Uma Janela Para o Amor”, “Vestígios do Dia”, “Retorno a Howard’s End”,”Maurice”, “Luxúria” etc.). Pena que com a morte de Ismail, James esteja tendo dificuldades em filmar, pois aqui temos um diretor raro, alguém que nasceu nos EUA, se aproximou da cultura indiana e tem um olhar plácido e crítico para as convenções e hipocrisias burguesas das mais variadas ordens.

Mas por que me detenho tanto aqui em defender filmes de mirada que considero classicista e não acadêmica? É por que está em cartaz mais um filme de um admirável cineasta apolíneo brasileiro que é Andrucha Waddington: “Lope” (Espanha/2010). Muitos o tacharão de acadêmico aonde eu vejo o mais cristalino classicismo, num alto nível admirável, ainda que não chegue a atingir a emoção constante e grandeza do belíssimo “Casa de Areia” ( 2006), onde no mínimo temos uma sequência antológica em que Fernanda Montenegro com figurinos distintos contracena com ela mesma ( mãe e filha) instaladas numa região plena de areia na paisagem e nas almas, onde se fica muito contente de saber que o homem foi ao espaço e o que trouxe foi areia...

“Lope” nos traz nas palavras do diretor o “Lope antes do Lope”. Numa belíssima reconstituição de Madri do Século de Ouro espanhol, mas em que o povo tinha imensas dificuldades de ter empregos e a guerra era um ganha pão para quem sobrevivesse, Lope de Vega (1562-1635), composto pelo argentino Alberto Ammann com emoção, volta da guerra, usa a roupa de um marquês para ostentar status elevado, perde sua mãe Paquita (Sônia Braga com impressionante maquiagem, com dramática e suave expressão facial) e se endivida para pagar um enterro solene para a mãe, apesar dos protestos do irmão Juan ( Antonio de La Torre). Lope se envolve com Elena (Pilar López de Ayala), uma mulher casada com marido distante, filha do empresário teatral Velasquez (Juan Diego), ao mesmo tempo em que flerta com Isabel (Leonor Watling, de “Fale com Ela” de Almodóvar). Esta é objeto de paixão do Marques de Navas ( Selton Melho, numa curiosa e sóbria aparição), para quem o poeta cede versos para que este impressione sua amada que se encanta mesmo é por Lope.

Lope de copista transgressivo de Velasquez se torna prisioneiro deste, devendo-lhe cinco comédias, por causa de suas dívidas. Ao saber da natureza da relação pai e filha revolta-se com sua condição num nível tal que é obrigado a fugir para Lisboa.

Para Andrucha “minha nacionalidade é a nacionalidade do roteiro que estou trabalhando em determinado momento”. Se não conseguimos aqui de imediato reconhecer um cineasta que nos deu tantos filmes “tão brasileiros” como os muito bons “Eu, Tu, Eles”, “Viva São João”, “Maria Bethânia: Pedrinha de Aruanda” e o já citado sublime “Casa de Areia”, é na competência com que mescla romance, aventura, poesia visual e explícita e um tanto de História com suas licenças poéticas, que se reconhece um dos nossos cineastas brasileiros mais importantes, rotulado por alguns como publicitário pela sua participação no grupo “Conspiração Filmes” que inspira mais inveja do que espírito crítico realmente. Estas críticas negativas simplistas é que conspiram contra a grandeza da variedade do Cinema Brasileiro como um todo e dos tentáculos (como aqui) que podem atingir outros países (como Hector Babenco nos EUA filmando o subestimado e grandioso “Ironweed”/1987 com Jack Nicholson e Meryl Streep, esta em mais um trabalho de antologia).

Se o que vemos em “Lope” fosse assinado por um notável diretor espanhol, não teríamos do que reclamar, mesmo que o filme apoiado por uma visão classicista de cinema (ponto de contacto com outras obras de Andrucha) não tenha a estatura de um clássico que venha para ficar, o que acredito que aconteça com “Casa de Areia” se for bem revisitado.

Em “Lope” temos a paixão e a impetuosidade de um grande poeta que não abdica de viver. Não temos aqui um poeta romântico enamorado da morte. O que vemos é alguém em que a vida pulsa em todas as suas formas, tornando-o ainda mais admirável. É essa alegria de viver mesmo com todos os entraves que nos toca mais em “Lope”. “Brilho de Uma Paixão” de Jane Campion ao abordar uma fatia de vida do poeta John Keats é enquanto filme superior a “Lope”, mas confesso estar um tanto cansado do trabalho de Thanatos no cinema e gosto de ver alguém solar na tela, mesmo com seus incontornáveis conflitos.

Lope de Vega é tido com um dos mais profícuos poetas/dramaturgos da História, senão o mais, com mais de 400 comédias, 42 autos e centenas de poemas. Há até quem lhe atribua 800 peças de teatro, 300 sonetos, três romances, quatro novelas e nove poemas de fôlego épico. Qualquer que seja a fonte correta, o que temos é um inegável grande prodígio de criatividade que o filme retrata quando jovem impetuoso, que dada as condições bem adversas de vida da época poderia não ter vingado, se aliado ao imenso talento, ele também não fosse dotado de agudo senso de sobrevivência (mesmo com suas loucuras) e não tivesse tido também a generosidade de pessoas próximas e sorte, este fantasma que junto com o azar ronda a condição humana, tornando-a frágil em sua fortaleza e/ou forte em sua fragilidade.

Alguns filmes nos enchem apenas os olhos. “Lope” nos enche os olhos e preenche vazios de nossas almas com boa dose de poesia.

Ps1 Com sete indicações ao Goya, “Lope” ganhou em melhor canção original (“Que el soneto nos tome por sorpresa” de Jorge Drexler) e figurino.

Ps2 Casos dos mais notáveis e num aspecto triste são os épicos de David Lean, que numa visão estreita podem ser tidos como acadêmicos e não como deleite esplendoroso classicista que são.”Lawrence da Arábia” /1962 um dos melhores filmes da História do Cinema em qualquer tempo ganhou dentro outros o Oscar de melhor filme, assim como o extraordinário “Doutor Jivago”/ 1965. Lean realizou depois “A Filha de Ryan”/ 1970 que não obteve o mesmo sucesso tanto de público como de crítica mas ainda assim um filme belíssimo. Lean se deixou levar pelas críticas negativas ( conforme declaração sua), se sentiu impotente e ficou anos sem filmar. Quando voltou realizou a obra-prima “Passagem para A Índia”/ 1984 que fez sucesso em todos os âmbitos. Começou então a realizar o projeto “Nostromo” baseado em romance de Joseph Conrad, mas morreu antes de ver o filme pronto. Assim não só perdemos um imenso diretor como também um provável grande filme, que se for feito por outro artista dificilmente terá o equilíbrio entre o senso épico que convive com intimismo que Lean aplicava com louvor a seus filmes nos últimos anos.Uma pena!.E um sinal eloquente de que nenhum diretor deve se abater por criticas negativas e continuar em frente.

Ps 3 O leitor que me acompanha pode pensar “Mas ele gosta de tudo!”. O que acontece na prática é que não me colocando como crítico profissional, só me permito assistir filmes que pela intuição e experiência eu possa gostar, o que nem sempre acontece. Além do mais prefiro escrever, de modo geral, sobre os filmes que gosto (em qualquer grau que seja) do que sobre os filmes que não gosto. Estes últimos já me chatearam no cinema e ainda vão me chatear em longo texto sobre eles? Não. Isto eu deixo para quem é bem pago. Se é que são bem pagos mesmo. Mas esta questão fica para outro post. O meu blog é feito, antes de tudo, por prazer.

Ps 4 Depois de acompanhar o desfile de escolas do grupo especial em que o enredo de muitas delas ( mesmo o da que mais gostei que foi a Unidos da Tijuca do genial Paulo Barros), só era bem inteligível através de bula dos apresentadores da Rede Globo, é um alívio assistir um filme com roteiro transparente como “Lope”...

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Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Concordo inteiramente com você quanto à distinção entre clássicos e acadêmicos, e quanto às qualidades de "Lope". Mas não vejo o sublime de "Casa de Areia", a meu ver um filme maneirista e mal resolvido dramaticamente.

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