sábado, 12 de fevereiro de 2011

Realidades da Realeza















Realidades da Realeza

1- “O Discurso do Rei” de Tom Hooper (Reino Unido/ Austrália/ EUA/2010)

O Discurso da Maquiagem Histórica

“O Discurso do Rei” é uma obra competente em todos os seus planos cinematográficos onde se destacam as exuberantes e tocantes interpretações de Colin Firth (Rei George VI, “Bertie”) e Geoffrey Rush (Lionel Logue). Mas é um filme limitado, roçando a decepção. Vejamos o porquê mais adiante.

Na década de 30 o Rei George V (Michael Gambon) morre e faz do seu filho mais velho David, o Rei Eduardo VIII (Guy Pearce). Mas este pretende unir-se a uma americana duplamente divorciada, o que se torna inadmissível para a posição que ocupa, pois um rei também é chefe da Igreja e isto ela não permite. Assim abdica de sua condição e faz do irmão Bertie que luta contra uma gagueira desde os quatro anos, o Rei George VI. Este já há certo tempo estava em terapia da fala com Lionel Logue, que percebe que para ser bem sucedido precisa quebrar couraças do Duque depois feito Rei, bem como aproximar-se dele como pessoa comum e não como mais um súdito. A incontornável entrada da Inglaterra na Segunda Guerra Mundial vai fazer o Rei George VI (pai da Rainha Elizabeth que vimos em “A Rainha” de Stephen Frears) aumentar sua ansiedade e necessidade de superar seu cacoete linguístico para proferir um importante discurso onde conclamará todos os segmentos do império inglês a lutar ao seu modo contra Hitler e sua perversidade inexcedível até então. Assim, com o apoio emocional e prático da mulher (que descobriu Lionel), Rainha Elizabeth (futura Rainha Mãe), vivida com brilho suave por Helena Bonham Carter e a fundamental terapia que caminha de muitas dúvidas, hesitações e dissensões para se chegar a uma entrega essencial, o Rei gago tem evolução de suas circunstâncias para uma situação que não é difícil de se prever, mas que mesmo assim, com uma ótima montagem, não deixa de carregar considerável emoção.

Pelos letreiros finais tomamos ciência do quanto a relação Lionel/Rei ainda evoluiu para discursos eloquentes que levantaram o moral dos súditos. No filme o futuro primeiro ministro Winston Churchill (Timo Spall) tem uma aparição apagada como um gordo bonachão que fala sobre como aprendeu a fazer de sua língua presa uma qualidade. E não muito mais que isto. Nos letreiros finais nenhuma menção ao seu papel de grande estadista durante a Segunda Guerra Mundial. Tudo se passa como se a monarquia tivesse tomado as rédeas das mais importantes decisões.

Em “O Discurso do Rei” a monarquia é vista de uma forma higienizada, chapa-branca, onde os maiores problemas surgem da gagueira de um Rei ou de outro que quer fazer valer sua vida amorosa acima do prestígio da realeza. Outras dissensões nos são omitidas. Assim estamos longe dos conflitos flagrados por Stephen Frears em “A Rainha” que de certa forma também são suavizados.

Há sequências simples e belas como a estupefação de Myrtle (Jenniffer Ehle) mulher de Lionel ao estar diante do Rei e da Rainha ou quando Lionel é deixado para trás na estrada, triste. Os duelos entre Lionel e o Rei se ao mesmo tempo tem inegável sabor por outro lado pecam por uma excessiva teatralidade, fazendo-nos pensar se não estaríamos melhor vendo uma peça com o tema tratado. A continuada gagueira do Rei por melhor que seja o trabalho minucioso de Colin Firth chega a se avizinhar da chatice.

O povo é o grande ausente de um filme que procura cerrar fileiras nos problemas monárquicos. Ele só aparece de uma forma distante numa sequência de certo impacto e beleza visual (até certo ponto previsível) para fechar o filme num grand finale.

Candidato a vários Oscars, sendo agora favorito aos prêmios principais, superando o insosso “A Rede Social”, “O Discurso Do Rei” é mais um belo filme de superação, mas que teria que se enfronhar com vários outros elementos para ser uma obra que realmente levantasse grandes voos.

Ps. Nem vou entrar na questão de que David era ou não simpatizante do nazismo.

2- “A Rainha” de Stephen Frears (Inglaterra/2006)

(Este texto foi publicado originalmente no Jornal Montblãat, estando aqui com cortes, correções, acréscimos e atualizações )

Intolerâncias e Hipocrisias Privadas, Virtudes Públicas.

Em 31 de agosto de 1997, fugindo de uma perseguição de incontroláveis paparazzis, a ex-princesa Diana Spencer (Lady Di), seu namorado, o milionário Dodi al Fayed e o motorista morreram tragicamente num acidente em Paris. A mesma mídia que por uma de suas faces perversas provocou indiretamente estas mortes, ajudou a criar um transe midiático em que Diana e sua vida passaram a ganhar conotações de santidade. Não há como negar os trabalhos assistenciais com que ela estava envolvida em seus últimos anos de vida, mas as repercussões de sua tragédia ganharam na Inglaterra, com ecos mundo afora, uma dimensão de autêntica histeria coletiva, incentivada pela mídia internacional como mais um fato transformado em factoide a gerar, de modo geral, manchetes e mais manchetes, matérias e mais matérias, efetivamente sensacionalistas ou disfarçadas de sobriedade.

“A Rainha” de Stephen Frears (Inglaterra/2006), depois de nos apresentar um Tony Blair (Michael Sheen, com notável semelhança) recém-eleito primeiro ministro e suas aproximações quase que cômicas com a rainha Elizabeth II (Helen Mirrren), cumprindo rituais anacrônicos, joga a nós espectadores e seus personagens no turbilhão de emoções desencadeadas pela morte de Diana. A rainha, sediada na residência de campo de Balmoral, na Escócia, a princípio quer separar totalmente os acontecimentos em algo privado que diga respeito à sua família e na esfera pública num fato que não seja pertinente nem aos seus familiares, pois Diana ao separar-se do Príncipe Charles (Alex Jennings) e optar por uma vida, a seu ver exibicionista, não faria mais parte da família real. O que importaria realmente seria cuidar das reações de seus netos Harry e William.

Tony Blair percebe a dimensão pública do que está ocorrendo. Seu assessor lhe sugere referir-se a Diana como “a princesa do povo” e é assim que ele passa a tratá-la em seus discursos. O Príncipe Charles vai a Paris num ritual para trazer o caixão de sua ex-companheira para Londres. Cedendo a pressões, a rainha concorda em transformar o enterro em algo grandioso com a presença, para desgosto manifesto do marido Príncipe Philiph (James Cromwell), de celebridades como artistas famosos, incluindo entre eles, homossexuais como Elton John.

A capitulação inicial da rainha não é suficiente para as massas comovidas com a morte de sua eterna princesa. A frente do portal do Palácio de Buckingham, em Londres, é coberta com centenas de ramalhetes de flores e passa a ser objeto de peregrinação. Mas a multidão quer a que a bandeira seja hasteada a meio-pau, manifestações objetivas de pesar e a presença da rainha nos rituais de despedida de sua princesa. Tony Blair com um olhar atento no marketing pessoal, outro com consciência do abalo que está sofrendo a monarquia, transmite à Elizabeth II, essa tataraneta da Rainha Vitória, a notícia de que uma boa parte dos ingleses naquele momento seria a favor da extinção da instituição monárquica. Um acirrado conflito entre a tradição arraigada, mofada e modernidade de Big Brother, se instala com força maior.

Esta obra de Stephen Frears tem um roteiro apurado de Peter Morgan (vencedor do Globo de Outro de 2006), bela fotografia do brasileiro Afonso Beato (que já teve vários trabalhos com Almodóvar), eficiente montagem de Lucia Zucchetti (alternando algumas cenas de documentários e ficção e tornando-as sutilmente confundíveis algumas vezes), sutil trilha sonora de Alexandre Desplat e uma elegante e competente direção. Aqui e ali os jogos políticos e humanos em questão recebem algumas espetadelas: Cherie, mulher de Blair (Helen McCrory), mostra-se anti-monarquista e comenta que um discurso da rainha ao contrário do que esta propala, não vem do coração, não tem nenhuma sinceridade; a rainha tem seu jipe enguiçado num pequeno rio como uma metáfora visual da condição retrógrada de seus ideais e condicionamentos sociais, chegando a chorar, o que é uma raridade; um belíssimo cervo morto provoca muito mais dor à rainha do que a morte da nora que seguiu uma vida a seu ver mundana e que de certa forma teria colhido o que havia plantado; o próprio Tony Blair com seu bom-mocismo suspeito é colocado em xeque por Elizabeth II, quando ela lembra-lhe que o abalo que teve, deve acontecer um dia com ele. Helen Mirrem como a rainha está não menos que extraordinária: não só suas palavras econômicas são bastante significativas e estão num tom imperial perfeito, como seus pensamentos passam a ser transparentes. Seus gestos, esgares, dúvidas, seus atos de elegante anacronismo são nada menos que perfeitos também. Não é à toa que na temporada de prêmios de 2006/2007, merecidamente tenha ganhado todos, inclusive o Oscar de melhor atriz, tendo ainda conquistado um dos mais nobres que é o Copa Volpi de melhor atriz do Festival de Veneza de 2006..

Assim tudo conspiraria para termos um filme cinematograficamente plenamente realizado e crítico. O resultado como um todo, entretanto, nos mostra algo um tanto diferente. Estamos aqui tanto longe da deliciosa “bobagem” descartável “Senhora Henderson Apresenta” (2005) com um trabalho soberbo de Jude Dench, como do dolorosamente cáustico e trágico “Ligações Perigosas” (1998), provavelmente o mais belo filme de Frears, baseado no romance epistolar de Choderlos de Laclos, um dos jogos de perversões de tinturas aristocráticas mais impressionantes do cinema, com uma extraordinária Glenn Close, capitaneando um elenco magnífico. Em “A Rainha” tudo nos parece meticulosamente calculado para que apesar das sutilezas críticas que emergem aqui e ali, todos ao fim e ao cabo, “saiam bem na foto”. Se o filme não contasse com uma atriz em desempenho tão extraordinário como Helen Mirren, que traz humanidade para personagem tão encalacrada em convenções, intolerâncias e que evolui na narrativa no sentido de camuflar hipocrisias, as fissuras do filme estariam mais expostas.

Se conseguíssemos encarar o filme como uma obra totalmente de ficção, sem elos com personagens reais, o que nos é ainda mais impossível pela sua estrutura, talvez tivéssemos uma visão mais generosa e compassiva dos personagens. Mas na forma como tudo é mostrado, a adesão latente, disfarçada, a um ideal monárquico ultrapassado “que muda para tudo continuar como está” e a visão de um Tony Blair em início de carreira como um “herói de diplomacia”, preocupado em salvar a monarquia, resultam bastante incômodas. Principalmente em se tratando de um político que se transformou pateticamente, depois de três mandatos consecutivos, segundo corajosas palavras públicas no recebimento do prêmio Nobel de Literatura de 2005, do dramaturgo, poeta, roteirista e ensaísta inglês Harold Pinter, num criminoso de guerra, sendo que sua propalada terceira via econômica e política se mostrou um engodo completo. O filme sinaliza em pontos específicos para a possibilidade desta farsa em evolução, mas tudo é muito tênue demais. Ter de encarar Blair como alguém que recebe conselhos políticos da rainha é algo ainda mais incômodo.

Para quem deseja ver retratado um mundo onde “tudo deve mudar para continuar como está”, com humanismo, sem desprezo pelos seus personagens, mas com uma visão histórica realmente ampla,multifacetada e crítica, recomenda-se “O Leopardo” (1963) de Luchino Visconti. Para quem quiser travar contacto com os limites esgarçados de lutas intestinas e exteriores com que um sistema monárquico pode se envolver, recomenda-se “A Rainha Margot” (1994) de Patrice Chéreau. “A Rainha” na visão de Stephen Frears é um filme bom, no limite da frivolidade, que de extraordinário tem mesmo é sua atriz protagonista, que já esteve presente num filme magnífico e profético, onde um intelectual era assassinado com livros que lhes eram enfiados boca adentro: o assombroso “O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e o Amante” (1989) do gênio Peter Greenaway. As metáforas de Greenaway, com seu visual arrebatador e transgressor, lançam luzes (e trevas) sobre a Inglaterra de hoje, de um modo com que “A Rainha”, com seu plano final de aluno aplicado de Escola de Belas Artes que acaricia um modo de vida a ser preservado, condenado a se eternizar, nem sonha.

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Nelson Rodrigues de Souza

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