quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A Camuflagem das Ideologias














A Camuflagem das Ideologias

Três filmes recentes mexem com limites de meus valores pessoais (ou seriam idiossincrasias?). Qual a melhor atitude ao se avaliar um filme? Despir-se destes valores? Não concordo. Estes valores estão aí e desde que sejam explicitados eles devem/merecem ser pontuados ao se comentar um filme. Temos sim que tentar entrar na cabeça dos personagens, mas não podemos simplesmente avaliar as obras neste universo fílmico que adentramos. A interação entre o mundo dos personagens e nossos valores ( que são mutantes) é que vai refletir o que realmente achamos dos filmes. Negligenciar nossos valores mais íntimos resulta num texto que soa falso. Por exemplo: por mais que sejam belos e tecnicamente muito bem feitos “Olimpíada” e “O Triunfo da Vontade” de "Leni" Riefenstahl ( dos quais só vi partes e já foi suficiente) a ideologia nazista que os impregna me causa uma náusea violenta que me impede de ter respeito e admiração por estes filmes. Bolinha preta para eles, em que pese valores artísticos que se possa garimpar.

Três filmes recentes mexeram em cordas sensíveis minhas. Um deles é “O Discurso do Rei”, já comentado no Post anterior, onde certo ar chapa-branca, para mim que sou totalmente avesso ao regime monárquico em qualquer tempo, dá as caras com força, ainda que com grande talento artístico e grandes interpretações. Assim considero-o um bom filme, mas não mais que isto, pois esbarra em convicções minhas que pelo momento não vejo jeito de mudá-las.

Outros dois filmes serão comentados adiante onde problemas análogos irrompem e um quarto filme mostra quando qualidade artística superior rima com ideologias para mim aceitáveis.

(Os textos a seguir contém spoilers, ou seja, detalhes fundamentais das narrativas são adiantados para a pretendida análise)

1) “ O Vencedor” de David O. Russell

Aqui há o álibi de se basear numa história real. Mas há maneiras e maneiras de nos aproximarmos destas histórias. Com distanciamento crítico ou grande adesão emocional, que é o que aqui acontece.

Dicky Ecklund (Christian Bale, fenomenal) já teve seus grandes dias como lutador de boxe. Agora viciado em crack, decadente, quer (como toda sua imensa família de irmãs), assim como a mãe de espírito empresarial mambembe Alice (Melissa Leo, excelente), fazer do irmão Micky Ward ( Mark Wahlberg num personagem que vai crescendo com vigor) um grande campeão do boxe em sua categoria.

As lutas que Alice agencia são precárias. Uma delas com alguém de peso bem maior que o de Micky provoca-lhe fortes ferimentos no rosto. Ao conhecer Charlene ( Amy Adams) uma jovem também com certas disfuncionalidades, Micky passa a ser incentivado a pensar com sua própria cabeça.

Por um bom tempo acompanhamos através de uma direção, roteiro e interpretações de alto nível uma história de um perdedor contumaz induzido por uma família pesada. Paulatinamente Micky vai tentando se desvencilhar dela, principalmente depois que o irmão que o treinava, briga com policiais e vai preso.

Muitas reviravoltas o roteiro ainda nos reserva. Tudo filmado de forma magnífica. Mas é na culminância de tudo onde o filme escorrega, resvalando em clichê. Pode-se argumentar que a história é real, mas a realidade também pode ser clichê e deve ser retrabalhada na ficção.

Na minha visão de mundo o boxe não é esporte. Se é mesmo, trata-se de uma abominação que remete às lutas romanas de gladiadores diante de uma plateia sequiosa de sangue, ferimentos e mortes. Claro que no boxe tudo que a ancestralidade mostrava foi atenuado por supostas regras do jogo. O fato é que com regras ou sem regras o que eu vejo é um espetáculo dantesco onde temos uma plateia histérica em busca também de sangue, ferimentos e até golpes no baixo ventre, tudo valendo para que seu boxeador favorito leve seu adversário ao nocaute ou numa hipótese menos agradável, que ele ganhe por pontos.

Em sua última parte, em “O Vencedor”, depois de reconciliações um tanto piegas, temos todos assistindo a uma grande luta de Micky, que depois de quase beijar a lona, encontra forças “surpreendentemente” e vence o adversário para felicidade de todos.

Ao mostrar os antecedentes desta vitória e ela propriamente dita, bem como as comemorações, o filme perde todo o pudor e nos mostra tudo como realmente uma grande festa, sendo caudatário de toda aquela “arena romana”, um tanto quanto previsível e caindo nos desvãos dos filmes clichês de vitórias no boxe.

Filmes como “Menina de Ouro” de Clint Eastwood ou “Touro Indomável” de Martim Scorsese não nos polpam de imagens chocantes de luta de boxe, mas há um distanciamento crítico salutar que nos permite ver o avesso de tudo aquilo, não havendo ar triunfalista, muito pelo contrário. No campo da luta livre, “O Lutador” de Darren Aronofsky também não doura a pílula: o salto que Mickey Rourke dá ao final das cordas vai levá-lo provavelmente à morte, pois está com problemas sérios de coração, mas não se integrou ao mundo exterior e só viu sentido na vida, ao voltar para o mundo das lutas.

Se “O Vencedor” correspondesse à história real, mas não criasse com sua câmera algo tão triunfalista teríamos mais que um bom filme, algo bem maior que “um dos filmes do Oscar”.

2) “Bravura Indômita ( EUA/ 2010) de Joel Coen e Ethan Coen

Segundo os Irmãos Coen “Bravura Indômita” não é uma refilmagem do filme homônimo de Henry Hathaway (EUA/1969) que deu o Oscar de melhor ator a John Wayne. Trata-se aqui de um apoio maior do romance “Bravura Indômita” de Charles Portis. Mas como veremos, a não ser por momentos de ironia aqui e ali, principalmente ao final, não temos um trabalho reconhecidamente autoral dos Coen, com suas reviravoltas irônicas de narrativa e seu sentido de absurdo não só do destino mas das relações sócias.

O pai da jovem de 14 anos Mattie Ross (Hailee Steinfield, surpreendente e excelente) é assassinado e roubado brutamente por Tom Chaney (Josh Broslin, mal aproveitado). Como Tom foge para uma reserva indígena a polícia federal não se arrisca a ir capturá-lo. Mattie deixa o irmão mais novo aos cuidados da mãe em estado de choque e contrata os serviços de um federal beberrão com muitas mortes nas costas, Rooster Cogburn (Jeff Bridges, mais uma vez excelente). LaBoeuf (Matt Damon, excelente quando tem espaço no filme) é um Texas Ranger que também está atrás de Tom a fim de ganhar uma recompensa. Um tanto do refinamento de LaBoeuf vai ser um contraponto da ranzinzice costumeira de Rooster. Em princípio LaBoeuf não suporta a determinação um tanto autoritária de Mattie, alguém que se fala muito em buscar o trabalho de advogados, está mesmo movida é pelo sentimento atroz de vingança.

“Valente” de Neil Jordan e “Menina.Má.com” de David Slade são filmes que se pode considerar “bem feitos”. Mas estes têm um defeito imperdoável: são francamente fascistas na defesa do sentimento de vingança até as últimas consequências. Enfim, são obras que eficiência técnica a parte merecem “bolinhas pretas”. Estão longe do estilo paródico de Quentin Tarantino que levamos e não levamos a sério ao mesmo tempo, exercitados em “Kill Bill Volumes 1 e 2”, “Prova de Morte” e “Bastardos Inglórios”, obras em que o espírito de vingança move as narrativas mas é muito mais um exercício de estilo do que uma convicção. E pelo excesso atingem certa hilariedade que suaviza paulatinamente sentimentos pouco nobres do ser humano.

Mattie está para receber uma facada no pescoço desferida por Tom. Com uma dádiva dos deuses, LaBeouf que estava há muito tempo fora do quadro, aparece e a salva, nocauteando Tom. Mas Mattie cai numa fenda onde temos várias cobras venenosas. Ela pede por socorro e Rooster que com sua “bravura indômita” já havia enfrentado quatro bandidos e vencido a luta, adentra o buraco e atira nos animais peçonhentos, mas um deles pica o braço de Mattie.

Deixando aflorar o sentimento de amizade que desenvolveu em relação a Mattie Rooster a leva à cavalo à procura de tratamento mas o animal cede ao cansaço. Uma casa tem a luz acesa. Uma pessoa aparece. Corte. Mattie já adulta, 25 anos depois, que já narrava a história desde o início é retomada como narradora e a vemos sem um braço, agora solteira, um tanto amarga , contando o destino que os companheiros de aventura tiveram.

É este final bastante irônico (que muitos podem interpretar como moralista) que ao seu modo redime os Coen de estar fazendo um western tradicional. Mattie que correu tantos perigos ao querer com todas suas forças interiores se vingar do assassino do pai, acaba sendo “justiçada” por seus baixos sentimentos ( outros dirão nobres....) por uma cobra.

Se não está à altura dos picos que os Irmãos Coen já atingiu, “Bravura Indômita” é um bom filme que corre o risco de se igualar ao fascismo e machismo típicos de muitos westerns mas que ao seu modo, consegue escapar desta armadilha.Ma non troppo.

Já deve ter dado para perceber que um dos meus valores com os quais “Bravura Indômita” briga é com a concretização de vinganças. Admito claro que os sentimentos de vingança surjam. Isto é bastante humano. Mas é humano também trabalhar estes sentimentos e deixar o que resta de justiça e leis fazerem o resto.

3) “Onde os Fracos Não Tem Vez” (EUA/2007) de Joel Coen e Ethan Coen

(O texto foi publicado originalmente no Jornal Montblãat. Aqui se encontra com correções, acréscimos, cortes e atualizações)

Nenhum Altar Para a Deusa Justiça

Quando Roman Polanski era presidente do júri do Festival de Cannes de 1991 comentou que o filme que gostaria de premiar junto com seus colegas era aquele que sem prejuízo da reflexão fosse também um ótimo entretenimento. É claro que até um árido filme como “Hitler: Um Filme da Alemanha”, dirigido por Hans-Jürgen Syberberg, com horas de câmera fixa, de “vanguarda”, mas também emulando técnicas dos primórdios da sétima arte como as de Meliés em “Viagem à Lua” (1902), pode ser uma forma de arte e entretenimento para uma mentalidade bastante intelectualizada, proporcionado grande prazer a quem o assiste. Mas não eram filmes como este que Polanski procurava. Como em boa parte de sua vasta e grandiosa obra, tendo o sucesso “Chinatown” como um dos seus momentos mais extasiantes (ainda que seu primeiro longa-metragem “A Faca na Água” seja uma obra-prima mais seca e difícil, como também o são “Repulsa ao Sexo” e “Armadilha do Destino”), o gênio franco/polonês almejava por um filme de comunicabilidade mais evidente e com grande apuro formal, técnico e artístico, não se esquecendo do gozo na fruição enquanto “espectador” mais do que como crítico, jurado ou cineasta. Sobre o crítico já chegou a dizer, ironicamente, que não passa de um colecionador de selos...

O júri acabou dando a Palma de Ouro de melhor filme para “Barton Fink- Delírios de Hollywood” (1991) dos irmãos Joel e Ethan Coen, um filme que se encaixou como uma luva nos ideais estéticos de Polanski, pois dialoga com sua própria obra, como vários outros desta dupla fantástica, ao cotejar o macabro dentro das relações humanas, com espírito crítico e agudo humor negro que se instala com sutileza. Este é um panorama mais geral. Nos detalhes as diferenças de estilo entre estes grandes cineastas se impõem.

“Barton Fink-Delírios de Hollywood” alavancou ainda mais a carreira dos Coen e se concentra na crise criativa de um dramaturgo prestigiado da Broadway, sucesso de público e de crítica, que aceita um convite para trabalhar em Los Angeles, tendo que obedecer a cânones comercialescos de um produtor a princípio compreensivo com a insegurança do roteirista principiante, que tem de trabalhar uma história que envolva luta livre e homens gordos com collant. Um homem instalado no mesmo hotel que o escritor, um “homem comum” como ele tanto adora mostrar em seus trabalhos, se envolve com ele numa ciranda de acontecimentos que beiram o surreal, gerando a inspiração para o roteiro que deve escrever.

A angústia do personagem Barton Fink no fundo revela afinidades eletivas e temas dos próprios Coen: dar vida ao que pode haver de incomum, grotesco, trágico, cômico, recorrente na vida de homens comuns da sociedade americana, quando algum elemento do cotidiano pode fugir das “alegrias catalogadas” (conforme Clarice Lispector) e desencadear o imprevisível trabalho do acaso, que parece ser muito mais fruto de um demônio brincalhão do que de um deus misericordioso, desordenando e redimensionando o que Ferreira Gullar chama de “a estranha vida banal”.

“Fargo” (1996), “O Homem Que Não Estava Lá” (2001) bem como o pioneiro “Gosto de Sangue” (1984), filme independente de baixíssimo orçamento para os padrões de Hollywood, grande prêmio do júri no Sundance Film Festival em 1985, obras essenciais na filmografia dos Coen, nos mostram personagens movidos pela ambição desenfreada e/ou vingança que arquitetam planos que os envolverão numa roda-viva, muitas vezes feita de sangue, violência, desespero, obstinação, crueldade, perseguições estilo gato X rato, etc..., num caleidoscópio de reviravoltas, sempre filmadas com notável plasticidade, delimitando com frescor, clareza e densa poesia visual, os seres prisioneiros de enrascadas as mais variadas.

“E o pássaro viu-se livre para ir em busca de uma nova gaiola”. Esta é uma pequena síntese da condição humana que nos dá Franz Kafka. Essa questão que também é uma angústia metafísica permeia a obra dos Coen. Há os imperativos morais categóricos driblados e vilipendiados. Homens fogem às suas responsabilidades éticas, movidos muitas vezes pelo mais vil e galopante argentarismo. Com os homens fugindo de uma gaiola para encontrar outra, as consequências dos seus atos humanos (ou muitas vezes desumanos), entretanto, são dificilmente abarcadas por o que se chama de “justiça dos homens”. Há uma força superior que tanto pode protegê-los como, o que mais acontece, ampliar seus becos sem saída.

“Onde os Fracos Não Têm Vez”, vencedor de vários prêmios da crítica americana, de sindicatos da classe artística dos EUA, Oscar de melhor filme , direção, ator coadjuvante para Javier Bardem etc. (apesar de fugir bastante do estereótipo do que se convencionou chamar de “filme do Oscar”), representa a maturidade artística dos Irmãos Coen, aquele filme em que forma e conteúdo se imbricam de forma ainda mais bela, contundente, envolvente e chega a ser até curioso que isto se dá quando eles não estão trabalhando com seus ótimos atores fetiches, como Frances McDormand, John Turturro, Steve Buscemi etc. A obra traça por metonímia, numa história ambientada numa localidade do Texas próxima à fronteira com o México, em 1980, um retrato agudo, visceral, assustador (definitivo e irreversível?), de uma sociedade em agonia ética, moral e espiritual que se afogou num oceano de materialismo empedernido e consumismo compulsivo, fruto de uma originária pseudo-ética tida como protestante, fundamentada em chavões como “In God We Trust”( ou seria Gold/Ouro?), “There is No Gain Without Pain”( “Não Existe Ganho Sem Dor”) que prometia construir a sociedade mais bem acabada do planeta, ainda que com imperfeições que uma entidade impalpável e caprichosa chamada mercado corrigiria o mais que pudesse.

Esta utopia da mediocridade foi sendo imposta como modelo ao restante do planeta, muitas vezes a ferro e fogo, guerras e golpes militares programados e insuflados ou até mesmo, conforme revelou Frances Stonor Saundeurs em “Quem Pagou a Conta? A Cia na Guerra Fria da Cultura” (Record/2008), por um insidioso e dissimulado investimento desta agência em instituições como a Fundação Ford, que patrocinaram intelectuais renomados ou não, para divulgar o american way of life mundo afora em palestras e/ou artigos em revistas “respeitáveis”. Afinal como os EUA não têm Ministério da Cultura era imperioso para a Cia fazer este trabalho, mesmo que sub-repticiamente, para se contrapor ao temido e famigerado poder do “ouro de Moscou” que circulava pelo planeta....

Há quem postule que “Onde os Fracos Não Têm Vez” comente o estado das coisas no mundo. Discordo. Como “Dançando no Escuro”( 2000), “Dogville”(2003) e “Manderlay”(2005) de Lars Von Trier, é dos EUA mais especificamente que se trata. Claro que vale a máxima de Léon Tolstói de que quanto mais se retrata a própria aldeia mais se torna universal e são inevitáveis os pontos de contacto com o que ocorre em outros países de um mundo que se proclama globalizado, mas odeia que certas pessoas cruzem fronteiras ( no filme comenta-se que os coiotes não vieram até os mortos mexicanos esparramados no chão porque não gostam desta carne...). Mas ao retomar a paisagem desértica do velho Oeste, no Texas, ícone de tantos filmes que já vimos do “gênero americano por excelência”, que é o western, os irmãos Coen nesta dolorida obra-prima, no fundo, de certa forma, celebram (se é que esta palavra é adequada) o funeral deste gênero em que de alguma forma, no último momento “o mocinho” dava um jeito de impor a lei mesmo que com a força das armas e capturava ou matava o “bandido”. Em relação ao Brasil, Caetano Veloso comentou numa de suas belíssimas letras/poemas: “Aqui tudo é construção é já é ruína”. Já os Coen parecem nos dizer: “O que pensávamos ser uma grande construção, perdeu-se numa trajetória de equívocos e hoje se mostra uma ruína”.

“Onde os Fracos Não Têm Vez” também alude ao fascínio/fetichismo que há na sociedade americana por armas como nos instigantes “Tiros em Columbine” (2002) de Michael Moore, “Na Mira da Morte” (1968) de Peter Bogdanovitch e “Elefante”(2003) de Gus Van Saint ( este de uma forma bem elíptica). No filme dos Coen, personagens manipulam armas como se estas fossem uma extensão natural do próprio corpo. Os Coen não nos poupam em muitos momentos dos efeitos “plásticos” dos tiros. Tirar balas e resíduos de disparos do próprio corpo passa a ter a naturalidade de quem faz as unhas das mãos e dos pés. A ausência de trilha sonora do filme amplia a tensão dos silêncios e dos tiros emitidos. Há apenas música quando aparecem mariachis no México cantando e nos letreiros finais.

No mundo de “Onde os Fracos Não Têm Vez” o que seria mais apropriadamente o chamado homem comum é Llwelyn Moss (Josh Brolin, excelente), um ex-veterano das intervenções catastróficas no Vietnã, soldador, aposentado, casado com Carla Jean (Kelly Mcdonald). Numa caçada de cervos numa planície deserta típica dos westerns clássicos, ele acaba após algum tempo de perscrutação, se deparando com “um panorama após a batalha”, onde se vê corpos de mortos caídos no chão e carros parados, com vidros estilhaçados, dispostos de forma transversal. O filme jamais nos explicará com detalhes o que de fato aconteceu e nem precisa. Ele se abre com uma narração em off do representante do poder público, o homem da lei e xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones, majestoso e comovente), nostálgico dos tempos em que seu pai e o avô, também na mesma atividade, impunham respeito à lei até mesmo sem armas.

Llwelyn se apodera de dois milhões de dólares de um homem morto ao pé de uma árvore, fruto de algo que deu muito errado, o que ele não compreende, tendo travado contacto humano apenas com um homem agonizante que lhe pede água sofregamente, o que ele não tem. Vendo no dinheiro fabuloso a grande chance de sua vida e da sua esposa, mesmo assim, com inquietações morais, Llwelyn volta para dar água ao suplicante como uma forma de reparação, o que não será algo pacífico. O que ele não contava é que um aparelho instalado por entre as notas colocadas numa maleta, um transponder, permite o rastreamento de suas movimentações por um perigosíssimo e suis generis psicopata, com sua arma cilíndrica de ar comprimido, com a qual pratica rituais sádicos e sanguinolentos, um dos personagens mais fascinantes e terríveis do Cinema (desde o canibal Hannibal Lecter de “O Silêncio dos Inocentes”-1991, de Jonathan Demme não vi nada igual ), Anton Chigurh, genialmente composto pelo grande ator espanhol Javier Bardem, com uma cabeleira típica dos Beatles em seus primórdios, uma das tantas ironias com que os Coen adoram rechear suas obras.

A Ed Tom Bell num clima de pré-aposentadoria, resta a missão inglória, feita com um misto de tédio, desencanto, melancolia (alguém com consciência crítica da própria impotência diante destes novos ares, deste novo país onde não há lugar para um homem “dos velhos tempos” como ele), de pelo menos tentar salvar Llwelyn de seu algoz perseguidor já que prender Anton é uma missão ainda mais titânica e escorregadia, uma tarefa de Hércules para a qual não enxerga em si mais “músculos”, tanto no sentido físico como psíquico e político-social. É isto que sintetiza o belíssimo título original do filme que é o mesmo do romance no qual se baseou, “No Country For Old Men” de Cormac McCarthy, traduzido no Brasil pela Alfaguara/Objetiva como “Onde os Velhos Não Tem Vez”. Esta não é a melhor tradução, mas é bem superior em exprimir a essência da obra do que o ridículo “Onde os Fracos Não Têm Vez”, que sugere uma ideia errônea do filme, uma visão proto-nazista da qual este passa longe.

Mesmo com a onipotência demoníaca de Anton que quer decidir se uma pessoa merece viver, impondo que ela jogue cara ou coroa com uma moeda, não se trata mais aqui de fracos e fortes. Não se pode dizer que os fortes tem vez. Por mais que haja quase que um caráter missionário de Anton que o move a espalhar o Mal, como uma maldição bíblica apocalíptica, matando pessoas com grande frieza, pragmatismo, com um olhar demencial e um sorriso zombeteiro, não se pode confundir suas baixezas e covardias com fortaleza. Já Ed Tom não é fraco. Simplesmente está imerso numa sociedade que promove a falência da boa vontade, da generosidade, da coragem e dos impulsos altruístas em nome de um espírito individualista atroz, travestido de ideologia básica e despojada de autoritarismo, onde o capital floresceria, numa falácia histórica com muitos adeptos. Llwelyn não negocia e se agarra com obstinação e leviandade à ideia de ficar com a dinheirama mesmo que ele e sua mulher corram sérios riscos de vida, o que não se pode chamar com propriedade de força.

“Onde os Fracos Não Têm Vez”, como é de hábito nos trabalhos dos Coen, é minimalisticamente calculado, com planos e angulações magníficos que se sucedem como se para tudo tivesse havido storyboards muito bem estruturados. Aumenta o fascínio pelo filme sentir que se fosse um roteiro original deles (como tem sido hábito) não nos soaria nada estranho. Eles transfiguraram o universo do romancista Cormac McCarthy, em temas autorais emblemáticos de sua poderosa obra. Por mais que os EUA sejam o iceberg, de onde vemos a ponta Texas, algumas questões quase que metafísicas se impõem, como, principalmente, no majestoso “O Homem que Não Estava Lá”. Neste um barbeiro descobre que a mulher tem um caso com o patrão dela e passa a chantagear este com uma carta onde ameaça tornar pública esta relação, querendo dinheiro para uma sociedade que pretende montar para sair de sua vidinha medíocre. Como é de hábito nos Coen nada sai como se programa. A ganância humana tem um custo alto. Mas há um diabolismo que gera o acaso e engendra surpresas para os personagens e o espectador que são sempre fascinantes, formando com a ambição desmedida uma combinação explosiva.

Para os Coen o Inferno certamente é aqui mesmo na Terra. A temperatura de seus círculos dantescos é que varia de região para região, de filme para filme. Nos chamados Estados Unidos da América, nos mostra estes travessos irmãos, a temperatura está elevadíssima e tem piromaníacos em cargos elevados. O fogo queima as almas incautas, desprevenidas, arrogantes ou até mesmo inocentes (se é que esta palavra ainda cabe neste contexto). Barack Obama foi eleito como uma tábua de salvação possível. Hoje este democrata de muitos planos se vê emparedado pelos republicanos. Será que ainda há meios, mantendo uma filosofia política primordial que já nasceu torta, para criar um país onde os “velhos homens” ainda tenham espaço?

Nelson Rodrigues de Souza

Ps1 Um ótimo contraponto à temática de “Onde os Fracos Não Têm Vez” é o bom “O Gângster” (EUA/2007) de Ridley Scott, da mesma safra, baseado na incrível história real de um mafioso negro do Harlem dos anos 70, Frank Lucas( Denzel Washington), que venceu com “galhardia” outros concorrentes poderosos no tráfico de heroína, que era processada com ótima qualidade de manipulação, com grande grau de pureza, vendida a preços baixos, tida como a “mágica azul”, vinda diretamente da Indonésia, escondida em caixões de soldados mortos no Vietnã, com a cumplicidade de autoridades militares americanas ( viés que o filme não desenvolve pois seria longo demais). Um policial incorruptível, Ritchie Roberts (Russell Crowe), autêntica flor do lodo em que circula, prende este famoso marginal. Com a contribuição deste, um esquema de corrupção colossal na polícia na área de narcóticos foi desbaratado. O gângster mesmo tendo várias mortes horrendas e “pedagógicas” em seu histórico de vida bandida foi solto 15 anos depois, saindo em 1991, anistiado pelos “altos serviços prestados”. É tudo verdade mesmo? Ficção? Qual é a regra? É uma exceção? Ainda há heróis como os do velho western? Ricardo Calil comenta na Bravo! de janeiro de 2008 que assim como o “lado empresarial” singular da vida de Michael Corleone ( da série “O Poderoso Chefão”) está sendo estudado em universidades americanas na área de economia, o mesmo vai acabar acontecendo com Frank Lucas, o “gângster americano”, conforme o título original. E o “lado empresarial” de Fernandinho Beira-Mar também vai ser estudado em universidades brasileiras?

Ps2 Pode-se vislumbrar um anti-americanismo no meu texto. É verdade. Não está camuflado.

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Nelson Rodrigues de Souza

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