domingo, 6 de fevereiro de 2011

O Divino Drama Humano


















O Divino Drama Humano

1- “Lixo Extraordinário” de Lucy Walker e co-direção de João Jardim e Karen Harley

Os trabalhos de Vik Muniz são inequivocamente extraordinários: eles não se restringem à belíssimas composições com lixos reciclados, mas também há rostos de meninos feitos com açúcar, divas de Hollywood construídas com diamantes, mapa-múndi feito de sucata de computadores, etc.

Vik teve como origem uma família pobre de São Paulo. Ganhou dinheiro como indenização após ter sido ferido numa briga e assim comprou passagem para os EUA, aonde chegou também a trabalhar com limpeza até conseguir estudar, produzir e ser o Vik que conhecemos, um artista consagrado internacionalmente. O que ele não esconde, permitindo que surja um tanto de vaidade onde poderia surgir hipocrisia. Assim, ele quis devolver um tanto do seu sucesso para os trabalhos de coleta de lixo reciclável de Gramacho, onde faria fotos que reverteriam para estes trabalhadores. Chegando lá suas ideias estéticas mudaram e ele, guiado pela entrega/sabedoria e simpatia de Sebastião, líder da Associação dos Catadores de Lixo Reciclável, pediu a vários trabalhadores com que foi adquirindo mais empatia para posarem para certas fotos que ele dirigia, como uma reconstrução do assassinato do revolucionário Marat numa banheira, uma senhora com bacia na cabeça, etc.

Depois de escolher as melhores fotos, elas foram ampliadas e colocadas num galpão, onde foram vistas por uma perspectiva do alto, o que estimulou a cobertura de certos espaços vazios das fotos por lixo reciclado. Fotografadas novamente surgem imagens de alto impacto estético realizadas com “lixo extraordinário”.

Vik Muniz e alguns catadores (especialmente Sebastião), mesmo que não se escamoteie as condições de vida precária em que se encontram e as moradias frágeis, esbanjam simpatia e empatia. Assim o trabalho flui com mais naturalidade. Vik compreende o ciclo do trabalho da região e o orgulho de que muitos se investem numa atividade que teria tudo para ser muito depressiva. Principalmente quando vemos um caminhão entornar tudo e sem terminar seu trabalho já ter gente subindo para ser os primeiros a coletarem as melhores “pepitas”.

Um dos defeitos do filme é ser um tanto didático. Mas como o trabalho dos catadores e suas metamorfoses levaram três anos para serem captados pelas câmeras, por três diretores, esse viés talvez fosse inevitável. Trata-se de uma co-produção Brasil/Inglaterra. João Jardim afirmou ter filmado sessenta por cento e que o trabalho de edição final de Lucy Walker foi fundamental. Karen Harley (pernambucana, montadora de filmes como “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Baixio das Bestas”) fez imagens adicionais.

Se julgarmos “Lixo Extraordinário” pelas suas imensas qualidades, eclipsando defeitos aqui e ali, entendemos o porquê do filme ser um dos finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Uma coisa fica clara do começo ao fim: Vik não está “usando” essa comunidade. De Vik um tanto onipresente, passamos a ter como protagonistas esses seres, heroicos à sua maneira, na descoberta de uma forma de sobrevivência em que nós, mais bem nascidos, encontraríamos só o horror.O filme mostra com todas as letras como o que foi ganho é revertido para os catadores, como emoção genuína. O que soa estranho no filme é a rapidez com que uma obra é apresentada num leilão de Londres e é logo arrematada. Este universo de valorização das obras de arte é muito mais estranho do que o dos catadores. Mas não foi Vik quem o inventou.

2- “A Última Estação” (Reino Unido/EUA/ 2010) de Michael Hoffman

Leon Tolstói (Cristopher Plummer, ótimo) em 1862 casa-se com Sofia Andreevna Bers ( Helen Mirren, sensacional) e instala-se na sua propriedade em Isnaia Poliana. Ali Tólstoi escreve algumas de suas obras fundamentais como “Guerra e Paz”, “Anna Karenina” e “A Morte de Ivan Ilitch” (1886), uma sombria visão da condição humana onde a saída está na espiritualidade. Tólstoi passa a enxergar um tolstoismo em que os valores espirituais sejam elevados, pessoas vivam em comunidade em sua propriedade, e obedeçam ao celibato. Vladimir Chertkov (Paul Giamatti) com seu tolstoismo suspeito instiga Tólstoi a deixar toda sua obra para a posteridade russa. Já Sofia se sente enganada com estas tramas e quer garantir a fortuna em direitos autorais para seus herdeiros naturais. Um briga onde não faltam alguns lances burlescos vai ser desencadeada entre marido e mulher.

Valentin Bulgakov (James Mcavoy) vem para a comunidade como assistente de Tólstói mas é incitado tanto por Sofia como pelo oponente Chertkvov à uma dupla espionagem, o que faz de uma forma desajeitada. Seu celibatarismo é quebrado com Masha (Anne-Marie Duff) que tem ideias avançadas que contrastam com o tolstoismo que em tese abraçou.

“A Última Estação” tem bela reconstituição de época, desempenhos soberbos de Helen e Cristopher, histórias paralelas que dão conta de como se dá esta utopia na prática, com um toque pré-hippies (descontada as visões opostas do papel da sexualidade na vida humana).

Uma poda em alguns elementos cômicos e um aprofundamento nas questões utópicas que envolvem o projeto de fim de vida de Tólstoi, o que o leva até a romper com a mulher e sair da propriedade, tornariam o filme melhor do que é. Mesmo assim ele é irresistível.

3- “Inverno da Alma” (EUA/2010) de Debra Granik

Nas Montanhas Ozarks do Estado do Missouri vive uma comunidade fechada com suas próprias leis, mas que não tem nada de utópico como a que Tólstoi queria construir ( vide texto anterior). O que impera ali são os segredos convenientes, o espírito de Máfia e a brutalidade “quando necessária”.

O pai de Ree (Jennifer Lawrence) envolvido numa atividade ilícita da comunidade, que é a fabricação de uma droga, desaparece. Segundo a polícia ele tinha colocado como penhor a casa da família para depois de ter sido preso gozar de liberdade condicional até o julgamento. Ree é avisada de que se o pai não aparecer, ela terá de abandonar a casa onde desempenha papel vital como alguém que não só cuida dos dois irmãos menores como também da mãe em estado de crasso desatino.

Ree com firme determinação percorre as casas de onde poderia ter notícias do pai. Depois de muita hesitação acaba tendo a colaboração do tio paterno (John Hawkes) que a tratou muito mal no início e tem no semblante uma misteriosa mistura de dor, culpa, medo e raiva.

Ree (interpretada com brilho por Jennifer) se mantém estoica o tempo todo absorvendo as negativas sem se desesperar ou desistir. O problema com o filme é mostrar esta característica de Ree em excesso. Depois de vários nãos o que se espera do filme são outros nãos, até que se chegue a uma virada de narrativa. Não sem antes uma cena de grande violência.

“Inverno da Alma” é um bom filme em todos os seus propósitos e meios, mas que se ressente de um brilho mais especial. Nada justifica grande entusiasmo, mas também nenhuma depreciação. O que mais nos assusta é constatar que em pleno século XXI haja uma comunidade americana tão fechada em si, decadente economicamente, onde a saída para muitos é se alistar nas forças armadas para ir lutar nas guerras em os EUA se envolve e envolve seus cidadãos. Uma das melhores sequências do filme se dá quando Ree tenta se alistar para conseguir dinheiro e é envolvida por um burocrático carinho do examinador, que compreende ao seu modo a fragilidade da condição dela.

4- “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Reino Unido / Tailândia / Alemanha / França / Espanha/2010) de Apichatpong Weerasethakul

Tio Boonmee está com grave insuficiência renal. Sentindo a iminência do fim nesta vida terrrena vai para uma casa próxima de uma floresta com a cunhada, sobrinho e auxiliares. À mesa recebe a visita da mulher que morreu e também do filho agora como um macaco peludo com olhos reluzentes, principalmente nas noites da floresta.

A palavra chave para sintetizar o filme muitos já utilizaram, mas é inevitável repetir aqui: naturalidade. É sob o signo da placidez combinada com esta palavra que o filme se constitui, ligando homens, animais e Natureza como fazendo parte de algo maior, mas que não se apresenta de maneira óbvia e em sequências de curvas dramáticas triviais. Conversando com sua mulher, agora um fantasma, Boonmee ouve que não se deve superestimar o céu. É no apoio dela sentado na cama que o filme constrói uma de suas imagens mais fortes e belas.

Nesta obra de forte inspiração budista, onde se acredita em reencarnações até mesmo na forma de animais, é natural que se crie uma grande sequência onde uma princesa envelhecida que vê sua imagem na água mais jovem acabe por transar num rio com um bagre.

Boonmee vai amparado através da floresta revivendo encarnações até chegar numa caverna. De elipse em elipse chegaremos a uma sequência onde um monge questiona sua vida, se dividindo até em dois. Se recordar vidas passadas também é viver, estar atento ao que este nosso mundo nos oferece também ( e principalmente) é.

5- “Cisne Negro” (EUA/2010) de Darren Aronofsky

Numa sinopse básica “Cisne Negro” se mostra atraente. Nina (Natalie Portman) é a favorita para estrelar uma nova versão de “O Lago dos Cisnes”. Ela está substituindo Beth ( Winona Ryder) já um tanto velha para o papel. O diretor artístico Thomas ( Vincent Cassel) enxerga em Nina toda técnica que ela precisa para o Cisne Branco. Mas não vê a segurança, impetuosidade, certa violência e sensualidade que Nina deveria ter para também interpretar o Cisne Negro. Nina se vê ameaçada com a chegada de Lily ( Mila Kunis) que tem os atributos que ela não tem. Nina terá de encontrar em si seu lado sombrio e nesta viagem pessoal acaba se psicotizando,com fortes delírios persecutórios. Sua mãe (Barbara Hershey) numa neurótica atitude de proteção acaba prejudicando ainda mais a filha.

O que derruba “Cisne Negro” ao chão são as bombásticas criações visuais e situações grotescas próximas de um filme de terror adolescente. Assim desfilam pela tela mutilações, cortes, arranhões, muito sangue,etc. Tudo sem a menor sutileza, justamente num filme sobre o universo do balé e seus bastidores, onde se espera no mínimo um tanto de delicadeza.

Há delírios que se insinuam persecutórios e irreais que quando mostram o seu avesso ficam até inverossímeis, caso de toda sequência que começa no bar com pó na bebida, passando por uma transa lésbica que pode causar sensação em parte da plateia e não tem muita razão de ser.

Os efeitos “fantásticos” paupérrimos são tais que quando chega uma cena de delírio importante e realmente atraente como o nascimento de penas negras enquanto Nina dança como o Cisne Negro, já por exaustão, não conseguimos admirar esta criatividade simbólica.

Depois da guinada na carreira que foi o muito bom “O Lutador” (EUA/2009) com Mickey Rourke esperava-se que Darren apostasse mais na simplicidade. Ele acaba nos surpreendendo, mas num sentindo bastante negativo. Influenciado por vários filmes, o mais onipresente é “Repulsa ao Sexo” de Roman Polanski. Mas que diferença de direção e concepção visual! Polanski é gênio. Darren, aprendiz ruim.

A grande surpresa do filme é que apesar do gosto duvidoso de tudo que se vê na direção e no roteiro, Natalie Portman acredita e muito no seu personagem e acaba sendo a âncora de interesse do filme. Caso contrário, com uma atriz que fosse no máximo mediana este seria insuportável.

6- “Um Coração Fraco”, adaptação de Dostoievski por Domingos Oliveira, direção de Priscilla Rozenbaum

Na Rússia do czarismo o jovem Vássia que tem um emprego como copista (Caio Blat) divide uma pequena casa com um amigo (Cadu Fávero). Vássia chega eufórico em casa por estar de casamento marcado com Lizanka (Isabel Guerón), uma grande paixão sua que estava antes comprometida com outro homem, mas acabou por fim livre para aceitar o amor do jovem.

Vássia tem muitos papéis para copiar e pouco tempo para curtir os momentos de felicidade intensa que está sentindo. O amigo o estimula a pequenos encontros com a amada e a também ficar acordado para realizar o trabalho que o jovem tem pela frente. Mergulhado na voragem da felicidade, Vássia vai descobrindo seu lado sombrio que tem medo dela e a vai boicotando, caminhando para um estado de espírito perigoso, maníaco, onde põe em risco a própria sanidade.

Ainda que seja fruto de uma novela de um jovem Dostoievski, “Um Coração Fraco” muito bem transposto para o teatro, com uma casa que gira para marcar a implacável mutação do tempo, contém inquietações que o autor discutirá melhor mais tarde: a opressão da burocracia do sistema czarista, a ideia de felicidade e sua volatilidade, os abismos da alma humana, etc.

Com grande delicadeza e atuação soberba de Caio Blat que compõe Vássia com toda sua insegurança e êxtase que vai se transformando em depressão, temos aqui um antípoda do que vemos em “Cisne Negro” (texto mais acima). Dostoievski sonda nosso lado sombrio com sobriedade, grande calor humano e acima de tudo: generosidade.

7- “R&J- Juventude Interrompida”- direção de João Fonseca

(O texto contém spoilers, ou seja, detalhes fundamentais da encenação são comentados para uma análise mais pertinente)

Quando estive em Nova York em 1998 li uma crítica de Vincent Canby (prestigiado crítico de cinema da revista Time durante anos) muito positiva de um espetáculo teatral Off –Broadway, onde 4 atores revezam-se e fazem todos os personagens de Romeu e Julieta de Shakespeare.

Quatro alunos de uma escola interna repressiva, quando se veem em momentos de liberdade, resolvem montar com os recursos que tem Romeu e Julieta. Assim, com um lenço vermelho, magnificamente simulam sangue, mortalha e outros elementos, dispensando figurinos de época e dispositivos cenográficos.

O espetáculo em momento algum era caricato. O espírito da tragédia se manteve do início ao fim. Quando o teatro termina, toca um sino e os jovens têm de voltar à rotina opressora. Tomado pelas emoções que vivenciou, o rapaz que fez Romeu se recusa a voltar a esta realidade.

Valendo-se da adaptação de Joe Calarco, mas ignorando suas sugestões para direção, criando como os atores seus próprios caminhos, o que poderia ser uma salutar opção de João Fonseca torna-se um tiro no pé.

Na versão brasileira elementos gaiatos e carnavalescos entram em cena, alguns deles como pretexto para homenagear outras versões de Romeu e Julieta como as de Gabriel Villela e Franco Zeffirelli. Temos então sanfonas, a repetição ostensiva de “A Time for Us”, etc. Assim são muitos os momentos de riso da plateia diante do que (mesmo sendo encenado por jovens de um colégio) deveria ser uma tragédia. Não consegui maior empatia com o espetáculo e não enxerguei ali a tragédia da precipitação que é Romeu e Julieta.

No final simplesmente toca o sino da escola e não há uma conclusão sobre os efeitos que a encenação da peça teria sobre os alunos. É forçoso reconhecer que as palmas da plateia são efusivas.

Curiosamente imaginei uma corrosiva crítica de Bárbara Heliodora no O Globo. Que nada! Bárbara adorou o que chamou de brincadeira. Vá saber......

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Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Nelson,

    Sobre "Lixo Extraordinário", talvez o didatismo que você critica tenha seu lado positivo. Observam-se discussões entre o artista, seu assistente e sua mulher em diversas fases do projeto, o que ilumina as etapas da realização do filme.

    Em um dado momento no início, Vik declara sua intenção de que, ao fim do processo de criação das obras, os catadores não digam "Vik fez isso", mas "eu fiz isso". Neste aspecto ele acerta em cheio, como se vê mais tarde pelas declarações dos catadores, em especial na visita à exposição no MAM.

    Já na impressão inicial de Vik e seus colaboradores de que os catadores estão confortáveis, e até orgulhosos de seu trabalho, há uma dose de ingenuidade. O que se observa com o desenrolar do projeto é que eles aceitam sem queixas o trabalho que fazem, mas não gostam dele de fato. A catadora Ísis fica mesmo determinada a jamais voltar ao lixão de Gramacho. Em uma discussão de Vik com o assistente e a mulher, eles demonstram que já se deram conta disso, e é bom que os espectadores o percebam também. Nesse ponto, se há didatismo, ele é altamente positivo.

    Há um lado um pouquinho esdrúxulo das discussões dos três serem em inglês (obviamente em função do filme) quando são todos brasileiros. Num momento a mulher do Vik se sai com um "deixa eu falar" em bom português, o que realça a artificialidade. Mas não é algo que diminua os méritos do filme.

    Sobre a rapidez com que uma das obras é arrematada no leilão em Londres, lembre-se que leilões são organizados com bastante antecedência; catálogos são distribuídos; potenciais compradores têm tempo de sobra para examinar as obras e pesquisar o retrospecto de cada artista. No dia do leilão em si, todos os participantes já sabem o que está ali, e quanto acham que vale, ou podem dispender. É para ser rápido mesmo, até porque em geral há muitos lotes a serem negociados.

    No geral, um excelente documentário.

    Claudio

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