segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Homens de Coração de Uva Passa














Homens de Coração de Uva Passa

(O texto contém spoilers, ou seja, detalhes do documentário “Trabalho Interno” são revelados para a análise pretendida)

Uma das tendências do documentário contemporâneo é questionar os limites entre realidade e ficção. É o que acontece em “Santiago” (Brasil/ 2006) de João Moreira Salles (Santiago vive num mundo poético que cria para si, com valores bem próprios que a outros pode não valer nada), “Jogo de Cena (Brasil/ 2007) e “Moscou” (Brasil/ 2009) de Eduardo Coutinho, “Na Captura dos Friedmans” (EUA/ 2003) de Andrew Jarecki ( aqui por uma dificuldade inerente à própria perscrutação do diretor), “Terra Deu, Terra Come” (Brasil/ 2010) de Rodrigo Siqueira etc.

Em “Trabalho Interno” (EUA/2010) de Charles Ferguson temos pessoas que em tese seriam elite econômica da sociedade americana que criam um mundo financeiro de péssima ficção, o vendem como se fosse verdadeiro, provocam a maior crise nos EUA com consequências mundiais, desde o Crash da Bolsa de Nova York em 1929 e ao serem entrevistadas criam um novo mundo de ficção como se fossem inocentes e o que aconteceu não lhes provoca nenhum arrependimento, culpa e tudo seria decorrência de fatores inerentes a questões de risco normais que envolvem o mundo econômico. Em matéria de realidade/ficção não vimos nada parecido antes. Este é o maior mérito do documentário de Ferguson ao desnudar paciente e meticulosamente este universo perverso mesmo que incorra num excesso de entrevistas e explicações que o espectador neófito em economia tenha certa dificuldade em acompanhar. Mas o sentimento geral de desalento diante de um mundo em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, que é o mais importante, o filme passa tranquilamente. Em sua última parte um novo mundo de ficção se instala. Barack Obama, do partido democrata, eleito com bandeiras contra este estado de coisas, acaba justamente se cercando de pessoas que estiveram direta ou indiretamente envolvidas neste jogo de “faz de conta” premeditado que custou ao mundo R$33,2 trilhões.

“Trabalho Interno” (um título ao pé da letra para “Inside Job” que pouco significa e teria sido melhor se fosse algo como “Informação Privilegiada”) começa nos mostrando a crise abissal na economia antes próspera da Islândia que seguiu relatórios de consultorias precárias americanas, que orientava seu governo a promover forte desregulamentação dos bancos financeiros, o que provocou uma falência sem precedentes em seus esteios econômicos.

Desde a crise de 1929 os EUA passaram a controlar seu setor financeiro. Com a ascensão de Ronald Reagan ao poder em 1981 e a supremacia do reaganomics inspirado pelo thatcherismo da Inglaterra houve uma desregulamentação do setor financeiro que atravessou os governos de Bush pai, Bill Clinton, Bush Júnior chegando até Barack Obama. Por mais que houvesse alguns sinais da crise vindoura (poucos por sinal), como havia quem lucrava muito de forma insensível ao que aconteceria depois, o jogo deliberado continuou e eclodiu em 2008 uma crise econômico-financeira nos EUA, com consequências no mundo todo, que remeteu ao desastre de 1929.

Ferguson é um intelectual, ex-palestrante de universidades como Berkeley, MIT( Instituto de Tecnologia de Massachusets), se tornou milionário com a indústria de software nos anos 90. Antes deste filme em questão já havia conseguido prestígio com “No End Sight” que aborda as razões para Bush Jr. invadir o Iraque. Seu grande preparo intelectual é a fortaleza de “Trabalho Interno”, mas também certa fraqueza pois ele superestima um tanto a capacidade do espectador de absorver tantas informações em tão pouco tempo. Mas é um filme que merece ser revisitado e estudado nas mais diferentes áreas, principalmente na econômico-financeira para que não se continue formando “homens de coração de uva passa”, uma expressão muito feliz de Luiz Fernando Veríssimo. Isto não impede que entre estes homens haja também mulheres.

Ferguson entrevista políticos, jornalistas, personalidades do mundo financeiro e acadêmico. A promiscuidade e conivência entre estes universos são revoltantes. Por exemplo: acadêmicos rodeados por seus livros alegam não terem pressentido a crise em seus estudos, mas sabe-se que ganharam polpudas quantias em consultorias para os grupos financeiros. Pessoas de governo alegam que não poderiam ter intervido no sistema financeiro desregulado. Há aqueles que saem deste sistema, riquíssimos e se tornam membros do governo. O filme não economiza imagens aéreas da pujança econômica de Nova York, enquanto em Wall Street era gestado o ovo da serpente da crise. Somos também confrontados com a riqueza acumulada de financistas que não tem um só avião, mas vários, bem como iates imensos. Um psicanalista nos fala da imersão num mundo de cocaína e prostituição em que altos/médios executivos se instalavam para “melhor” alavancarem as suas pilhagens financeiras, vivendo do risco e de alta impulsividade. Uma prostituta relata como seus clientes executivos de todos os escalões a procuravam e ela assinava papéis para que os custos fossem contabilizados como outras atividades.

A chamada bolha imobiliária foi tamanha porque até mesmo pessoas sem condições de comprar casas eram instadas a fazerem e refazerem hipotecas, havendo então especulações com este dinheiro virtual trazendo milhões aos financistas e quando a crise de 2008 eclodiu com a inicial quebra do grupo Lehman Brothers, seguida do Goldman Sachs e Bear Stearns, muitas pessoas perderam empregos e suas casas. O filme nos mostra imagens contundentes de pessoas que do sonho passaram a viver em tendas.

Um dos entrevistados pondera algo deste teor: um engenheiro que constrói uma ponte faz algo bastante concreto, mas ganha bem menos do que um engenheiro do setor financeiro que vende sonhos que podem se transformar em pesadelos. Uma ministra da França da área econômica havia previsto que vinha por aí um tsunami. E as vozes nos EUA, com honrosas exceções como o Prêmio Nobel de economia Paul Krugman, colunista do New York Times, por que se calaram?

Na SEC (Securities and Exchange Commission), órgão similar à brasileiro CVM (Comissão de Valores Imobiliários) havia uma só pessoa. Não é à toa que Eliot Sptizer, ex-procurador geral e depois governador de Nova York, um dos poucos a ter enfrentado este establishment de grandes especuladores acaba por concluir que quem governa mesmo é Wall Street.

Algumas pessoas entrevistadas como que ignoram as perguntas e tergiversam. Uma delas chega a dizer que se soubesse do teor das perguntas não teria dado a entrevista e que o entrevistador só terá mais três minutos para concluir seu trabalho. Outras pessoas que aparecem em vídeos se recusaram a dar entrevistas e o filme nos informa isto com clareza. Dentre elas: Henry Paulson (ex-executivo-chefe da Goldman Sachs e secretário do Tesouro na maior parte da crise de 2008); Larry Summers (ex-secretário do Tesouro e alto assessor econômico de Obama).

O Federal Reserve (o Banco Central Americano) que poderia ter agido diante da iminência do caos fez vista grossa diante de tudo, o que nos conduz a deduzir seu alto grau de irresponsabilidade e cumplicidade ou numa palavra mais forte: corrupção.

“Trabalho Interno” se ressente do excesso de informações quase que ininterruptas, não dando tempo suficiente às vezes para o espectador assimilar quem é quem no quebra-cabeça da infâmia, o que tolhe sua possibilidade de ser uma obra-prima do gênero documentário. Mas sua grande importância na filmografia documental recente é patente.

O filme tem uma narração sóbria e precisa de Matt Damon. Em alguns momentos o horror econômico atinge o humor negro: quando perguntam “Por que não fazem investigação” há quem responda “Por que acharão os culpados....”

O filme meticulosamente nos apresenta através de gráficos o quanto a fortuna de vários especuladores cresceu com a crise mesmo com a quebra dos bancos, o que nos remete à visão de Bertold Brecht em “Mãe Coragem e seus filhos” em que alguém sempre está lucrando mesmo em crises/guerras, a não ser que o planeta exploda de vez. Mesmo neste caso há aqueles responsáveis que poderão fugir antes em naves espaciais sofisticadas...Não me perguntem o que eles podem estar carregando...

Dividido em partes precisas, a última trata de perspectivas diante da crise, o resultado é assustador e damos razão a quem inspirou o cartaz do filme a inscrever algo do gênero: “Mais aterrorizante que Wes Craven e John Carperter”... Que esperança temos que os efeitos da crise sejam suplantados e não hajam outras, quando temos no governo Obama as seguintes criaturas ocupando hoje cargos estratégicos e que foram causadoras direta ou indiretamente deste imbróglio financeiro nefasto: Henry Paulson ( ex-secretário do Tesouro; Ben Bernanke ( presidente do FED); Timothy Geithner ( atual Secretário do Tesouro)?

“Trabalho Interno” paradoxalmente, repito, mesmo com defeitos, mesmo com suas limitações, é um filme imprescindível, um documento de uma época que gostaríamos de ver bem para trás, mas que ainda paira sobre nós pois os fundamentos de tudo ainda estão intocáveis. É uma obra que poderia receber o título de uma peça anterior à “Navalha na Carne” de Plínio Marcos: “Reportagem de Um Tempo Mau”.

Ps1. Para ter nomes e cargos precisos bem como algumas informações específicas me vali dos textos associados aos seguintes links:

http://ultimosegundo.ig.com.br/oscar/trabalho+interno+disseca+bastidores+da+crise+financeira/n1238017884890.html

http://cinema.uol.com.br/ultnot/reuters/2011/02/17/trabalho-interno-disseca-crise-de-2008-e-disputa-oscar.jhtm

Ps2 “Trabalho Interno” é um dos concorrentes ao Oscar de documentário em 2011. Torço para “Lixo Extraordinário” ganhar. Mas se “Trabalho Interno” vencer não terei razões para ficar triste.

http://migre.me/3VfTP

http://migre.me/3VfXY

http://migre.me/3Vg2I

http://migre.me/3Vga6

http://migre.me/3VgcQ

http://migre.me/3Vgfi

http://migre.me/3VgjD

http://migre.me/3VgoG

http://migre.me/3Vgv4

http://migre.me/3VgxX

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http://migre.me/3VgGz

http://migre.me/3VgOH

Nelson Rodrigues de Souza

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