quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Maldade e a Bondade Que se Escondem nos Corações Humanos




Em torno de três anos colaborei com o jornal eletrônico Montblät (e depois site) capitaneado pelo grande jornalista Fritz Utzeri. Fritz havia saído do Jornal do Brasil, pois já se insinuava a sua decadência, o que está mais do que confirmado agora em que teremos só a versão eletrônica do jornal. Uma grande perda para a cultura brasileira. “Pior do que não ler jornais, é ler um só”. E é a isto que estamos condenados na cidade do Rio de Janeiro.

Fritz não se adaptaria a O Globo e partiu para um trabalho independente que chegou a acabar, o Montblät, mas agora foi retomado. Não mais colaboro com o jornal eletrônico, pois tenho outros planos. No início, quando fui gentilmente convidado para escrever no Montbläat apostei na idéia de que os leitores gostariam de textos minuciosos onde eu avisava que havia spoilers (detalhes importantes de filmes foram revelados), mas estes leitores não aprovaram a idéia. Senti-me então impelido a fazer então textos mais curtos evitando spoilers.

Entre os textos que escrevi, um dos que mais gosto é este sobre a obra de David Cronenberg que vai adiante, com algumas correções. Aos poucos vou colocar no Blog textos que ainda julgar pertinentes. Espero que vocês gostem também.

Nelson

“Senhores do Crime” de David Cronenberg

A Maldade e a Bondade que se Escondem nos Corações Humanos

O cineasta e ensaísta Paul Schrader (de “Mishima:Uma Vida em 4 Tempos”, “O Gigolô Americano”, roteirista do clássico “Taxi Driver” de Scorsese, dentre outros feitos) associa o trabalho de um diretor de cinema ao de um parteiro. Já o crítico de cinema seria um legista. Ou seja, um dá vida a uma obra de arte. O outro ao “examiná-la” age como se desvendasse as entranhas da obra de arte enquanto um corpo “acabado”.

David Cronenberg (como Bergman, Antonioni (“geômetra cartesiano dos sentimentos humanos”, conforme já o denominaram), Hitchcock, Buñuel e mais recentemente o malaio radicado em Taiwan, Tsai Ming-liang, dentre outros) é ao mesmo tempo um grande parteiro criador e um grande legista que revira seus personagens do avesso. Valendo-nos de uma feliz expressão do crítico musical Tárik de Souza para um livro de poemas seu, adaptando-a para o plural, Cronenberg é da dinastia nobre dos cineastas que fazem autênticas “autópsias em corpos vivos” que recria na tela, segundo uma ótica inconfundível. Sua obra é repleta de personagens captados em sua solene bizarrice, suas metamorfoses, suas identidades ambíguas e escorregadias, suas esquizofrenias, seus mundos virtuais, suas premonições, seus cigarros que queimam a pele, seus vídeos com torturas e assassinatos para deleite alucinatório, etc..., com explicitação dos fluidos e traumas do corpo como o sangue, vômito, miolos e veias arrebentadas de cérebros explodindo (como no fabuloso “Scanners- Sua Mente Pode Destruir” -1981), feridas, cortes, ossos expostos, vísceras, unhas arrancadas e outras características mais impactantes. Tudo isto o torna um cineasta muito especial, onde uma aparente frieza de “homem de ciência” esconde emoções bastante fortes e sutis e um intrincado e perverso jogo social que se instala com regras que muitas vezes não são nada claras e limites que são esgarçados ao máximo.

Em “A Mosca” (1986) temos um dos filmes mais “repulsivos” já feitos pelo que explicita, mas imantado do “belo horrível”, sendo um dos mais fascinantes pelas questões que sugere e levanta, dentro do universo “o feitiço volta-se contra o feiticeiro”. Em “eXistenZ” (1999), não lançado comercialmente no Brasil ( nem em DVD) pessoas entram em mundos virtuais sucessivos em que a realidade se torna movediça, impalpável, ininteligível. Um mundo futurista avançado onde se convive com répteis e anfíbios mutantes, havendo ligações com cordões umbilicais a uma espécie de placenta, possibilitando aos seres participarem de jogos que mal compreendem no universo de eXistenZ. Este é um dos melhores, mais perturbadores e originais filmes de ficção científica já feitos. “Videodrome- A Síndrome do Vídeo” (1983) não fica abaixo em qualidade: é uma obra premonitória do nosso mundo onde não se sabe mais onde começa e termina o homem e onde começa e termina a televisão. Estes universos se fundem, se confundem, com alucinações sucessivas que contagiam personagens e até mesmo a nós espectadores.

Sobre “Senhores do Crime” (EUA/Canadá/Inglaterra/2007), um trabalho que rima com “Marcas da Violência” (2005) em muitos aspectos, mas não deixa de ser um novo Cronenberg, estamos num território mais palpável que outros filmes mais antigos. Mas um exame atento nos conduzirá ao Planeta Cronenberg, pois se trata de um filme de um grande cineasta do cinema contemporâneo com temáticas recorrentes (a principal delas talvez seja a questão sobre o que é a identidade de um homem, o que a forma, o que a conforma, o que a deforma..) que fazem dele um autêntico autor na acepção dos tempos áureos do Cahiers du Cinéma , mesmo que seus dois últimos trabalhos citados, “gêmeos não univitelinos”, tenham na superfície um aspecto mais hollywoodiano.

Em “Marcas da Violência” tem-se uma antológica cena final, com a restauração da ordem (ou da desordem?) social e familiar depois de muita violência, seqüência que é feita com uma simplicidade impressionante, mas nem por isso isenta de nos provocar grande emoção. Em “Senhores do Crime” temos uma longa seqüência de luta numa sauna com o protagonista Nikolai nu, de tal forma que os movimentos do seu corpo ensangüentado são submetidos a uma vibrante, belíssima e incômoda coreografia que aproxima o filme dos Cronenbergs que mais conhecemos, como por exemplo, o de “Crash-Estranhos Prazeres” (1996). Neste, os personagens só transam mediados por situações associadas a acidentes, com muletas, parafusos e próteses e passeiam por carros acidentados numa estrada como se estivessem vendo uma instalação, uma obra de arte, numa crítica contundente indireta à mecanização das relações humanas, algo que é feito sem nenhum moralismo e com uma coragem tal que o filme estreou no Brasil bem antes dos EUA.

Com a desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a antiga KGB passa a ser a SSB e proliferam as máfias russas mundo afora. “Senhores do Crime” nos leva a um passeio pelos meandros da organização criminosa citada instalada em Londres, com paisagens que fogem dos cartões postais habituais. Tatiana (Sarah-Jeanne Labrosse), com 14 anos aproximadamente, morre no parto de sua filha. Aqui já temos a dualidade vida e morte explicitada em nuances potentes com o bebê todo embebido em sangue provando da vida e a mãe falecida. A enfermeira Anna de descendência russa (Naomi Watts, ótima como sempre) descobre dentro de um diário da jovem morta, um cartão de um restaurante. Indo até este local depara-se com um primeiro enigma, o dono do estabelecimento que serve de fachada para uma rede de prostituição e tráfico de drogas (a “vory v zakone”), o simpático Semyon (Armin Mueller-Stahl), num ambiente bastante familiar e festivo.

Anna passa a ter contacto também com Nikolai (Viggo Mortenson), motorista deste clã da máfia russa que tem relações afetivas ambíguas, no limite do homoerotismo com o filho de Semyon, o instável Kirill (Vincent Cassel). Kirill manda matar Soyka (Aleksander Mikic), através do barbeiro Azim( Mina E.Mina) pois Soyka estava causando problemas ao mimado filho do “chefão”, inclusive com citações à sua sexualidade desviante da “norma” hegemônica. Retaliações são armadas. O tio de Anna, Stepan (Jersy Skolimovski ,um grande cineasta que trabalhou no roteiro de “A Faca Na Água” de Polanski e foi o diretor de “Ato Final”, grande filme de 1970, dentre outros) entende russo e passa a traduzir o diário deixado por Tatiana. Ela foi estuprada por Seymon para mostrar ao filho como se transa com uma mulher, dentre outras perversidades em mente e a criança que nasceu tem o DNA dele. Esta descoberta de Anna acaba comprometendo-a e ao tio, o que faz com que o misterioso Nikolai tenha de tomar decisões perigosas.

Em “Spider-Desafie a Sua Mente” (2002) tem-se uma história narrada por um esquizofrênico que se instala numa pensão após longo internamento. Com a marca Cronenberg temos um fabuloso estudo de uma tentativa de construção desesperada de uma identidade onde as aparências enganam sim. “Senhores do Crime” concentra mais esta questão da identidade, principalmente, na personalidade de Nikolai (numa grande composição contida de enormes sutilezas de Viggo Mortensen, ainda melhor do que em “Marcas da Violência”), um ser capaz de cortar os dedos de um cadáver, ajudar a jogá-lo no rio, mas também de promover mudanças benignas significativas no rumo das histórias paralelas que correm, pondo em risco a própria vida.

Em entrevista da Reportagem Local da Folha de São Paulo, Cronenberg explica muito bem aspectos do seu projeto plenamente logrado:

“O crime é sempre fascinante porque os criminosos vivem em constante estado de transgressão. Eles estão além da sociedade, ainda que aparentem fazer parte dela. Trata-se, igualmente, de uma história multicultural. Toronto, a cidade em que vivo, como Londres, o local em que a história transcorre, orgulham-se de ser cidades multiculturais. Ao contrário dos EUA, ao desembarcar em qualquer uma delas não é preciso abandonar sua cultura e sua herança nacional. A cultura de todas essas comunidades cujas atividades giram em torno do crime é a de seus países de origem”

Os mafiosos estão repletos de tatuagens exibidas com orgulho. Nikolai também tem as suas e faz por merecer outras que o filiam com força à “vory v zakone”. Sobre estas “marcas da violência” Cronenberg as define muito bem na reportagem citada:

“Com essas tatuagens, surge a impressão de que o corpo conta uma história.
Elas são o elemento visual mais importante. E a metáfora do completo envolvimento com um código, uma ideologia.”

David Cronenberg consegue fazer alguns filmes que se comunicam muito bem com o grande público, outros nem tanto, mas que não deixam de trazer leituras cada vez mais ricas a cada nova visão de suas obras. Se as sinfonias de Ludwig van Beethoven são para serem ouvidas sempre, com renovado frescor, captando-se tessituras, harmonias, sonoridades, antes insuspeitadas, com os grandes filmes de modo geral, o mesmo acontece. Com Cronenberg, um dos gigantes do cinema contemporâneo as descobertas acabam sendo maiores ainda nas revisões. “Spider- Desafie a Sua Mente” (2002), por exemplo, se esconde bastante numa primeira visão revelando com grande força sua enorme complexidade nas revisões que se promover, com um trabalho divino de Ralph Fiennes como protagonista e Miranda Richardson interpretando três personagens magnificamente.

A obra máxima de Cronenberg é provavelmente o maravilhoso “Gêmeos- Mórbida Semelhança” (1988), uma das obras incontornáveis do cinema do século XX. Nele podemos fazer uma forte leitura política que provavelmente o diretor intuiu e deixou fluir com sua força de artista maior. Se há uma seqüência emblemática do kafkianismo galopante a que estamos submersos hoje num mundo onde, nos lembrando de Ernesto Sábato, “o homem do século XX (e por extensão do XXI) é um gigante técnico mas um infante ético” e “a maior catástrofe contemporânea é a HEGEMONIA ( grifo meu) da ciência”, enfim se podemos nos ver numa seqüência síntese de toda esta problemática ela está em “Gêmeos....”. Vejamos o porquê adiante.

Um casal de gêmeos idênticos (genial criação de Jeremy Irons, onde depois de certo tempo aprendemos por gestos e olhares sutis a saber quem é quem, mesmo quando os dois contracenam juntos) cresce sem que eles construam uma identidade própria, numa grande interdependência, seguindo ambos a carreira de ginecologistas com bastante sucesso e até dividindo entre si as paqueras que fazem. São intelectualmente desenvolvidos e emocionalmente retardados. Uma cliente tem o útero tripartite o que passa a despertar grande interesse neles. Ela acaba sentindo que um é diferente do outro em certos aspectos. Um deles se apaixona por ela. O pacto tácito entre os irmãos é quebrado e os gêmeos caem numa instabilidade emocional atroz. Um deles enlouquece, rouba dispositivos médicos de uma exposição de artes plásticas e com estes equipamentos falsos examina uma cliente. Esta sente uma dor horrível. Ele com bastante energia manda-a se calar, pois afinal ele é médico e sabe o que faz! Ela com dores atrozes acaba se conformando ( afinal ele é o dono do saber...). Não é este o nosso mundo de hoje, com tantos “truques mau feitos dos magos e o chicote dos domadores”? Não “somos todos iguais nesta noite”, nestas trevas que se abate sobre a Terra, conforme Ivan Lins e Victor Martins comentavam sobre a ditadura militar brasileira mas que agora ganha significados ainda mais perigosos, porque mascarados por legiões de capatazes, de “gravata, farda, batina ou avental”?

Em matéria de Luiz Carlos Merten no O Estado de São Paulo, Cronenberg explica de forma preciosa seu trabalho com os atores, sempre excelente:

“Um ator é antes de mais nada um corpo. O físico é seu instrumento de trabalho. Quando um cineasta filma um ator, o material sensibilizado pela película - ou mesmo que fosse a tecnologia digital - não tem nada de abstrato. É uma matéria viva, com nervos, músculos e contornos.”

Cronenberg flagra estes corpos em mutações explícitas ou camufladas criando uma obra conjunta das mais expressivas da História do Cinema e que acabam impregnando nosso inconsciente, nos provocando inquietações políticas, sexuais, psicológicas, sociais, psicanalíticas, antropológicas, etc..., mas mantendo sempre uma aura de mistério que é fundamental e provavelmente indecifrável. Somos um teorema que não se provará jamais, tantas são as indeterminações de que somos feitos. Daí a loucura de um mundo que se propõe a medidas higienizadoras, o fracasso monumental destas tentativas de catalogação do ser humano, seja enquanto consumidor, cidadão, discípulo, empregado, espectador, eleitor, ou outra etiqueta que se queira. A máfia russa de “Senhores do Crime” também ao seu modo tenta catalogar pessoas, com tatuagens e outros ritos. O fiasco é retumbante.

“XXY” (Argentina/2007) de Lucia Puenzo é um bom filme que resulta no conjunto um tanto acanhado, com indecisões nos personagens que se refletem na direção. Alex é um ser hermafrodita para quem o pai biólogo não autorizou uma operação quando nasceu (o pai o julgou um ser perfeito no seu grande amor pela cria). Assim Alex cresce como um ser com pênis e vagina, tendo ainda seios. Numa relação com um rapaz com tendências homoeróticas (filho desprezado de um cirurgião plástico que visita a família de Alex em seu exílio no campo), a hermafrodita passa a ser ativo na relação com o parceiro, sentindo os dois grande prazer. Alex decide não mais tomar remédios como cortisona para evitar que a barba cresça. Quer que a natureza decida o que ele vai ser e não a ciência.

Este bom, delicado e sensível “XXY”, mas limitado, nas mãos de um Cronenberg, solicitando a mudança do roteiro (conforme fez com o primeiro tratamento de “Senhores do Crime”) daria com certeza um filme muito mais instigante e profundo sobre este tema de complexa identidade de gênero.

Se Cronenberg fosse um poeta das letras, no que diz respeito à economia de linguagem, estaria mais próximo da secura, da “educação pela pedra” de João Cabral de Melo Neto do que da transbordante energia, do derramamento de Fernando Pessoa (Fellini está mais próximo deste). Mas atenção: Cronenberg não é um engenheiro ou matemático assim como João Cabral também tem muitas sinuosidades em seus poemas conforme já apontou Ferreira Gullar. Cronenberg parece ter lido “Água Viva” de Clarice Lispector onde ela deixa bem claro: “Já aprendi matemática que é a loucura do raciocínio, mas agora quero o plasma, quero alimentar-me diretamente da placenta”. Uma placenta é o que é o cinema de Cronenberg onde ele e nós nos alimentamos direta e fartamente.

David Cronenberg é um artista do cinema ( assim como, guardadas as devidas proporções, Nelson Rodrigues e Jean Genet na dramaturgia universal, dentre outros) que tendemos a rotular de doentio, o que é um grande equívoco. Cronenberg (assim como Nelson, Jean Genet e outros) se deixam aparentemente contaminar pelas doenças do mundo para melhor nos expor a elas, nos aturdir com perplexidades as mais variadas. Não é um simples pour épater le bourgeoisie. Há um projeto bastante consistente, em parte consciente e por outro lado inconsciente (“uma parte de mim é permanente, outra parte se sabe de repente, traduzir uma parte na outra parte que é uma questão de vida e morte, será arte?” nos lembra Ferreira Gullar). Este resultado que aflora “isolando” personagens e situações, para que os compreendamos melhor, revela a doença de uma civilização. Será esta curável, determinada social e politicamente ou será atávica, permanente, arquetípica? Ao sairmos de um filme de Cronenberg não somos mais os mesmos. Há de certa forma uma “invasão de nossos corpos”, sofremos mutações. Acredito eu que para melhor. “A luz nasce da escuridão” em que seu cinema nos mergulha. Experimentem. Vale muito a pena.

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Ps “Senhores do Crime cuja melhor tradução para o título original deveria ser “Promessas do Leste” só foi indicado a melhor ator ( Viggo). Merecia muito mais. Mas se a Academia se curvou ao hipertransgressivo “Onde os Fracos Não Tem Vez” dos irmãos Coen, seria exigir demais que seus membros se curvassem também diante do genial e essencial Cronenberg.

Nelson Rodrigues de Souza

sábado, 10 de julho de 2010

Seriam os Bonequinhos, as Estrelinhas e Cotações Diretas Dados aos Filmes Algo Ridículo, Um Mal Necessário ou Algo Mais?




O célebre crítico de teatro Yan Michalski, que escreveu durante anos no Jornal do Brasil nos seus áureos tempos, sempre resistiu quando lhe propunham dar signos de valoração aos espetáculos. Acreditava Yan (com certa razão) que esta atitude desestimularia o leitor a meditar sobre os textos que escrevia e tirar suas próprias conclusões. De minha parte considero os signos um mal necessário. Sim: existe o perigo de que Yan nos fala, mas também há grandes vantagens nestes signos. Eles ficam mais facilmente na memória dos leitores do que os textos e os leitores preguiçosos pelo menos terão algum dado crítico sobre os filmes. Mas a maior vantagem desta atitude, creio, está nos quadros com vários signos segundo a mesmas convenções que podem ser construídos, com posicionamentos de diferentes críticos e personalidades do mundo das artes. È algo que pode ser encontrado no site eletrônico Contracampo (http://www.contracampo.com.br/) e que havia no site Cinequanon (http://www.cinequanon.art.br/). Este último parou com as cotações não sei o porquê.

A Folha de São Paulo tem inúmeros críticos de cinema (um tanto excessivos pelo meu gosto) e se furta a apresentar um quadro comparativo de cotações, o que permitiria ao leitor relativizá-las. Por exemplo, o excelente “O Pequeno Nicolau” de Laurent Tirard foi muito mal recebido por André Barcinski. Na ausência de outras críticas, um quadro que relativizasse as diferentes visões poderia ser bastante útil ao leitor e mais justo com o filme. Claro que os espectadores devem sempre desconfiar do que lêem e ( utopicamente) conferir tudo. Mas sabemos que a maioria não tem tempo, dinheiro e gosto para fazer isto. Da forma como foi feita, a Folha prestou um desserviço aos seus leitores que acreditarem na crítica.

Em O Estado de São Paulo temos dois críticos de cinema: Luis Carlos Merten e Luiz Zanin Oricchio há anos. Há um bom contraponto entre os dois, pois nem sempre concordam. Merten é mais receptivo ao cinemão hollywoodiano. Zanin tem mais restrições a este cinema e visão diversa sobre outros filmes. Isto não impede de concordarem muitas vezes. Mas O Estado de São Paulo se ressente também de um quadro onde se possam ter outras cotações diretas (ótimo, bom, etc...) sobre as obras, o que poderia ser feito com manifestação de outros profissionais da área de cultura da casa.

O jornal O Globo há anos tem o clássico bonequinho em diferentes estados de espírito. Às vezes há duas críticas para o mesmo filme, chegando a haver casos em que o bonequinho aplaude de pé e outro vai embora, para um mesmo filme. Mas isto é pouco. Sabemos que provavelmente poderia haver opiniões não tão extremas. Como O Globo tem um número razoável de críticos, seria muito interessante um quadro comparativo de posturas do bonequinho diante de uma obra. O leitor ganharia em dialética e suas escolhas cinematográficas como consumidor seriam mais nuançadas. Teria de decidir se vai ver um filme ou não com mais cautela, com mais risco.

Quando há um bonequinho só em questão, já vi ocorrerem efeitos perversos na recepção dos filmes no circuito de arte do Rio de Janeiro. Filmes dos quais gostei muito fracassaram neste circuito por causa de um bonequinho dormindo ou indo embora. Sabemos que a primeira semana é decisiva para a carreira de um filme e uma cotação negativa pode afastar público sem que haja tempo para que o trabalho do boca a boca reverta esta situação. Um quadro relativizado que polemizasse com estas reações negativas seria de grande utilidade para o leitor que não está disposto a conferir tudo. Nem todo espectador é cinéfilo inveterado. É forçoso reconhecer que bonequinho aplaudindo de pé (o que tem acontecido em excesso) tem feito filmes ganharem uma boa sobrevida nos cinemas do circuitinho, englobando aí as ousadias do Arteplex.

O Jornal do Brasil apresenta um quadro comparativo. O problema é que os filmes são em pequena quantidade e há demora em haver atualizações. Além do mais, muitos colaboradores vêem poucos filmes, o que enfraquece o quadro. Curiosamente o colaborador que mais filmes vê é o crítico musical Tarik de Souza! Assim há algo de muito errado com o quadro que deveria ser corrigido. Quem se dispõe a ter seu nome como avaliador têm de ter a generosidade (e honestidade?) de ir ver o máximo de filmes possíveis.

Eu sou viciado em ler críticas de cinema, seja dos grandes jornais como dos sites eletrônicos. Mas gosto de ver também as cotações dos filmes e procuro confrontar os diferentes signos que muitas obras recebem. Eu também tenho as minhas próprias cotações que gravo mentalmente. Não as anoto para não ter cristalizado uma visão que pode ser mudada mais tarde. Mas como este blog trata de cinema (e outras perplexidades...) e tenho visto muitos filmes que não consigo comentar aqui, vou passar a fazer cotações. Espero que os leitores não me levem a ferro e fogo e confrontem minhas avaliações com o de jornais, sites eletrônicos, blogs e as próprias. A última coisa que gostaria de fazer no mundo é desestimular alguém de ver um filme que lhe poderia trazer muito prazer. Se o espectador for ver um filme bem cotado e não gostar o mal é menor.

Por mais responsável que seja um crítico de cinema e leve a sério seu trabalho, se o que faz não for relativizado (o que pode ser feito com um quadro comparativo, insisto) seu esforço pode ser como o de um baloeiro que lança enormes balões. Balões podem cair no mar, num prédio, numa escola, numa mata, num rio, numa igreja, etc. Enfim, os efeitos podem ser perversos.

O crítico de arte Rodrigo Naves (de quem assisti ótima palestra num dos seminários que Adauto Novaes organizava, o que resultava em alentados livros da Companhia das Letras) lança agora pela mesma Companhia das Letras “O Vento e o Moinho-Ensaios sobre arte moderna e contemporânea”, com reflexões que cobrem trinta anos de atividade. Na revista Bravo! de julho de 2010, numa excelente matéria sobre a pintora mexicana Frida Kahlo, Naves comenta que a pintura dela tem o prestígio que hoje o mundo das artes lhe dá muito mais pelo trágico acidente que ela sofreu quando jovem, com reflexos para a vida toda, do que por seus méritos artísticos. Segundo Naves o trabalho de Frida seria mediano!(sic). Eu que freqüentei vários museus e exposições seja no Rio de Janeiro, Nova York, México, Paris, Barcelona, Madri, no fundo me considero amador (no melhor sentido desta palavra: aquele que ama) em artes plásticas. No entanto deixo declarado aqui que sou apaixonado pelo trabalho de Frida Kahlo. Só um exemplo: o quadro O que a água me deu de 1938 reproduzido numa página inteira da revista é deslumbrante e dá conta do complexo mundo interior da pintora, suas fixações e angústias. Um dos mais belos filmes que vi na vida foi “Frida:Natureza Viva” do mexicano Paul Leduc, que entrelaça vida e obra da artista de forma magistral.Como as esculturas de Camille Claudel, Frida desperta em mim fortes emoções com seus trabalhos.Sua obra pra mim é um monumento.

Claro que Rodrigo Naves tem todo o direito de não se entusiasmar com a obra de Frida. Mas quem acreditar nele neste quesito pode estar perdendo maravilhas da história da arte. Se isto acontece com Naves o mesmo pode estar acontecendo com muitas avaliações de críticos de cinema, ainda que eles sejam responsáveis e sinceros. Pessoas geniais como Frida (ou nem tanto), enquanto cineastas, podem estar sendo alvo de depreciações injustas.

Depois de todas as considerações acima, esperando que o leitor não me leve a ferro e fogo e procure por outros posicionamentos, vão adiante cotações para filmes que vi ultimamente, de acordo com o seguinte critério:

0- péssimo

* ruim

** regular

***bom

**** muito bom

*****obra-prima

(Sou bonzinho. Não adoto bolinha preta para péssimo, mas uma bolinha branca.....)

Agora a cotação para filmes vistos:

Descobrindo o Cinema Filipino- CCBB-RJ

Serbis de Brillante Mendoza *****

Manila de Adolfo Alix Jr. e Raya Matin****

Manila nas Garras de Neon de Lino Brocka ****

Kinatay de Brillante Mendoza ****

Um Pequeno Filme Para o Índio Nacional (Ou a Prolongada Agonia dos Filipinos) de Raya Martin*

Independência de Raya Martin ***

Circuito Exibidor:

Brilho de Uma Paixão de Jane Campion ****

Em Teu Nome de Paulo Nascimento **

O Escritor Fantasma de Roman Polanski ****

A Jovem Rainha Vitória de Jean-Marc Vallée ***

Mademoiselle Chambon de Stéphane Brizé ****

Olhos Azuis de José Joffily ***

Patrick 1,5 de Ella Lemhagen **

O Pequeno Nicolau de Laurent Tirard *****

O Profeta de Jacques Audiard ***

O Que Resta do Tempo de Elia Suleiman ***

O Segredo dos Seus Olhos de Juan José Campanella ****

Toy Story 3 de Lee Unkrich ****

Tudo Pode Dar Certo de Woody Allen ****

Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz *****

Vittorio de Sica- Minha Vida,Meus Amores ****

E vocês, qual a cotação segundo meu critério que dão aos filmes vistos? Não se intimem. Manifestem-se.

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Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 6 de julho de 2010

Boa Pessoa Dorme Mal





Boa Pessoa Dorme Mal

Quando ouvi de meus próprios lábios não a melodia a que estava acostumada e sim esse surpreendente “eu-só-gravo-se-puder-escolher-todas-as-músicas-e-ponto-final”, eu pensei que o mundo houvesse explodido já naquele momento e nada mais teria importância dado que havia jogado fora a chance que há anos andava acalentando! Era a sinceridade de um instante rompendo com as regras de um eterno jogo de cartas marcadas, o qual poderia ajudar-me a passar todas as manhãs, tardes, noites na pasmaceira própria das vidas anódinas, mas em hipótese alguma contribuiria para a minha corrida particular, com um só participante e mesmo assim sem vitória garantida: a busca desse espanto que atende pela alcunha de felicidade.

Com essa, esses Mefistófeles travestidos de Mecenas não contavam: a estrelinha mambembe, que por descuido foi incluída na trilha sonora de uma novelinha dessas aí e surpreendentemente suplanta os medalhões e pratas da casa, caindo literalmente, mas no bom sentido, na boca do povo ( dado que cantam sem parar o seu cavalo de batalha primeiro e único) é convidada para gravar um CD com o máximo de requinte de produção e o que faz?Recusa-se a... se...

Os semblantes estupefatos daquelas feras, esta tarde, diante da minha ousadia, é algo que até agora ressurge diante de mim tal qual uma miragem. Confesso que morri e ainda tremo de medo, mas se eu não arriscasse não poderia agora neste quarto de hotel, atendendo a um pedido-ameaça deles, tentar preparar uma lista das dez faixas que pretendo gravar. Tenho de apresentá-las logo pela manhã, caso contrário eles desistem da empreitada. São umas velhas-raposas! Estão crentes que eu vou me complicar toda e não conseguirei colocar-lhes nenhuma proposta concreta. Pois sim...

Meu Deus! Não é que a minha cabeça agora está tão confusa que só sabe precisamente aquilo que não quer: algo tecnopop tal como essa que gravei e que eles querem me impingir atualmente. Senti curiosidade em saber como interpretaria tal ritmo do momento, não tenho nada contra, mas decididamente não é a minha!

Aqueles safados poderiam dar-me mais tempo, mas querem que eu escolha às pressas para depois me pulverizarem delicadamente, explorando os pontos fracos.

“Lutar... Lutar... Lutar... pra gente ser feliz... cantar... cantar... cantar... como a gente sempre quis.”

Mas lutar como, cantar o que?

Uma música do Djavan? Sim, eu não tenho medo do lugar comum. Encontraria uma daquelas com bastantes sinestesias, não importa que sentido “mais profundo” elas tenham. Mas se me perguntassem depois o que elas significam? Que diria eu? Que apenas as sinto e isso basta! Ficarão convencidos?

Caçar numa arca perdida uma subestimada canção do Lupicínio não seria nada original, mas não seria ótimo? “Felicidade não vá embora... não! Não vá...”

Uma canção da maravilhosa Piaf agora não seria encarada como o máximo do oportunismo? Uma música do Chico já algum tempo gravada, mas não tão badalada, como Soneto, por exemplo-“Por que me descobriste no abandono?” – não é uma boa pedida? Procurar um nordestino de talento como Geraldinho Azevedo e fazer um ótimo exercício vocal com Bicho-de-Sete-Cabeças seria visto como óbvio paternalismo?

Gravar o que era considerado a vanguarda paulista: Arrigo, Itamar, etc.....não seria a modernidade já com gosto de café-requentado? Não seria pedante demais?

Ah! Sim... uma sublime obra-prima do Caetano: Terra – “Por mais distante o errante navegante. Quem jamais te esqueceria”. Não seria minha interpretação uma heresia, uma caricatura? “Eu preciso aprender a só ser” do Gil, não seria uma boa? Gil & Caetano não seria o óbvio ululante? Mas e daí? Se todos assim pensassem o que seria deles?

Será que o Paulinho da Viola não tem outras músicas no estilo de Sinal Fechado? Se as tem por que não as grava? Essa música é a minha cara! Regravá-la agora depois de interpretações já antológicas não seria uma temeridade?

Meu Deus! Se não me cuidar e continuar me descabelando deste jeito acabo materializando a própria cantora careca! (aquela que ainda usa o mesmo penteado!).

Estou já esgotada e não tenho nada decidido ainda! Nenhuma certeza. Preciso acalmar-me e raciocinar com clareza. Não posso permitir que minha emoção ponha por água abaixo meu sonho. Amanhã tenho de expor-lhes com concisão as minhas idéias. Caso contrário me fulminarão com o maior desprezo e impiedosa razão. Deixa eu tomar mais uma dose de whisky para ver se me acalmo!

Por que que eu tinha de vir sozinha para o Rio de Janeiro? Nenhum amigo para me suscitar qualquer idéia que seja. Mamãe está tão longe, não pode soprar-me nem uma canção de ninar.Tudo e todos tão distantes!

Mas vamos ligar esse rádio pra ver o que ele me sugere: “ Oh! Oh! You are the sun. You are the rain, baby. Oh! Oh!”

Vamos girar isso aqui: “Menino Deus, do corpo azul dourado. Quando tua luz se acende a minha voz comporá tua lenda. E por um momento haverá mais futuro do que jamais houve.”

Sim! Por que não! É isso aí! Gravarei uma antologia da MPB que fale direta ou indiretamente de Deus. Por que não?

Está tudo muito claro na minha frente:

1-Se Eu Quiser Falar Com Deus – Gilberto Gil

“Tenho que lamber o chão dos palácios,

dos castelos suntuosos do meu sonho”.

2-Sobre Todas as Coisas – Chico Buarque / Edu Lobo

“Ou será que o deus

que criou nosso desejo é tão cruel

mostra os vales onde jorra o leite e o mel

e esses vales são de Deus”.

3-Menino Deus – Caetano Veloso

“Quando a flor do teu sexo abrir as pétalas para o universo”

4-Paixão e Fé – Tavinho Moura / Fernando Brandt

“Velejar, velejei

no mar do senhor

lá eu vi a fé e a paixão

lá eu vi a agonia da barca dos homens”.

5-Há um Deus – Lupicínio Rodrigues

“Há um Deus sim

e esse Deus há de ouvir a minha voz”

6-Azul – Djavan

“Eu não sei se vem de Deus

ou virá dos olhos seus

essa cor que azuleja o dia”.

7-Esotérico

“Se eu sou algo incompreensível

meu Deus é mais que um.... que dois...

que dez milhões.”

8- Pele – Caetano Veloso

“Deus deseja que a tua doçura

que também é a dele

se revele mais pura na sua pele”.

9-Partido Alto – Chico Buarque

“Deus me fez um cara fraco desdentado e feio

pele e osso simplesmente quase sem recheio”.

10-Saudosa Maloca – Adoniran Barbosa

“Deus dá o frio conforme o cobertor”.

O que os produtores vão achar pouco me importa! Ou saí esse CD ou nada feito! São essas dez mesmo! Sem tirar nem por!Existe algo cabalístico em tudo isso que não posso alterar de jeito nenhum! Se eu pesquisasse mais, até encontraria jóias menos conhecidas. Mas os primeiros filhos que nasceram são esses e não tenho mais o direito de abandoná-los. Chega de almanaques! Quero um disco com unidade temática! Diferentes visões, diferentes referências, mas todas belas e sublimes. Agora é só me acalmar, ir deitar, que já é madrugada!

Esses críticos que não me venham com essa artimanha de que “eu vendi a alma ao diabo para conseguir o meu primeiro sucesso e agora ele está me cobrando”, caso eu fracasse.

Por que meu Deus, eu estou tão nervosa ainda! Suando frio. Tenho que descansar... descansar... Essa ansiedade é terrível. Esta minha insônia crônica! Preciso estar bem disposta amanhã para rechaçar aquelas aves de rapina. Deixa eu tomar meu sonífero. Este que me receitaram me parece um tanto fraco. Deixa-me tomar mais um... Um não... dois! Três! Quatro!Ou mais? Preciso repousar urgente! “Agora sou uma estrela... Agora sou uma estrela”.

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Nelson Rodrigues de Souza

domingo, 4 de julho de 2010

A Carteirinha de Estudante Falsa é Uma Metáfora das Hipocrisias da Sociedade Brasileira




O que pode passar na cabeça de quem falsifica uma carteirinha de estudante?

1- Estes produtores e exibidores são gananciosos e só vou poder ir ao cinema, ao teatro, aos shows, à ópera, aos concertos, aos espetáculos de dança, etc., se puder pagar meia-entrada.E algumas vezes a meia-entrada já é cara....

2- Aliás, é um favor fazer carteirinha falsa, pois assim freqüento a vida cultural da cidade. Melhor eles ganharem com a minha falsificação do que eu não sair de casa.

3- Muitos políticos cometem delitos infinitamente tão maiores que o que eu faço é brincadeira de criança

4- Se a gente deixa de falsificar eles não vão abaixar os preços mesmo.....

5-etc...

O que pode passar na cabeça dos produtores e exibidores:

1- Vou elevar, inflacionar os preços dos ingressos, pois assim com este enxame de carteirinhas falsas mantenho a margem de lucro que desejo.

2- A fiscalização rigorosa que volta e meia anunciam é ineficaz e vou manter então minha política.

3- Os custos envolvidos na minha produção/exibição são altos mesmo e vou manter os preços elevados. Exibir um filme mesmo em cópia digital (que alguns espectadores puristas dizem ser ruim...) é caro e vou manter os preços que pratico.

4- É claro que tem os justos que pagam pelos pecadores, mas eu não tenho saída. Paciência.

5-etc...

E assim E La Nave Va. Os exibidores/produtores fingem que estão fiscalizando com rigor e consumidores de cultura fingem que suas carteirinhas são verdadeiras.

De minha parte nunca ousei falsificar uma carteirinha, pois primeiro me vem um grande pudor, senso de honestidade e orgulho. Isto mexeria com a minha auto-estima às vezes já tão combalida por vicissitudes da vida. Além do mais estou com 55 anos, com ostensivos cabelos brancos. Já pensou se me param num evento e perguntam: “O senhor estuda o que mesmo e aonde?” Eu iria morrer de vergonha pego em flagrante. Iria gaguejar feio. Não teria cara de pau suficiente para insistir que a minha carteirinha é quente.

Mas esta minha honestidade tem seu preço. Como estou na faixa da “classe média empobrecida da Era Lula”, eu que era um amante inveterado do teatro, tendo visto o que pude do Teatro dos 4 em seus tempos áureos, vibrado com os trabalhos de Rubens Correia e Ivan Albuquerque, fora e no Teatro Ipanema, dentre outras delícias, agora tenho ido muito pouco ao teatro. Os monólogos proliferam em diferentes níveis de qualidade, mas os preços, de modo geral são inacreditáveis. Por que que com um só ator/atriz em cena os preços são tão altos? Logo me vem a resposta: ganância ou defesa das malditas carteirinhas falsas, ou as duas coisas...Tem gente que tem teatro, patrocínios e mesmo assim os preços são altos.Será que a manutenção de um teatro é tão cara assim? Quanto aos elevados preços dos shows e musicais, peças com grande ou razoável número de atores, de modo geral, se pode fazer comentários análogos.

Existem os espetáculos a preços populares. Mas confesso que não tenho paciência, com exceções saudáveis, para entrar na disputa por estes ingressos. Quando assim procedo, me sinto participando do “pavilhão dos humilhados e ofendidos”, conforme uma expressão que Arnado Jabor criou anos atrás.

Já deixar de ir ao cinema eu não agüento. Mas sou exigente. Não me arrisco a ver, por exemplo, uma comédia que me parece ser boba ou filmes de gênero terror que me parecem sensacionalistas. Escolho bem o que devo ver. Assim posso estar perdendo algumas pérolas conforme me comentam.

Esta situação da carteirinha e o encaminhamento do problema é algo bastante significativo da hipocrisia que permeia a sociedade brasileira. Produtores/exibidores têm as suas razões. Os consumidores/espectadores também as têm. Mas como são tortuosas e falaciosas estas razões!

Soluções para este problema eu até tenho. Mas não tenho vocação pra “polícia” e vou omiti-las aqui, pois no fundo se trata de um caso de falsificação muito sério: o indivíduo finge ser quem não é. Caso brabo de 171.

Do jeito que anda a carruagem, muito convenientemente a sujeira vai continuar sendo varrida para debaixo do tapete e finge-se que está tudo sobre controle.

Mas volta e meia me dá uma revolta. Até quando este estado de coisas vai continuar? Até quando “esta aparente boa ordem do mundo burguês”? Até quando esta tragicomédia vai ser encenada?

Abafo minha revolta e vou ver o que posso. Ainda bem que o que vejo muitas vezes é um bálsamo para a alma e me faz me reconciliar com a vida. Mas com a sociedade brasileira não há ainda reconciliação possível. É uma ilha cercada de hipocrisias por todos os lados. Preciso muitas vezes tomar cuidado para não ser contaminado também. Os tentáculos do polvo são muito fortes e ameaçam nos pegar no dia a dia.

Resta batucar na cabeça os versos de Caetano: “E o que se revelará aos povos surpreenderá a todos não por ser exótico, mas por poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio”

No Brasil a violação do óbvio é uma coisa inacreditável. Por exemplo, esta lei da ficha limpa só agora surge como um problema a ser resolvido. Levamos mais de quinhentos anos para aprender que um político para se candidatar tem de ser honesto...

Mas chega por aqui. Vou pegar um cineminha mesmo sabendo que me exploram. È o mínimo que posso fazer por mim nesta selva de gente esperta onde a única lei realmente eficaz é aquela do Gerson que gostava de ganhar vantagem em tudo.

Começam a surgir laivos de mau - humor. É melhor eu parar por aqui. Mas fica ecoando no ar a pergunta de Bertold Brecht em “A Alma Boa de Setsuan”: a saída, onde está a saída. Deve haver uma saída.....

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Nelson Rodrigues de Souza

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Por Que me Identifico Tanto Com o Cinema de Roman Polanski




A estréia recente de “O Escritor Fantasma” (2010) de Roman Polanski suscita a eclosão de velhos fantasmas em mim. O cineasta de que mais gosto, o mais admirado e amado é Ingmar Bergman. Outros tantos podem ser lembrados. Mas o francês-polaco que passou a infância no gueto de Cracóvia, dentre outras célebres vicissitudes na trajetória de vida exerce enorme fascínio em mim.

“O Processo” (1962) de Orson Welles é extraordinário, mas num conjunto de obra quem mais emulou as inquietações de Kafka no cinema, que eu conheça, foi Polanski. Não é à toa que participou de uma montagem de “A Metamorfose” em Paris como ator compondo o Gregor Samsa que acorda um dia transformado numa espécie de inseto monstruoso e acaba dentre outras maldades e incompreensões recebendo maçãs podres na cara jogadas por membros da família.

A condição do homossexual no Brasil é tremendamente kafkiana. Em “Carta ao Pai” Kafka narra que via a vida como um mapa-múndi enorme onde o pai se deitava. Os espaços vazios era aonde podia movimentar-se. Este sentimento também sempre me acompanhou e por pai aí se pode entender ao pé da letra ou a sociedade ou então o estado.

Nascer homossexual é estar num mundo que não foi feito para nós, é estar sendo alvo de um processo contínuo cuja responsabilidade desconhecemos, é acordar transformado num inseto, é tentar atingir um castelo inacessível, é estar dentro de um buraco e ter medo de sair, etc.

Em “O Bebê de Rosemary” (1968) a protagonista acredita estar sendo alvo de pactos demoníacos que garantiram ao marido um emprego desejado. Ao final em aberto embala sua criança que pode ser o anticristo gerado num novo ano zero. Ficamos sempre no terreno das ambigüidades, das imaginações de uma sexualidade reprimida pela religiosidade ou então de fato temos um complô diabólico da vizinhança que lhe receita chás especiais durante a gravidez. Ao contrário do que acredita o psicanalista Waldemar Zusman em “Os Filmes Que Vi Com Freud” (Editora Imago) nem tudo pode ser gerado pela mente frágil de Rosemary. Polanski, perverso, nos joga no terreno das sugestões e aparências sutis em que o mistério ecoa em nossas mentes no final ao som de uma canção de ninar, abandonando aos poucos o sinistro edifício Dakota, onde anos depois seria assassinado John Lennon. O erro de Zusman foi freudiana e ortodoxamente não acreditar em satanismo. Tem todo direito. Mas assim como existem filmes de zumbis em que temos de entrar nesta lógica, “O Bebê de Rosemary” exige e reinvindica para si uma lógica parecida. São exclusividades dos sortilégios da arte.

Em “O Inquilino” (1976) um polonês, Trelkovski, vivido magnificamente pelo próprio Polanski aluga um apartamento em Paris onde a antiga inquilina Simone Choule tentou o suicídio e está toda enfaixada como uma múmia no hospital. Aos poucos ele vai descobrindo signos egípcios na parede, vê pela janela uma mulher cobrindo o corpo com ataduras, chega a colocar uma peruca para passear nas ruas e cai numa espiral de paranóias culminando com um grand finale felliniano, num clima de festa, onde vê os moradores do prédio efusivos em suas janelas incentivando-o a se jogar.

Aqui também estamos no terreno das ambigüidades onde realidade e alucinação se confundem e não sabemos ao certo estabelecer uma linha divisória. Tudo pode ser um complô xenófobo dos moradores como delírio paranóico do protagonista. Mais um final em aberto. Em “Repulsa ao Sexo” (1965) fica claro o distúrbio psicológico da protagonista que acaba matando homens que a desejam. Já em “O Bebê.....“e “O inquilino”, filmes irmãos, reina as trapaças das ambigüidades.

Em Armadilha do Destino (1966/Cul de Sac/Beco Sem Saída) (com pontos de contato com “Violência Gratuita” (1997/2007) de Michael Haneke) os moradores de uma casa no campo são progressivamente agredidos por estranhos que chegam, sem nenhuma razão aparente. A um morador resta por fim sentar numa pedra sobre as águas e colocar as mãos na cabeça para entender o que pode ter acontecido, o que fazer do resto da vida.

Em “A Morte e a Donzela” (1994) uma mulher que foi torturada acredita ter encontrado o seu torturador e conseguindo prendê-lo passa a torturá-lo, vingando-se, a despeito das hesitações do marido. O que é realidade ou imaginação? Abstraindo-se da violência em jogo, terá sido feito mesmo justiça?

Em “A Faca na Água” (1962) temos um triângulo amoroso perpassado por um clima constante de violência no ar e homoerotismo velado, por mais calma que se aparente. O estranho acolhido no barco meche com a libido e os ciúmes do casal, mostrando como é frágil a relação burguesa estabelecida.

O menino protagonista de “Oliver Twist”(2005) é jogado no mundo e tem de sobreviver junto a um gigolô de prostitutas e crianças/adolescentes trapaceiros.O grande desafio de Oliver é não perder a humanidade num meio social corrompido até a medula e isto de fato acontece, pois acaba compadecendo-se do velho Fagin condenado à morte.

Em “O Pianista” um músico judeu perde toda sua família nos campos de concentração nazista e passa a ter como único objetivo sobreviver solitariamente entre os escombros e prédios erodidos e insalubres, comendo até batatas deterioradas.É o seu heroísmo possível.O encontro com um nazista que se encanta com a forma como ele toca Chopin acaba salvando-o. Aqui temos um filme também grandioso, o mais próximo da biografia do diretor ainda que tenha sido baseado no relato de vida do pianista Vladislau Spilman, onde não há a menor espécie de maniqueísmo. Temos judeus com as mais variadas posturas e até mesmo nazista que se deixa sensibilizar pela música.

Já o recente “O Escritor Fantasma” (montado na prisão domiciliar onde se encontra o autor na Suíça, aguardando uma decisão (kafkiana) de ser deportado ou não para os EUA onde é acusado de crime de pedofilia em 1978) é o filme mais nitidamente político de Polanski e não deixa de ter seus paralelos com os filmes citados. Um escritor desempregado aceita ser ghost-writer de um ex-primeiro ministro inglês para escrever suas memórias que vive numa ilha nos EUA e é acusado de ter facilitado torturas no que chamam de guerra ao terror. O escritor se diz capaz de fazer o trabalho como o coração. O anterior ghost-writer foi encontrado morto no mar. O fantasma escritor (sem nome) vai mergulhando cada vez mais nos calhamaços deixados e na realidade que o circunda, caindo numa roda-viva de mistérios onde diálogos econômicos e cortantes levam a história para um desfecho impactante, com um antológico efeito de extra-campo. Com as armas da ficção que remetem a acontecimentos reais (impossível não lembrarmos de Tony Blair) Polanski de certa forma se vinga do país do qual evadiu-se, mostrando em que ele se transformou.

Um dos filmes em que Polanski trabalhou como ator é “Uma Simples Formalidade” (1994) de Giuseppe Tornatori onde faz um inspetor de polícia que interroga ostensivamente um homem, com outros na sala de espera na mesma situação. É uma obra que poderia ter sido dirigida por Polanski, pois guarda forte identidade com os labirintos existenciais tão caro ao cineasta.

Os filmes citados têm elementos nitidamente kafkianos, mas obviamente não se restringem a eles. Polanski é um artista múltiplo que trabalha o classicismo de linguagem com o máximo de transparência e alto nível de opacidade, sem o qual a arte não vive, fazendo um inventário das perversidades humanas e as circunstâncias onde elas eclodem.

Mesmo correndo o risco de ser acusado de fazer o discurso da vitimização (o que Polanski sempre evitou) me atrevo a escrever que num mundo onde um adolescente de 14 anos foi assassinado no Brasil por um grupo homofóbico, me sinto um personagem de um filme de Polanski saído das páginas de Kafka.

Uma das mais belas e contundentes adaptações de Shakespeare para o cinema é “Macbeth” (1971) de Polanski, feito ainda sob o impacto da morte ritual da mulher Sharon Tate em 1969. É uma obra eivada num exorcismo de sangue e vilania, um filme que nos corta com lâmina afiada mostrando os abismos a que podem chegar os corações humanos. Não é à toa que vem desta peça o acutilante adágio “A vida é uma história contada por um idiota cheia de som e fúria, significando nada”. Shakespeare capta aqui o absurdo da existência que ecoa em Kafka, em Polanski e em mim.

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Nelson Rodrigues de Souza

Satisfação ao Distinto Público Leitor

Satisfação ao Distinto Público Leitor

Parei este blog por motivos de saúde e agora me sinto forte para retomá-lo. Fico contente de constatar que mesmo neste período de silêncio o blog continuou sendo visitado.

Obrigado

Nelson Rodrigues de Souza

quarta-feira, 1 de julho de 2009

As Aventuras de Cada Um




Em “Trama Internacional” (EUA/Alemanha/ Reino Unido/2009) de Tom Tykwer o agente da Interpol Louis Salinger (Clive Owen) com a colaboração da promotora de justiça de Nova York Eleanor Whitman (Naomi Watts) tenta desvendar as teias de corrupção e mortes lançadas pelo grande banco IBBC com sede em Luxemburgo, pelo mundo afora, com venda de mísseis para países em conflito, de forma que o banco passa também a lucrar com as dívidas geradas por estas guerras, numa antecipação no cinema da grave crise ética, moral e operacional por que passam hoje os grandes conglomerados financeiros.

O filme tenta aliar reflexões com entretenimento, mas carrega demais neste último item com pistas e mais pistas decifradas de modo mirabolante com cenas frenéticas em profusão em Milão, Nova York, Estambul, etc, de acordo com um receituário um tanto clichê de filmes de ação.

Há uma seqüência prodigiosa no Museu Guggenheim de Nova York filmada numa réplica construída na Alemanha que, ao mesmo tempo em que exala autenticidade cênica numa ambiência do século XXI, é saturada por uma rajada espantosa de tiros onde já não se sabe quem está do lado de quem, a inverossimilhança reina mais uma vez e milagres de sobrevivência e mortes convenientes acontecem.

Para ir fundo em seus objetivos, Louis tem que passar à margem das operações, onde lhe lembram que efeitos colaterais são inevitáveis. Enfim, não se pode dizer que Louis não viva uma grande aventura, mas o prazer de acompanhá-la é truncado por um grau elevado de ostentação de angulações, paisagens turísticas e truques narrativos de Tom Tykwer cada vez mais distante dos belos resultados obtidos por “Inverno Quente”, “Corra, Lola Corra” e pelo subestimado “Paraíso”, filmagem de um roteiro póstumo de Kristof Kieslowski.

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“Jean Charles” (Brasil/Reino Unido/2009) de Henrique Goldman, um diretor brasileiro que já teve sua época como imigrante ilegal, aborda com bastante autenticidade a vida de alguns imigrantes brasileiros em Londres (seriam da ordem de 200000 pessoas), concentrando-se em julho de 2005 quando atentados terroristas ocorrem na cidade e se criou um clima da alta paranóia. Em paralelo acompanhamos a vida de Jean Charles ( Selton Mello, numa deliciosa chave interpretativa caipira mineira), cujo destino já sabemos por tratar-se de emblemático personagem real, sua prima Vivian (Vanessa Giacomo) que foi para a cidade ganhar a vida em bicos que surgissem para ajudar a família no Brasil e o expressivo primo Alex ( Luis Miranda), uma consciência crítica embrionária de toda esta história. Até mesmo uma prima real de Jean Charles de Menezes compõe o quadro familiar dando mais veracidade às situações: Patrícia Armani.

Um dos aspectos bastante interessantes do filme é que ele não tenta escamotear o lado “malandro” virador de Jean Charles, santificando-o. Ele o mostra dando vários jeitinhos seja para conseguir a entrada da prima Vivian em Londres na triagem da imigração, vendendo passaportes conseguidos através de uma mulher, “roubando” empregados de seu patrão.

Radicado em Londres há três anos, confundido com um terrorista, Jean é executado no metrô com oito tiros pela polícia inglesa, um crime até hoje impune. Se a obra enfatiza esta impunidade mostrando, principalmente, a dor e a ira de Alex que desafia até mesmo representantes da embaixada inglesa que vão prestar solidariedade e ajuda econômica, (um personagem que tinha a consciência que os atentados ocorreram porque a Inglaterra cerrou fileiras com os EUA numa desastrada e conveniente guerra contra o terror), em relação ao Brasil o filme tudo poupa como se fizesse parte da ordem natural das coisas tantas pessoas terem de deixar o país onde nasceram para conseguirem melhores oportunidades de vida em outros lugares. Sucessivos governos brasileiros também são indiretamente responsáveis pela morte de Jean Charles, mas este tema é tabu no filme. O Brasil é lembrado com carinho. Uma bandeira brasileira envolve o caixão. Uma placa é colocada em Gonzaga como se a cidade natal de Jean Charles realmente tratasse bem seus filhos.

Jean viveu uma curta e amputada aventura.Vivian procura dar continuidade a ela, reelaborando sonhos dele. Mas o que fica no ar é uma sensação de que esta é uma história que pode se repetir. Nem lá nem cá, pouco se aprendeu com o que aconteceu. Há os protestos. Mas o mundo anda surdo para eles.

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O escritor Philippe Claudel é autor de alguns romances. Numa aventura ousada e bem sucedida (que lhe valeu o César de melhor diretor estreante) faz “Há Tanto Tempo Que Te Amo” (França/2008), um filme de cortes e diálogos bastante precisos, mas que conta como trunfo principal as excepcionais atuações de Kristin Scott Thomas (Juliette) e Elza Zylberstein (Léa), duas irmãs que se reencontram depois de uma separação de 15 anos. Juliette esteve presa neste período todo e vem morar com a irmã, seu marido, duas filhas adotadas e o sogro dela. O ato deflagrador que praticou nos é revelado quando tenta arrumar um emprego e é assustador, repugnante.

Quando tudo aconteceu Léa era pequena. Suas tentativas de contacto com a irmã presa foram fortemente reprimidas pelos pais que não mais quiseram saber da filha. O que o filme nos mostra com bastante sensibilidade é um ritual de aproximação de duas irmãs que tentam a todo o momento entender as motivações da outra num meio social hostil à reintegração. Pode-se dizer que vários filmes parecidos já foram feitos, mas o que tira “Há Tanto Tempo Que Te Amo” do lugar comum dos dramalhões é a sobriedade como as atrizes se entregam a seus papéis bem como o desenvolvimento pausado e paciente das revelações, com diálogos bem engendrados. Juliette tem o corpo e a alma contraídos de uma forma que não apela para uma piedade fácil do espectador. Léa apresenta ambigüidades no seu ar maternal. A expressividade das duas é hipnótica e uma grande gama de sentimentos nos é apresentada.

Há uma revelação ao final que a muitos provoca decepção, mas se pensarmos bem está coerente com o comportamento de Juliette apresentado até então.

“Há Tanto Tempo Que Te Amo” circunscrito a uma província francesa é também um filme de aventuras. Mas estas são interiores e são as mais bem construídas de todas as citadas, as mais difíceis de percorrer, pois envolvem feridas da alma bem mal cicatrizadas e que podem fisgar os seres a qualquer momento.

“Há Tanto Tempo que Te Amo” é um filme de tramas. Mas tramas interiores intensas. E como doem.

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Nelson Rodrigues de Souza