sábado, 7 de fevereiro de 2009

A que filme pertence esta imagem?


A imagem acima, com sua direção de arte fantástica em que o amarelo dos destroços remete ao fogo mais ao fundo, o recipiente azul combina com detalhes da roupa e a posição do homem denota uma assustada sobriedade poderia ser fruto de um filme e, no entanto, é uma foto jornalística que saiu na Folha de São Paulo em dezembro de 2006, com a legenda “Homem passa por destroços de explosão em Lagos na Nigéria que matou 269 pessoas e deixou 60 feridos”.

A beleza plástica da imagem de composição primorosa é tal e tão arrebatadora que dá a impressão de ter sido retocada digitalmente, agora que se têm mil e um recursos disponíveis. Diante do horror emerge um poético sentimento de desolação, mas também de bem vindo instinto de sobrevivência. Quanto se diz que a realidade deste nosso mundo de tantas perplexidades está suplantando muitas vezes a mais desvairada ficção ainda tem gente que duvida.

O “filme” que está por trás de toda esta história poderia se chamar “Que bom se ver vivo”.

Nelson Rodrigues de Souza

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A bola de neve do “abominável” escritor- Um Conto


Dizem que uma boa história flui como uma bola de neve que rola montanha abaixo. Tudo bem. Mesmo assim existem momentos em que até mesmo os melhores contadores de histórias vêem-se numa encruzilhada, pois não sabem como continuar a história que tem em mente. Ou melhor, desenvolveram tudo muito bem até certo ponto, sabem o que pretendem escrever dali então, tem até o final já previsto, mas não sabem como fazer a transição. E aí?

Não sei se sou um bom contador de histórias (o leitor que o diga!). Só sei é que estou nesta malfadada encruzilhada e não consigo dar prosseguimento a um pequeno conto desejado. A mim, assombra a necessidade de tirar uma carta do bolso do colete, utilizar um recurso folhetinesco vulgar. Mas desde que abandonei aquelas traduções de poetas americanos, as quais me davam o maior trabalho, sendo que ganhava uma miséria e ainda não era reconhecido (diziam que “só poetas podem traduzir poetas” ou então repetindo Robert Frost que “poesia é o que se perde na tradução”), é que resolvi escrever por minha conta e risco.

“Lembre-se que cada linha que você escreve é uma a menos que você tem de escrever” – já disse o Millôr Fernandes. Mas será que nesta areia movediça em que me movimento a única ferramenta adequada é essa? A audácia?

Não! Não são apenas os autores mais populares que se valem de recursos folhetinescos diversos. Também os grandes nomes “apelam”! Senão vejamos:

1-Bergman em seu mergulho nas angústias e desacertos de mãe e filha em seu “Sonata de Outono” leva o embate psicológico até um ponto em que a ação (se é que podemos falar de ação neste caso) estagna e ele sente então (intuitiva ou conscientemente, não importa) a necessidade de fazer a outra filha (paralítica) juntar-se às duas, se arrastando pelo chão, de tal modo que os conflitos são então redimensionados e prosseguem.

2-Louis Malle no maravilhoso “Sopro no Coração”, após inventariar com extrema sensibilidade as inquietações sexuais de um adolescente de 15 anos, tendo como pano de fundo a imoralidade da guerra da Indochina, para poder demonstrar seu “Teorema do Incesto” ( “É preferível praticar o incesto uma vez na vida do que passar o resto dela pensando nele...”), lá pelo meio da narrativa, sentiu a necessidade de criar o sopro no coração do rapaz, para que mãe e filho pudessem então passar uns tempos numa terma, longe da casmurrice do pai.

3-Nagisa Oshima depois de quase esgotar o aforismo “Qualquer maneira de amor vale a pena”, no seu claustrofóbico e brilhante “Império dos Sentidos”, resolve fazer o “japonês” (uma personagem que prefere andar na contramão, opta por morrer de amor do que morrer de ódio numa guerra nefanda qualquer...) se relacionar com uma das veneráveis madames, uma das gueixas que ninavam o casal. Após este gesto de ternura-desprendimento, a paixão dos amantes revigora, tomando uma nova coloração.

4-Mas alguns exageram na dose. Wim Wenders, por exemplo, pretendia com o pálido “O Medo do Goleiro Diante do Pênalti”, “matar vários coelhos com uma só cajadada”: homenagear o próprio cinema; dar vazão ao gosto pelos heróis nômades (o que propiciaria o passeio da câmera pelos detalhes de incontáveis paisagens); homenagear o cinema americano em particular; adotar um ponto de vista original para sua história. O filme consistiria de anotações sobre o cotidiano “alienado” de um jogador de futebol e por extensão uma “visão amarga-irônica-desencantada da sociedade contemporânea”. Muito bem. Só que para fechar o seu quebra-cabeça, Wenders faz o seu jogador matar uma bilheteira de cinema! (“gratuitamente”). O medo do goleiro passa a ser óbvio (deixa de ser ”existencial”), o pênalti perde a dimensão simbólica se transformando num banal “fuzilamento” e o filme não se realiza em nenhuma das propostas. Um pseudo filme policial. Uma rasante visão crítica da sociedade contemporânea. Um filme falso. Um filme que expressa apenas o desejo de se fazer um filme.

5-Quando o marido de Maria Braun volta da guerra e a surpreende com o amante e o mata, nada mais se tem do que um coelho tirado da cartola por Fassbinder para poder dar prosseguimento à sua narrativa. O marido vai preso e aí a metáfora “Maria – milagre alemão” pode então se consumar. Não deixa de ser sintomático que esta seqüência é toda ritualizada. O autor mostra o seu truque e é como se pedisse desculpas. Não é sem razão que já afirmou ser o cinema “a mentira vinte e quatro quadros por segundo”!

Mas Dostoiévski pela voz de Razumikhin de “Crime e Castigo” já não afirmou que “a mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais”? Então, se o mestre maior que por sinal mesmo com toda genialidade e generosidade, deixava evidente certos truques na construção de suas narrativas, nos dá a deixa, por que não pregarmos uma peçazinha no leitor e fazê-lo mergulhar na nossa história, a custa de um pequeno artifício?

Eu me sinto como um viajante que já percorreu um bom pedaço de uma auto-estrada, mas está com a gasolina acabando e ainda por cima sem dinheiro. Ele sabe muito bem de onde vem e para onde vai, mas como prosseguir? “Dar um cano” no posto mais próximo?

Será que num mundo já tão atropelado por mentiras oficiais cabe mais uma com a pretensão de que se vá contribuir para uma reflexão melhor sobre suas mazelas?

Estou convencido de que muito do propalado hermetismo de Glauber, Godard, Bressane e que tais não vêm do fato de não saberem contar uma história, mas do pudor em utilizar esses recursos que permitam que suas histórias fluam.

Será que no fundo eu não gosto das pessoas, não gosto da sociologia, psicologia, história, filosofia, política, psicanálise, antropologia, etc., mas pura e simplesmente dessa alquimia eterna chamada narrativa? Será que só a solução desses problemas é que me interessam?

Não! Eu não preciso fazer como em “O Vento Levou” em que para Scarlet O’ Hara, depois de casada com Rhett Butler, descobrir realmente que “só a ele amava”, houve a necessidade dela cair da escada e perder o filho que esperava, um filho morrer numa queda de cavalo e ainda por cima a mulher do cara que ela achava que amava tinha de morrer também. Não, eu não preciso ir a tanto! Basta, simplesmente, admitir que uma batida de carro congestione o trânsito e meu personagem seja obrigado a descer do táxi e daí descubra que está perto da casa do professor e vá então fazer uma visita para...

É como se a partir deste ponto da história (como na tragédia clássica) tivéssemos a co-autoria de um “Deus-ex–machina” e conseqüentemente um redimensionamento dela. Eu sei que para o homem contemporâneo o destino já não desempenha o mesmo papel que na Antiguidade Clássica. A sociedade com as suas leis já nos cria tantas armadilhas que fica difícil para qualquer Édipo cumprir a profecia dos oráculos... (Édipo nos dias de hoje talvez até fugisse de Corinto. Mas antes de se encontrar com Laio, matá-lo, para depois desvendar o enigma da esfinge e casar-se com Jocasta, poderia muito bem ser preso por estar sem documentos e como já não tem pai importante que o proteja...)

Mas não! Não é possível! Com tanta fruta no pomar do imaginário, eu fui escolher logo um abacaxi já descascado por Machado de Assis! Não é que a solução que escolhi é a mesma encontrada por ele para resolver o seu conto “A Cartomante”! (o tílburi para por causa de uma carroça que atravanca o caminho, Camilo desce e descobre que, bem próximo, ficava a casa da cartomante!...)

Mas tudo bem, digamos que o meu conto é uma revisão crítica de “A Cartomante”, um estudo, uma homenagem como aquelas que Brian de Palma presta a Hitchcock.

Não tenho certeza se esta solução adotada é realmente a melhor. Em principio é esta que aí está. Mudanças?... Estou muito cansado... Tal como minha querida Scarlet O’Hara “eu deixo para pensar nisso depois”.

Nelson Rodrigues de Souza

Ps 1- O “truque” de Sonata de Outuno” foi citado numa aula pelo roteirista e dramaturgo Doc Comparato como exemplo do que podem fazer grandes autores. Quanto ao resto, dei tratos à bola.

Ps2- As opiniões do personagem narrador não são necessariamente do autor.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Demônio Nosso que Estais na Terra, Dai-nos a Violência Nossa de Cada Dia?


"Polícia civil circula pela favela da Coreia, uma das quatro na zona oeste do Rio onde ações contra o tráfico mataram pelo menos 10"- Folha de São Paulo, 5 de fevereiro de 2009

Enquanto tivermos cenas da vida real como esta da foto, os estigmatizados "filmes de favela" brasileiros são mais do que necessários: representam "alguma coisa urgentemente".
"Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças"-Carlos Drummond de Andrade
Nelson Rodrigues de Souza

Pequenos Furtos do Maior Abandonado- Um Conto Sobre um Crítico dos Anos 80


Quando estudava no IMPA, Instituto de Matemática Pura e Aplicada, não suportava colegas meus virem me dizer que finalmente tinham visto um filme brasileiro realmente bom, que era “Pixote-A Lei do Mais Fraco” de Hector Babenco. Não adiantava argumentar que existiam já muitas obras primas do Cinema Brasileiro: “A Lira do Delírio”, ”Terra em Transe”, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Macunaíma”, “Limite” dentre várias outras. Agora como surgia um filme que falava sem rodeios do estado em que se deixava as crianças no Brasil, enfim surgia um “bom filme brasileiro”, algo que acreditei ser muito mais sintonia com a consciência culpada da classe média do que com as qualidades do filme. Assim foi com certa antipatia que fui ver “Pixote-A Lei do Mais Fraco” e gostei, mas ele não me impressionou, não me entusiasmou tanto assim. Anos mais tarde revi o filme e realmente dei a mão à palmatória: é um filme extraordinário! Todas as restrições que fazia foram derrubadas. É desta perplexidade toda que saiu este conto sobre um episódio da vida de um crítico de cinema no início dos anos 80.


Pequenos Furtos do Maior Abandonado

Ah!... Por que esse filme “Pixote” tinha de ser reprisado assim, prematuramente? Marília Pêra acaba de ganhar neste 1981, o prêmio de melhor atriz da Associação de Críticos de Nova York.Marília, maldito o prêmio que ganhaste pois em martírio o meu trabalho transformaste! Esse jornal cobrando-me essa crítica em cima da hora e eu sem tempo de rever o “bandido” e fazer uma coisa mais equilibrada... Mas vamos lá:

“Existem dois filmes brigando entre si, “A Terra é Redonda Como Uma Laranja” (titulo inicial) X “Pixote, a lei do Mais Fraco”. O primeiro, preocupado com a poesia, com a arte; o segundo comprometido com os apelos da bilheteria, com a sensacionalista “apreensão da realidade”... E é uma pena que este último vença a maioria dos rounds!... É inegável o talento de Marília, a sua garra! Sua explosão de raiva ao expor o feto abortado à criança abortada pela sociedade é antológica. Mas não é sempre que o lirismo que flerta com a violência consegue vencer. O plano demasiado longo de aflição de Lirica ante o amigo morto é esvaziado, beirando o abismo do melodrama barato.

É, entretanto, na caracterização do garoto, o Pixote, eixo central da história (história essa que se arrasta e perde força na segunda parte), que Babenco expõe com maior evidência o calcanhar de Aquiles do espetáculo. Com argúcia, sem dúvida, a câmera de Babenco explora naturalistica e poeticamente, com toda vontade de “contar a verdade”, as agruras perpétuas que esta criança teve e terá pela vida afora. Mas Babenco e seus roteiristas me parecem um tanto tímidos ainda. A criança mostrada no filme, apesar de toda violência que pratica e sofre, me parece prima-irmã do filho do cartazista do “Ladrão de Bicicleta”, de De Sica. Isto é, mesmo carente em todos os níveis, exala ternura por todos os poros. Dá vontade de acariciá-la e dizer: vem cá meu garoto, que eu lhe dou bastante afeto e você vai seguir um bom caminho na vida. Pode parecer covardia lembrar aqui “Os Esquecidos”, de Buñuel, mas os grandes mestres estão por aí para nos dar lições mesmo. Sem ter essas cenas de crueldade explícita com que Babenco nos brinda os olhos, Buñuel consegue fazer um filme, vamos dizer assim, muitíssimo mais violento e, contundente É exemplar a seqüência em que os diretores do internato resolvem dar uma chance ao pivete, pedindo-lhe que vá comprar cigarros, dando-lhe toda liberdade, esperando que ele volte de livre e espontânea vontade. Depois deste gesto de caridade-estratégia-pequeno-burguesa-típica-cristã, o que acontece? O garoto volta? Que nada, dá no pé com o dinheiro! O que a vida (a sociedade burguesa-capitalista) construiu não vai ser um simples gesto que vai resolver. O buraco é mais embaixo! Aquela infância foi destruída, não tem volta!”

Que dizer mais, Meu Deus! Essa reflexão me deixou deprimido.Ah! Sim, o roteiro...

“O roteiro me parece um tanto óbvio demais no seu afã de didatismo: uma seqüência de brinquedo-tortura aqui, uma cena de displicência-insensibilidade administrativa ali, uma seqüência de “suadouro” (assalto de cliente de prostituta) acolá... Uma receita!

O filme termina de modo bem poético: o garoto andando nos trilhos sem rumo. Bonito final. Só que mais uma vez, como no desastrado “Chuvas de Verão”, do Cacá Diegues (mas essa é outra história) a poesia emana do “inconsciente coletivo cinematográfico” ou mais exatamente “by” Fellini de “Os Boas Vidas”. O final é o mesmo: o pequeno carteiro, única testemunha da partida de Moraldo, o fugitivo da província, fica também passeando pelos trilhos...”

Nossa! Já é madrugada avançada. Eu estou morrendo de sono e ainda tenho de passar isso a limpo, para entregar cedinho no jornal. Vou ter de varar a noite e amanhã a mãe leva pra mim a matéria na redação. Socorro!

Puxa, que sufoco!Terei sido severo demais, injusto? Não é melhor reconsiderar certos pontos, acrescentar mais coisas, falar do impacto provocado, que é inegável, da belíssima cena em que Marília amamenta o garoto, dos outros atores...? Não é melhor falar ainda da evolução experimentada por Babenco desde a estréia em “O Rei da Noite” (um Nelson Rodrigues diluído, mal assimilado) passando por “Lucio Flávio, o Passageiro da Agonia”, um razoável thriller tupiniquim? Não! Não tenho mais tempo! Tenho de fechar essa crítica agora! Vai assim mesmo!

Meu Deus, será que eu também sou um trombadinha, um sofisticado trombadinha? Será que não passo de um trombadinha intelectual? Com o perdão do neologismo, um “Pixete”?

Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Quando o “The End” somos nós, onipotentes, que determinamos.


Fico espantado quando ouço as pessoas dizerem que abandonaram logo de início filmes empenhados que acabam desapontando. Já ouvi de um crítico que ele assumidamente chega a abandonar filmes de Festival em questão de 10 minutos e já constatei o fato. Reconheço que algumas vezes (bem poucas) também fiz isto. Mas sempre ficou a dúvida: e se o filme se tornar mais consistente depois?

Numa “Roda de Leitura” no CCBB-RJ perguntei ao escritor Inácio de Loyola Brandão como fazia para ler tantos textos como membro do júri do Prêmio Nestlé de Literatura? Estava especialmente interessado, pois havia mandado textos meus para este concurso. A resposta de Inácio me desapontou bastante: têm textos em que ele lê só o começo, a primeira página e os abandona, não sentindo nenhuma culpa por isto. Mas e se os textos a princípio obscuros ganharem maior relevo depois?

Um filme é exemplar da forma como que uma história pode ganhar realmente maior importância e significado na derradeira cena: “O Maestro” de Andrzej Wajda. Numa cidade provinciana um maestro local é extremamente rigoroso com seus músicos, sendo muitas vezes bastante indelicado com eles, chegando a ofendê-los. Paralelamente o filme nos mostra um maestro famoso (vivido pelo maravilhoso John Gielgud) que vem a esta cidade e modestamente entra na fila para comprar ingresso para o concerto que haverá, aonde vem a falecer. Numa discussão em casa com a mulher, o maestro de província ouvirá dela palavras que redimensionam o filme e nos convidam a revê-lo, agora com outros olhos e uma leitura mais penetrante. Eis o teor do que ela diz na última seqüência do filme, a qual interrompe depois a obra, abruptamente, magistralmente: “Você deveria abandonar a orquestra! No fundo você não deseja ser músico! O que você quer é usar a música para exercer seu poder nefasto sobre as pessoas!”. Assim o que era uma história um tanto paroquial ganha o sentido de metáfora eloqüente de grandes desastres políticos, como o que acontecia na Polônia de então. E aqui nos lembramos do zombeteiro, mas certeiro Eugène Ionesco: “O poder deve ser confiado a aqueles que não o desejam...”.

“Clube da Luta” de David Fincher, sem o mesmo nível de “O Maestro”, com um grau de violência bastante exacerbado que pode assustar e afastar muitos espectadores ganha realmente sentido mais ao final do filme. Aí sim o que nos parecia gratuito ganha mais força dramática e somos convidados a rever a obra.

O extraordinário romance “O Jogo das Contas de Vidro” de Herman Hesse é sempre muito atraente, mas ele ganha uma dimensão realmente fantástica e mais emocionante ao final, suscitando em nós a vontade de uma releitura.

Desta forma, acredito eu, que uma vez que já nos dispusemos a sair de casa até um cinema ou nos instalamos em nossa poltrona , para ver um determinado filme, vamos procurar assistir ao trabalho até suas últimas seqüências, que muitas vezes têm sentido de circularidade nos remetendo ao início. É assim que encaro, de modo geral, os filmes que me disponho a ver (ou os livros em sua leitura). Mas cada um tem suas idiossincrasias cinéfilas e literárias. Esta de abandonar o filme, os livros, principalmente no início, não me agrada de forma alguma. Arte exige paciência, respiração e total entrega de quem a frui. Podemos quebrar a cara, mas vale a pena o risco.

Nelson Rodrigues de Souza

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Será que Desta Forma, Com Estes Ideais, Realmente Podemos?


“Foi Apenas Um Sonho” (EUA/2008) de Sam Mendes, em cartaz nos cinemas brasileiros, é mais uma pedra significativa que se constrói para formar uma catedral dos tormentos acarretados pelo fim do chamado sonho americano, um ideal que se tenta hoje restaurar para ainda se impor ao mundo todo. É bastante oportuna a estréia agora deste filme, pois nos mostra que há um mal-estar latente e pungente na classe média provinciana americana de 1955 que ainda ecoa bastante no mundo de hoje, onde as pessoas movidas pelas alegrias catalogadas de que nos falava Clarice Lispector, acabam formando núcleos familiares movidos pela deterioração dos sonhos mais recônditos e legítimos.

April (Kate Winslet, extraordinária) sempre quis ser atriz. Frank (Leonardo DiCaprio, excelente) tinha consciência de que tudo que não queria na vida era trabalhar na empresa onde o pai ficou por 20 anos. No entanto depois de trocarem sorrisos numa festa os vemos como um casal em crise aguda com frustrações mútuas, ela como atriz fracassada e mãe de duas crianças, cuidando de uma enorme casa numa elegante Revolutionary Road; ele como empregado da tediosa e impessoal empresa que tanto procurou evitar.

Em tempos de desemprego galopante os dramas do casal podem soar pueris. Mas o fato é que o filme toca numa corda sensível de todos nós: em que medida estamos realmente indo atrás de nossos desejos mais nobres ou sucumbimos aos imediatismos da mera sobrevivência com direito à catalogação de normalidade?

É sintomático que o personagem que apresente muita lucidez das questões em jogo seja o matemático John (Michael Shanonn, fantástico) que chegou a ser internado num hospício e conforme sua declaração, após várias lobotomias perdeu o dom para a matemática, mas não deixou de ter problemas emocionais. Quando diz que se sente feliz por um lado pois não queria estar na pele da criança que April está esperando, o filme atinge um dos seus mais acutilantes tempos dramáticos.

Para sair da mediocridade que reina em torno deles, Frank e April sonham em se mudar para Paris, onde ela arrumaria emprego num serviço público diplomático bem remunerado e ele teria tempo para pensar sobre o que fazer na vida.

Ainda que o ridículo título brasileiro entregue um pouco o desenvolvimento da história que vai da grande infelicidade para a infelicidade em seus extremos, o trabalho dos atores em todos os níveis, a reconstituição de uma época em que as belas casas e ruas escondem mesquinharias, traições de todos os quilates e até mesmo tragédias existenciais, enfim tudo isto apresenta nuances que é um grande prazer acompanhar, nesta obra que ao seu modo dialoga com o cáustico e brilhante “Beleza Americana” (1999) do mesmo Sam Mendes, premiado com vários Oscars e que acabou pagando por isto: muita gente tende a desacreditar da potência criativa de um filme com esta chancela.

Baseado num festejado romance de Richard Yates de 1961, só agora lançado no Brasil com o mesmo título do filme, temos aqui um caso exemplar em que a arte desmente, ao seu modo, os otimismos superficiais dos caminhos por onde trilha a História contemporânea. Barack Obama certamente será um presidente bem melhor do que Bush (pois pior impossível...), mas seus discursos e ações apontam para uma tentativa de restauração dos ideais americanos como se apenas o governo Bush tivesse sido um equívoco e sabemos que “o buraco é mais embaixo”. Há condicionamentos atávicos da sociedade americana que se quer vender para o mundo todo como modelo que muitos artistas, como os grandes dramaturgos Tennesse Williams, Artur Miller, Eugene O`Neill em seus trabalhos e filmes como, por exemplo, “Onde os Fracos Não Têm Vez” de Joel e Ethan Coen já mostraram ter várias fissuras seriíssimas e que de forma alguma servem como exemplo pois, numa onda de consumismo, conservadorismo e alpinismo social movido a individualismo feroz, descartam o que o ser humano tem de mais importante que é nunca renunciar à procura da felicidade genuína, ainda que esta seja fugidia e muitas vezes encontrada em situações pontuais.

Até que ponto Barack ”Yes, We Can!” Obama vai conseguir refundar uma sociedade realmente nova? Enquanto não sabemos a resposta ou temos medo de responder, nos resta a comoção com o drama de April e Frank, nossos semelhantes, nossos modelos falhados do que gostariam que fôssemos. Há quem não goste do casal pelas razões torpes apontadas pela petulante e obtusa Helen vivida por Kathy Bates, que considera que o problema do par é ser neurótico. Diante de pessoas como Helen, só nos resta agir como o marido. Vá ao cinema ver este filme essencial e veja como. Um momento de humor ácido que o filme se permite em meio a tanto sofrimento.


Nelson Rodrigues de Souza

Horreur Concurs- Um Conto Sobre Cinéfilos


No início dos anos 80, os três cinéfilos caminhavam a largos passos pela Avenida Atlântica de Copacabana, fugindo dos pingos de chuva cada vez mais insistentes e fortes, indícios de um temporal. Tinham acabado de assistir “As Duas Faces da Moeda” de Domingos Oliveira.
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Leon- Se der cara, viva a vida! Se der coroa ...

Joaquim – É. Eu diria que é uma obra prima desconhecida .Esses críticos são umas bestas...

Arnaldo – Eu prefiro “Todas as Mulheres do Mundo”.

Vislumbraram um modesto restaurante ( modesto nas instalações, mas luxuoso nos preços – diria Joaquim mais tarde).

Leon- É. A chuva não vai passar, vamos entrar e tomar um chopinho? Que tal?

Os “parceiros da aventura cinematográfica” escolhem uma mesa no canto, sentam atabalhoadamente sob os olhares perplexos do garçom, pedem uma rodada de chope acompanhada de tira-gosto e começam então a “exalar celulóide” por todos os poros.

Arnaldo – Sabe, eu só converso sobre cinema com quem curte adoidado, se não eu enlouqueço. Lá em casa eu não abro a boca. Quando alguém me fala que viu tal filme eu já ataco logo com evasivas.

Joaquim – Eu ouvi uma vez que a vida é um plano-sequência ad infinitum... È lindo isso, não é? ... Ah!... Vocês viram no “Anos JK”? Quando Márcio Moreira Alves fez aquele discurso, que foi bode expiatório do AI-5, tem batidas de coração tiradas de filmes de Frankstein...

Leon- Por falar nisso, uma curiosidade.Vamos fazer uma brincadeira, vocês topam?

Arnaldo – Opa!... Depende...

Leon- Cada um descreve a seqüência do horror que mais o marcou. Depois a gente entra num consenso para ver qual a mais interessante. Olha, não vale o assassinato da Janeth Leigh no banheiro em “Psicose”.

Joaquim – Deixa eu começar. Eu já tenho a minha na ponta da língua. Eu não esqueço jamais.Vocês sacam aquele filme do Wyler, o ultimo grande filme dele, “O Colecionador”, com o anjo exterminador do “Teorema”, o Terence Stamp e a Samanta Eggar? Pois bem, a seqüência que mais me fez arrepiar os pelos, não é uma seqüência, foi simplesmente um close. É, um close! Apenas o rosto do colecionador... È quando fica patente que ele não pretende soltar a sua presa nunca mais... que ele não vai cumprir a promessa de libertá-la....Nossa!Eu gelei.

Leon- Pois eu estou achando que você quis ser intelectual demais. Pra mim sabe de uma coisa, a seqüência mais terrível que eu vi... vocês podem rir de mim... é horror bem explícito entendeu. Nada de pedantismo.

Joaquim – O que você está querendo insinuar, heim?

Arnaldo – Nada... nada... Deixe ele contar...

Leon – Foi no “Alien, o Oitavo Passageiro”, naquela refeição, quando todo mundo pensava que o monstro tinha sossegado, o cara começa a se sentir mal, a vomitar e o bicho sai de sua barriga, rasgando-a e surgindo imponente, metamorfoseado numa coisa parecida com foca. Teve gente que se retirou do cinema naquela hora!

Arnaldo – Bem, agora é a minha vez...

Joaquim – (cinicamente) Já sei... já sei... Você vai dizer que foi quando a amiguinha de “Carrie, a Estranha”, a visita no túmulo, depois que a mãe da Carrie morre com várias punhaladas, a casa cai, a Carrie morre... você não espera que possa acontecer mais nada e surge aquela mão por entre as flores no túmulo... puxando a Amy Irving....

Arnaldo – Não é nada disso não... Deixa eu falar.A seqüência de horror que mais me impressionou, eu vi na televisão, no horário nobre.
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Joaquim – Já sei. Já sei. Foi a moral da história editada num final de Jornal Nacional...

Leon- Não avacalha. Não avacalha.

Arnaldo – Bem, vocês sabem o que é que foi?

Joaquim – Deixa de fazer suspense cara!...

Arnaldo – Foi quando o ex-presidente Geisel discursava severamente. Tinha fechado o Congresso Nacional e decretado o pacote de abril de 1977. Eu olhava para a cara dele e tentava compreender. Os olhos dele ardiam, inclementes. Passava um pito na gente. Mas me deu um frio na espinha quando senti que ele não estava mentindo, sendo cínico. Falava sinceramente. Vinha do fundo do coração. Ele acreditava mesmo naquela loucura toda. Estava crente de que fazia o que deveria fazer, que aquilo tudo era o melhor para nós. Isso nos tirava qualquer alívio...

A esta altura até o garçom e demais convivas já estavam atentos. Joaquim e Leon escutavam estupefatos.

Arnaldo – Sabe, eu me lembrava daquela música “Somos Todos Iguais Nesta Noite” (Canta timidamente o estribilho).

“Pede à banda pra tocar um dobrado
Olha nós outra vez no picadeiro
Pede à banda pra tocar um dobrado
Vamos dançar mais uma vez.”

Leon– Opa! Vamos quebrar esse clima de tragédia grega, esse baixo astral.Golpe baixo o seu, heim?... A gente não precisa nem discutir quem ganhou.Vamos ver se a gente muda de assunto.
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Joaquim – Bem pessoal, o garçom já está fazendo sinal, pois ele quer fechar essa espelunca aqui. Não sabia que fechava tão cedo. Que tal a gente se encontrar amanhã no Ricamar pra assistir “Orgia ou o Homem que Deu Cria” do João Silvério Trevisan? O filme ficou proibido durante anos....

Caminharam então por Copacabana com os pingos de chuva agora fracos e conversaram, com um atropelando o outro, sobre as seqüências mais eróticas do cinema.

Nelson Rodrigues de Souza