quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A Camuflagem das Ideologias














A Camuflagem das Ideologias

Três filmes recentes mexem com limites de meus valores pessoais (ou seriam idiossincrasias?). Qual a melhor atitude ao se avaliar um filme? Despir-se destes valores? Não concordo. Estes valores estão aí e desde que sejam explicitados eles devem/merecem ser pontuados ao se comentar um filme. Temos sim que tentar entrar na cabeça dos personagens, mas não podemos simplesmente avaliar as obras neste universo fílmico que adentramos. A interação entre o mundo dos personagens e nossos valores ( que são mutantes) é que vai refletir o que realmente achamos dos filmes. Negligenciar nossos valores mais íntimos resulta num texto que soa falso. Por exemplo: por mais que sejam belos e tecnicamente muito bem feitos “Olimpíada” e “O Triunfo da Vontade” de "Leni" Riefenstahl ( dos quais só vi partes e já foi suficiente) a ideologia nazista que os impregna me causa uma náusea violenta que me impede de ter respeito e admiração por estes filmes. Bolinha preta para eles, em que pese valores artísticos que se possa garimpar.

Três filmes recentes mexeram em cordas sensíveis minhas. Um deles é “O Discurso do Rei”, já comentado no Post anterior, onde certo ar chapa-branca, para mim que sou totalmente avesso ao regime monárquico em qualquer tempo, dá as caras com força, ainda que com grande talento artístico e grandes interpretações. Assim considero-o um bom filme, mas não mais que isto, pois esbarra em convicções minhas que pelo momento não vejo jeito de mudá-las.

Outros dois filmes serão comentados adiante onde problemas análogos irrompem e um quarto filme mostra quando qualidade artística superior rima com ideologias para mim aceitáveis.

(Os textos a seguir contém spoilers, ou seja, detalhes fundamentais das narrativas são adiantados para a pretendida análise)

1) “ O Vencedor” de David O. Russell

Aqui há o álibi de se basear numa história real. Mas há maneiras e maneiras de nos aproximarmos destas histórias. Com distanciamento crítico ou grande adesão emocional, que é o que aqui acontece.

Dicky Ecklund (Christian Bale, fenomenal) já teve seus grandes dias como lutador de boxe. Agora viciado em crack, decadente, quer (como toda sua imensa família de irmãs), assim como a mãe de espírito empresarial mambembe Alice (Melissa Leo, excelente), fazer do irmão Micky Ward ( Mark Wahlberg num personagem que vai crescendo com vigor) um grande campeão do boxe em sua categoria.

As lutas que Alice agencia são precárias. Uma delas com alguém de peso bem maior que o de Micky provoca-lhe fortes ferimentos no rosto. Ao conhecer Charlene ( Amy Adams) uma jovem também com certas disfuncionalidades, Micky passa a ser incentivado a pensar com sua própria cabeça.

Por um bom tempo acompanhamos através de uma direção, roteiro e interpretações de alto nível uma história de um perdedor contumaz induzido por uma família pesada. Paulatinamente Micky vai tentando se desvencilhar dela, principalmente depois que o irmão que o treinava, briga com policiais e vai preso.

Muitas reviravoltas o roteiro ainda nos reserva. Tudo filmado de forma magnífica. Mas é na culminância de tudo onde o filme escorrega, resvalando em clichê. Pode-se argumentar que a história é real, mas a realidade também pode ser clichê e deve ser retrabalhada na ficção.

Na minha visão de mundo o boxe não é esporte. Se é mesmo, trata-se de uma abominação que remete às lutas romanas de gladiadores diante de uma plateia sequiosa de sangue, ferimentos e mortes. Claro que no boxe tudo que a ancestralidade mostrava foi atenuado por supostas regras do jogo. O fato é que com regras ou sem regras o que eu vejo é um espetáculo dantesco onde temos uma plateia histérica em busca também de sangue, ferimentos e até golpes no baixo ventre, tudo valendo para que seu boxeador favorito leve seu adversário ao nocaute ou numa hipótese menos agradável, que ele ganhe por pontos.

Em sua última parte, em “O Vencedor”, depois de reconciliações um tanto piegas, temos todos assistindo a uma grande luta de Micky, que depois de quase beijar a lona, encontra forças “surpreendentemente” e vence o adversário para felicidade de todos.

Ao mostrar os antecedentes desta vitória e ela propriamente dita, bem como as comemorações, o filme perde todo o pudor e nos mostra tudo como realmente uma grande festa, sendo caudatário de toda aquela “arena romana”, um tanto quanto previsível e caindo nos desvãos dos filmes clichês de vitórias no boxe.

Filmes como “Menina de Ouro” de Clint Eastwood ou “Touro Indomável” de Martim Scorsese não nos polpam de imagens chocantes de luta de boxe, mas há um distanciamento crítico salutar que nos permite ver o avesso de tudo aquilo, não havendo ar triunfalista, muito pelo contrário. No campo da luta livre, “O Lutador” de Darren Aronofsky também não doura a pílula: o salto que Mickey Rourke dá ao final das cordas vai levá-lo provavelmente à morte, pois está com problemas sérios de coração, mas não se integrou ao mundo exterior e só viu sentido na vida, ao voltar para o mundo das lutas.

Se “O Vencedor” correspondesse à história real, mas não criasse com sua câmera algo tão triunfalista teríamos mais que um bom filme, algo bem maior que “um dos filmes do Oscar”.

2) “Bravura Indômita ( EUA/ 2010) de Joel Coen e Ethan Coen

Segundo os Irmãos Coen “Bravura Indômita” não é uma refilmagem do filme homônimo de Henry Hathaway (EUA/1969) que deu o Oscar de melhor ator a John Wayne. Trata-se aqui de um apoio maior do romance “Bravura Indômita” de Charles Portis. Mas como veremos, a não ser por momentos de ironia aqui e ali, principalmente ao final, não temos um trabalho reconhecidamente autoral dos Coen, com suas reviravoltas irônicas de narrativa e seu sentido de absurdo não só do destino mas das relações sócias.

O pai da jovem de 14 anos Mattie Ross (Hailee Steinfield, surpreendente e excelente) é assassinado e roubado brutamente por Tom Chaney (Josh Broslin, mal aproveitado). Como Tom foge para uma reserva indígena a polícia federal não se arrisca a ir capturá-lo. Mattie deixa o irmão mais novo aos cuidados da mãe em estado de choque e contrata os serviços de um federal beberrão com muitas mortes nas costas, Rooster Cogburn (Jeff Bridges, mais uma vez excelente). LaBoeuf (Matt Damon, excelente quando tem espaço no filme) é um Texas Ranger que também está atrás de Tom a fim de ganhar uma recompensa. Um tanto do refinamento de LaBoeuf vai ser um contraponto da ranzinzice costumeira de Rooster. Em princípio LaBoeuf não suporta a determinação um tanto autoritária de Mattie, alguém que se fala muito em buscar o trabalho de advogados, está mesmo movida é pelo sentimento atroz de vingança.

“Valente” de Neil Jordan e “Menina.Má.com” de David Slade são filmes que se pode considerar “bem feitos”. Mas estes têm um defeito imperdoável: são francamente fascistas na defesa do sentimento de vingança até as últimas consequências. Enfim, são obras que eficiência técnica a parte merecem “bolinhas pretas”. Estão longe do estilo paródico de Quentin Tarantino que levamos e não levamos a sério ao mesmo tempo, exercitados em “Kill Bill Volumes 1 e 2”, “Prova de Morte” e “Bastardos Inglórios”, obras em que o espírito de vingança move as narrativas mas é muito mais um exercício de estilo do que uma convicção. E pelo excesso atingem certa hilariedade que suaviza paulatinamente sentimentos pouco nobres do ser humano.

Mattie está para receber uma facada no pescoço desferida por Tom. Com uma dádiva dos deuses, LaBeouf que estava há muito tempo fora do quadro, aparece e a salva, nocauteando Tom. Mas Mattie cai numa fenda onde temos várias cobras venenosas. Ela pede por socorro e Rooster que com sua “bravura indômita” já havia enfrentado quatro bandidos e vencido a luta, adentra o buraco e atira nos animais peçonhentos, mas um deles pica o braço de Mattie.

Deixando aflorar o sentimento de amizade que desenvolveu em relação a Mattie Rooster a leva à cavalo à procura de tratamento mas o animal cede ao cansaço. Uma casa tem a luz acesa. Uma pessoa aparece. Corte. Mattie já adulta, 25 anos depois, que já narrava a história desde o início é retomada como narradora e a vemos sem um braço, agora solteira, um tanto amarga , contando o destino que os companheiros de aventura tiveram.

É este final bastante irônico (que muitos podem interpretar como moralista) que ao seu modo redime os Coen de estar fazendo um western tradicional. Mattie que correu tantos perigos ao querer com todas suas forças interiores se vingar do assassino do pai, acaba sendo “justiçada” por seus baixos sentimentos ( outros dirão nobres....) por uma cobra.

Se não está à altura dos picos que os Irmãos Coen já atingiu, “Bravura Indômita” é um bom filme que corre o risco de se igualar ao fascismo e machismo típicos de muitos westerns mas que ao seu modo, consegue escapar desta armadilha.Ma non troppo.

Já deve ter dado para perceber que um dos meus valores com os quais “Bravura Indômita” briga é com a concretização de vinganças. Admito claro que os sentimentos de vingança surjam. Isto é bastante humano. Mas é humano também trabalhar estes sentimentos e deixar o que resta de justiça e leis fazerem o resto.

3) “Onde os Fracos Não Tem Vez” (EUA/2007) de Joel Coen e Ethan Coen

(O texto foi publicado originalmente no Jornal Montblãat. Aqui se encontra com correções, acréscimos, cortes e atualizações)

Nenhum Altar Para a Deusa Justiça

Quando Roman Polanski era presidente do júri do Festival de Cannes de 1991 comentou que o filme que gostaria de premiar junto com seus colegas era aquele que sem prejuízo da reflexão fosse também um ótimo entretenimento. É claro que até um árido filme como “Hitler: Um Filme da Alemanha”, dirigido por Hans-Jürgen Syberberg, com horas de câmera fixa, de “vanguarda”, mas também emulando técnicas dos primórdios da sétima arte como as de Meliés em “Viagem à Lua” (1902), pode ser uma forma de arte e entretenimento para uma mentalidade bastante intelectualizada, proporcionado grande prazer a quem o assiste. Mas não eram filmes como este que Polanski procurava. Como em boa parte de sua vasta e grandiosa obra, tendo o sucesso “Chinatown” como um dos seus momentos mais extasiantes (ainda que seu primeiro longa-metragem “A Faca na Água” seja uma obra-prima mais seca e difícil, como também o são “Repulsa ao Sexo” e “Armadilha do Destino”), o gênio franco/polonês almejava por um filme de comunicabilidade mais evidente e com grande apuro formal, técnico e artístico, não se esquecendo do gozo na fruição enquanto “espectador” mais do que como crítico, jurado ou cineasta. Sobre o crítico já chegou a dizer, ironicamente, que não passa de um colecionador de selos...

O júri acabou dando a Palma de Ouro de melhor filme para “Barton Fink- Delírios de Hollywood” (1991) dos irmãos Joel e Ethan Coen, um filme que se encaixou como uma luva nos ideais estéticos de Polanski, pois dialoga com sua própria obra, como vários outros desta dupla fantástica, ao cotejar o macabro dentro das relações humanas, com espírito crítico e agudo humor negro que se instala com sutileza. Este é um panorama mais geral. Nos detalhes as diferenças de estilo entre estes grandes cineastas se impõem.

“Barton Fink-Delírios de Hollywood” alavancou ainda mais a carreira dos Coen e se concentra na crise criativa de um dramaturgo prestigiado da Broadway, sucesso de público e de crítica, que aceita um convite para trabalhar em Los Angeles, tendo que obedecer a cânones comercialescos de um produtor a princípio compreensivo com a insegurança do roteirista principiante, que tem de trabalhar uma história que envolva luta livre e homens gordos com collant. Um homem instalado no mesmo hotel que o escritor, um “homem comum” como ele tanto adora mostrar em seus trabalhos, se envolve com ele numa ciranda de acontecimentos que beiram o surreal, gerando a inspiração para o roteiro que deve escrever.

A angústia do personagem Barton Fink no fundo revela afinidades eletivas e temas dos próprios Coen: dar vida ao que pode haver de incomum, grotesco, trágico, cômico, recorrente na vida de homens comuns da sociedade americana, quando algum elemento do cotidiano pode fugir das “alegrias catalogadas” (conforme Clarice Lispector) e desencadear o imprevisível trabalho do acaso, que parece ser muito mais fruto de um demônio brincalhão do que de um deus misericordioso, desordenando e redimensionando o que Ferreira Gullar chama de “a estranha vida banal”.

“Fargo” (1996), “O Homem Que Não Estava Lá” (2001) bem como o pioneiro “Gosto de Sangue” (1984), filme independente de baixíssimo orçamento para os padrões de Hollywood, grande prêmio do júri no Sundance Film Festival em 1985, obras essenciais na filmografia dos Coen, nos mostram personagens movidos pela ambição desenfreada e/ou vingança que arquitetam planos que os envolverão numa roda-viva, muitas vezes feita de sangue, violência, desespero, obstinação, crueldade, perseguições estilo gato X rato, etc..., num caleidoscópio de reviravoltas, sempre filmadas com notável plasticidade, delimitando com frescor, clareza e densa poesia visual, os seres prisioneiros de enrascadas as mais variadas.

“E o pássaro viu-se livre para ir em busca de uma nova gaiola”. Esta é uma pequena síntese da condição humana que nos dá Franz Kafka. Essa questão que também é uma angústia metafísica permeia a obra dos Coen. Há os imperativos morais categóricos driblados e vilipendiados. Homens fogem às suas responsabilidades éticas, movidos muitas vezes pelo mais vil e galopante argentarismo. Com os homens fugindo de uma gaiola para encontrar outra, as consequências dos seus atos humanos (ou muitas vezes desumanos), entretanto, são dificilmente abarcadas por o que se chama de “justiça dos homens”. Há uma força superior que tanto pode protegê-los como, o que mais acontece, ampliar seus becos sem saída.

“Onde os Fracos Não Têm Vez”, vencedor de vários prêmios da crítica americana, de sindicatos da classe artística dos EUA, Oscar de melhor filme , direção, ator coadjuvante para Javier Bardem etc. (apesar de fugir bastante do estereótipo do que se convencionou chamar de “filme do Oscar”), representa a maturidade artística dos Irmãos Coen, aquele filme em que forma e conteúdo se imbricam de forma ainda mais bela, contundente, envolvente e chega a ser até curioso que isto se dá quando eles não estão trabalhando com seus ótimos atores fetiches, como Frances McDormand, John Turturro, Steve Buscemi etc. A obra traça por metonímia, numa história ambientada numa localidade do Texas próxima à fronteira com o México, em 1980, um retrato agudo, visceral, assustador (definitivo e irreversível?), de uma sociedade em agonia ética, moral e espiritual que se afogou num oceano de materialismo empedernido e consumismo compulsivo, fruto de uma originária pseudo-ética tida como protestante, fundamentada em chavões como “In God We Trust”( ou seria Gold/Ouro?), “There is No Gain Without Pain”( “Não Existe Ganho Sem Dor”) que prometia construir a sociedade mais bem acabada do planeta, ainda que com imperfeições que uma entidade impalpável e caprichosa chamada mercado corrigiria o mais que pudesse.

Esta utopia da mediocridade foi sendo imposta como modelo ao restante do planeta, muitas vezes a ferro e fogo, guerras e golpes militares programados e insuflados ou até mesmo, conforme revelou Frances Stonor Saundeurs em “Quem Pagou a Conta? A Cia na Guerra Fria da Cultura” (Record/2008), por um insidioso e dissimulado investimento desta agência em instituições como a Fundação Ford, que patrocinaram intelectuais renomados ou não, para divulgar o american way of life mundo afora em palestras e/ou artigos em revistas “respeitáveis”. Afinal como os EUA não têm Ministério da Cultura era imperioso para a Cia fazer este trabalho, mesmo que sub-repticiamente, para se contrapor ao temido e famigerado poder do “ouro de Moscou” que circulava pelo planeta....

Há quem postule que “Onde os Fracos Não Têm Vez” comente o estado das coisas no mundo. Discordo. Como “Dançando no Escuro”( 2000), “Dogville”(2003) e “Manderlay”(2005) de Lars Von Trier, é dos EUA mais especificamente que se trata. Claro que vale a máxima de Léon Tolstói de que quanto mais se retrata a própria aldeia mais se torna universal e são inevitáveis os pontos de contacto com o que ocorre em outros países de um mundo que se proclama globalizado, mas odeia que certas pessoas cruzem fronteiras ( no filme comenta-se que os coiotes não vieram até os mortos mexicanos esparramados no chão porque não gostam desta carne...). Mas ao retomar a paisagem desértica do velho Oeste, no Texas, ícone de tantos filmes que já vimos do “gênero americano por excelência”, que é o western, os irmãos Coen nesta dolorida obra-prima, no fundo, de certa forma, celebram (se é que esta palavra é adequada) o funeral deste gênero em que de alguma forma, no último momento “o mocinho” dava um jeito de impor a lei mesmo que com a força das armas e capturava ou matava o “bandido”. Em relação ao Brasil, Caetano Veloso comentou numa de suas belíssimas letras/poemas: “Aqui tudo é construção é já é ruína”. Já os Coen parecem nos dizer: “O que pensávamos ser uma grande construção, perdeu-se numa trajetória de equívocos e hoje se mostra uma ruína”.

“Onde os Fracos Não Têm Vez” também alude ao fascínio/fetichismo que há na sociedade americana por armas como nos instigantes “Tiros em Columbine” (2002) de Michael Moore, “Na Mira da Morte” (1968) de Peter Bogdanovitch e “Elefante”(2003) de Gus Van Saint ( este de uma forma bem elíptica). No filme dos Coen, personagens manipulam armas como se estas fossem uma extensão natural do próprio corpo. Os Coen não nos poupam em muitos momentos dos efeitos “plásticos” dos tiros. Tirar balas e resíduos de disparos do próprio corpo passa a ter a naturalidade de quem faz as unhas das mãos e dos pés. A ausência de trilha sonora do filme amplia a tensão dos silêncios e dos tiros emitidos. Há apenas música quando aparecem mariachis no México cantando e nos letreiros finais.

No mundo de “Onde os Fracos Não Têm Vez” o que seria mais apropriadamente o chamado homem comum é Llwelyn Moss (Josh Brolin, excelente), um ex-veterano das intervenções catastróficas no Vietnã, soldador, aposentado, casado com Carla Jean (Kelly Mcdonald). Numa caçada de cervos numa planície deserta típica dos westerns clássicos, ele acaba após algum tempo de perscrutação, se deparando com “um panorama após a batalha”, onde se vê corpos de mortos caídos no chão e carros parados, com vidros estilhaçados, dispostos de forma transversal. O filme jamais nos explicará com detalhes o que de fato aconteceu e nem precisa. Ele se abre com uma narração em off do representante do poder público, o homem da lei e xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones, majestoso e comovente), nostálgico dos tempos em que seu pai e o avô, também na mesma atividade, impunham respeito à lei até mesmo sem armas.

Llwelyn se apodera de dois milhões de dólares de um homem morto ao pé de uma árvore, fruto de algo que deu muito errado, o que ele não compreende, tendo travado contacto humano apenas com um homem agonizante que lhe pede água sofregamente, o que ele não tem. Vendo no dinheiro fabuloso a grande chance de sua vida e da sua esposa, mesmo assim, com inquietações morais, Llwelyn volta para dar água ao suplicante como uma forma de reparação, o que não será algo pacífico. O que ele não contava é que um aparelho instalado por entre as notas colocadas numa maleta, um transponder, permite o rastreamento de suas movimentações por um perigosíssimo e suis generis psicopata, com sua arma cilíndrica de ar comprimido, com a qual pratica rituais sádicos e sanguinolentos, um dos personagens mais fascinantes e terríveis do Cinema (desde o canibal Hannibal Lecter de “O Silêncio dos Inocentes”-1991, de Jonathan Demme não vi nada igual ), Anton Chigurh, genialmente composto pelo grande ator espanhol Javier Bardem, com uma cabeleira típica dos Beatles em seus primórdios, uma das tantas ironias com que os Coen adoram rechear suas obras.

A Ed Tom Bell num clima de pré-aposentadoria, resta a missão inglória, feita com um misto de tédio, desencanto, melancolia (alguém com consciência crítica da própria impotência diante destes novos ares, deste novo país onde não há lugar para um homem “dos velhos tempos” como ele), de pelo menos tentar salvar Llwelyn de seu algoz perseguidor já que prender Anton é uma missão ainda mais titânica e escorregadia, uma tarefa de Hércules para a qual não enxerga em si mais “músculos”, tanto no sentido físico como psíquico e político-social. É isto que sintetiza o belíssimo título original do filme que é o mesmo do romance no qual se baseou, “No Country For Old Men” de Cormac McCarthy, traduzido no Brasil pela Alfaguara/Objetiva como “Onde os Velhos Não Tem Vez”. Esta não é a melhor tradução, mas é bem superior em exprimir a essência da obra do que o ridículo “Onde os Fracos Não Têm Vez”, que sugere uma ideia errônea do filme, uma visão proto-nazista da qual este passa longe.

Mesmo com a onipotência demoníaca de Anton que quer decidir se uma pessoa merece viver, impondo que ela jogue cara ou coroa com uma moeda, não se trata mais aqui de fracos e fortes. Não se pode dizer que os fortes tem vez. Por mais que haja quase que um caráter missionário de Anton que o move a espalhar o Mal, como uma maldição bíblica apocalíptica, matando pessoas com grande frieza, pragmatismo, com um olhar demencial e um sorriso zombeteiro, não se pode confundir suas baixezas e covardias com fortaleza. Já Ed Tom não é fraco. Simplesmente está imerso numa sociedade que promove a falência da boa vontade, da generosidade, da coragem e dos impulsos altruístas em nome de um espírito individualista atroz, travestido de ideologia básica e despojada de autoritarismo, onde o capital floresceria, numa falácia histórica com muitos adeptos. Llwelyn não negocia e se agarra com obstinação e leviandade à ideia de ficar com a dinheirama mesmo que ele e sua mulher corram sérios riscos de vida, o que não se pode chamar com propriedade de força.

“Onde os Fracos Não Têm Vez”, como é de hábito nos trabalhos dos Coen, é minimalisticamente calculado, com planos e angulações magníficos que se sucedem como se para tudo tivesse havido storyboards muito bem estruturados. Aumenta o fascínio pelo filme sentir que se fosse um roteiro original deles (como tem sido hábito) não nos soaria nada estranho. Eles transfiguraram o universo do romancista Cormac McCarthy, em temas autorais emblemáticos de sua poderosa obra. Por mais que os EUA sejam o iceberg, de onde vemos a ponta Texas, algumas questões quase que metafísicas se impõem, como, principalmente, no majestoso “O Homem que Não Estava Lá”. Neste um barbeiro descobre que a mulher tem um caso com o patrão dela e passa a chantagear este com uma carta onde ameaça tornar pública esta relação, querendo dinheiro para uma sociedade que pretende montar para sair de sua vidinha medíocre. Como é de hábito nos Coen nada sai como se programa. A ganância humana tem um custo alto. Mas há um diabolismo que gera o acaso e engendra surpresas para os personagens e o espectador que são sempre fascinantes, formando com a ambição desmedida uma combinação explosiva.

Para os Coen o Inferno certamente é aqui mesmo na Terra. A temperatura de seus círculos dantescos é que varia de região para região, de filme para filme. Nos chamados Estados Unidos da América, nos mostra estes travessos irmãos, a temperatura está elevadíssima e tem piromaníacos em cargos elevados. O fogo queima as almas incautas, desprevenidas, arrogantes ou até mesmo inocentes (se é que esta palavra ainda cabe neste contexto). Barack Obama foi eleito como uma tábua de salvação possível. Hoje este democrata de muitos planos se vê emparedado pelos republicanos. Será que ainda há meios, mantendo uma filosofia política primordial que já nasceu torta, para criar um país onde os “velhos homens” ainda tenham espaço?

Nelson Rodrigues de Souza

Ps1 Um ótimo contraponto à temática de “Onde os Fracos Não Têm Vez” é o bom “O Gângster” (EUA/2007) de Ridley Scott, da mesma safra, baseado na incrível história real de um mafioso negro do Harlem dos anos 70, Frank Lucas( Denzel Washington), que venceu com “galhardia” outros concorrentes poderosos no tráfico de heroína, que era processada com ótima qualidade de manipulação, com grande grau de pureza, vendida a preços baixos, tida como a “mágica azul”, vinda diretamente da Indonésia, escondida em caixões de soldados mortos no Vietnã, com a cumplicidade de autoridades militares americanas ( viés que o filme não desenvolve pois seria longo demais). Um policial incorruptível, Ritchie Roberts (Russell Crowe), autêntica flor do lodo em que circula, prende este famoso marginal. Com a contribuição deste, um esquema de corrupção colossal na polícia na área de narcóticos foi desbaratado. O gângster mesmo tendo várias mortes horrendas e “pedagógicas” em seu histórico de vida bandida foi solto 15 anos depois, saindo em 1991, anistiado pelos “altos serviços prestados”. É tudo verdade mesmo? Ficção? Qual é a regra? É uma exceção? Ainda há heróis como os do velho western? Ricardo Calil comenta na Bravo! de janeiro de 2008 que assim como o “lado empresarial” singular da vida de Michael Corleone ( da série “O Poderoso Chefão”) está sendo estudado em universidades americanas na área de economia, o mesmo vai acabar acontecendo com Frank Lucas, o “gângster americano”, conforme o título original. E o “lado empresarial” de Fernandinho Beira-Mar também vai ser estudado em universidades brasileiras?

Ps2 Pode-se vislumbrar um anti-americanismo no meu texto. É verdade. Não está camuflado.

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Nelson Rodrigues de Souza

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Realidades da Realeza















Realidades da Realeza

1- “O Discurso do Rei” de Tom Hooper (Reino Unido/ Austrália/ EUA/2010)

O Discurso da Maquiagem Histórica

“O Discurso do Rei” é uma obra competente em todos os seus planos cinematográficos onde se destacam as exuberantes e tocantes interpretações de Colin Firth (Rei George VI, “Bertie”) e Geoffrey Rush (Lionel Logue). Mas é um filme limitado, roçando a decepção. Vejamos o porquê mais adiante.

Na década de 30 o Rei George V (Michael Gambon) morre e faz do seu filho mais velho David, o Rei Eduardo VIII (Guy Pearce). Mas este pretende unir-se a uma americana duplamente divorciada, o que se torna inadmissível para a posição que ocupa, pois um rei também é chefe da Igreja e isto ela não permite. Assim abdica de sua condição e faz do irmão Bertie que luta contra uma gagueira desde os quatro anos, o Rei George VI. Este já há certo tempo estava em terapia da fala com Lionel Logue, que percebe que para ser bem sucedido precisa quebrar couraças do Duque depois feito Rei, bem como aproximar-se dele como pessoa comum e não como mais um súdito. A incontornável entrada da Inglaterra na Segunda Guerra Mundial vai fazer o Rei George VI (pai da Rainha Elizabeth que vimos em “A Rainha” de Stephen Frears) aumentar sua ansiedade e necessidade de superar seu cacoete linguístico para proferir um importante discurso onde conclamará todos os segmentos do império inglês a lutar ao seu modo contra Hitler e sua perversidade inexcedível até então. Assim, com o apoio emocional e prático da mulher (que descobriu Lionel), Rainha Elizabeth (futura Rainha Mãe), vivida com brilho suave por Helena Bonham Carter e a fundamental terapia que caminha de muitas dúvidas, hesitações e dissensões para se chegar a uma entrega essencial, o Rei gago tem evolução de suas circunstâncias para uma situação que não é difícil de se prever, mas que mesmo assim, com uma ótima montagem, não deixa de carregar considerável emoção.

Pelos letreiros finais tomamos ciência do quanto a relação Lionel/Rei ainda evoluiu para discursos eloquentes que levantaram o moral dos súditos. No filme o futuro primeiro ministro Winston Churchill (Timo Spall) tem uma aparição apagada como um gordo bonachão que fala sobre como aprendeu a fazer de sua língua presa uma qualidade. E não muito mais que isto. Nos letreiros finais nenhuma menção ao seu papel de grande estadista durante a Segunda Guerra Mundial. Tudo se passa como se a monarquia tivesse tomado as rédeas das mais importantes decisões.

Em “O Discurso do Rei” a monarquia é vista de uma forma higienizada, chapa-branca, onde os maiores problemas surgem da gagueira de um Rei ou de outro que quer fazer valer sua vida amorosa acima do prestígio da realeza. Outras dissensões nos são omitidas. Assim estamos longe dos conflitos flagrados por Stephen Frears em “A Rainha” que de certa forma também são suavizados.

Há sequências simples e belas como a estupefação de Myrtle (Jenniffer Ehle) mulher de Lionel ao estar diante do Rei e da Rainha ou quando Lionel é deixado para trás na estrada, triste. Os duelos entre Lionel e o Rei se ao mesmo tempo tem inegável sabor por outro lado pecam por uma excessiva teatralidade, fazendo-nos pensar se não estaríamos melhor vendo uma peça com o tema tratado. A continuada gagueira do Rei por melhor que seja o trabalho minucioso de Colin Firth chega a se avizinhar da chatice.

O povo é o grande ausente de um filme que procura cerrar fileiras nos problemas monárquicos. Ele só aparece de uma forma distante numa sequência de certo impacto e beleza visual (até certo ponto previsível) para fechar o filme num grand finale.

Candidato a vários Oscars, sendo agora favorito aos prêmios principais, superando o insosso “A Rede Social”, “O Discurso Do Rei” é mais um belo filme de superação, mas que teria que se enfronhar com vários outros elementos para ser uma obra que realmente levantasse grandes voos.

Ps. Nem vou entrar na questão de que David era ou não simpatizante do nazismo.

2- “A Rainha” de Stephen Frears (Inglaterra/2006)

(Este texto foi publicado originalmente no Jornal Montblãat, estando aqui com cortes, correções, acréscimos e atualizações )

Intolerâncias e Hipocrisias Privadas, Virtudes Públicas.

Em 31 de agosto de 1997, fugindo de uma perseguição de incontroláveis paparazzis, a ex-princesa Diana Spencer (Lady Di), seu namorado, o milionário Dodi al Fayed e o motorista morreram tragicamente num acidente em Paris. A mesma mídia que por uma de suas faces perversas provocou indiretamente estas mortes, ajudou a criar um transe midiático em que Diana e sua vida passaram a ganhar conotações de santidade. Não há como negar os trabalhos assistenciais com que ela estava envolvida em seus últimos anos de vida, mas as repercussões de sua tragédia ganharam na Inglaterra, com ecos mundo afora, uma dimensão de autêntica histeria coletiva, incentivada pela mídia internacional como mais um fato transformado em factoide a gerar, de modo geral, manchetes e mais manchetes, matérias e mais matérias, efetivamente sensacionalistas ou disfarçadas de sobriedade.

“A Rainha” de Stephen Frears (Inglaterra/2006), depois de nos apresentar um Tony Blair (Michael Sheen, com notável semelhança) recém-eleito primeiro ministro e suas aproximações quase que cômicas com a rainha Elizabeth II (Helen Mirrren), cumprindo rituais anacrônicos, joga a nós espectadores e seus personagens no turbilhão de emoções desencadeadas pela morte de Diana. A rainha, sediada na residência de campo de Balmoral, na Escócia, a princípio quer separar totalmente os acontecimentos em algo privado que diga respeito à sua família e na esfera pública num fato que não seja pertinente nem aos seus familiares, pois Diana ao separar-se do Príncipe Charles (Alex Jennings) e optar por uma vida, a seu ver exibicionista, não faria mais parte da família real. O que importaria realmente seria cuidar das reações de seus netos Harry e William.

Tony Blair percebe a dimensão pública do que está ocorrendo. Seu assessor lhe sugere referir-se a Diana como “a princesa do povo” e é assim que ele passa a tratá-la em seus discursos. O Príncipe Charles vai a Paris num ritual para trazer o caixão de sua ex-companheira para Londres. Cedendo a pressões, a rainha concorda em transformar o enterro em algo grandioso com a presença, para desgosto manifesto do marido Príncipe Philiph (James Cromwell), de celebridades como artistas famosos, incluindo entre eles, homossexuais como Elton John.

A capitulação inicial da rainha não é suficiente para as massas comovidas com a morte de sua eterna princesa. A frente do portal do Palácio de Buckingham, em Londres, é coberta com centenas de ramalhetes de flores e passa a ser objeto de peregrinação. Mas a multidão quer a que a bandeira seja hasteada a meio-pau, manifestações objetivas de pesar e a presença da rainha nos rituais de despedida de sua princesa. Tony Blair com um olhar atento no marketing pessoal, outro com consciência do abalo que está sofrendo a monarquia, transmite à Elizabeth II, essa tataraneta da Rainha Vitória, a notícia de que uma boa parte dos ingleses naquele momento seria a favor da extinção da instituição monárquica. Um acirrado conflito entre a tradição arraigada, mofada e modernidade de Big Brother, se instala com força maior.

Esta obra de Stephen Frears tem um roteiro apurado de Peter Morgan (vencedor do Globo de Outro de 2006), bela fotografia do brasileiro Afonso Beato (que já teve vários trabalhos com Almodóvar), eficiente montagem de Lucia Zucchetti (alternando algumas cenas de documentários e ficção e tornando-as sutilmente confundíveis algumas vezes), sutil trilha sonora de Alexandre Desplat e uma elegante e competente direção. Aqui e ali os jogos políticos e humanos em questão recebem algumas espetadelas: Cherie, mulher de Blair (Helen McCrory), mostra-se anti-monarquista e comenta que um discurso da rainha ao contrário do que esta propala, não vem do coração, não tem nenhuma sinceridade; a rainha tem seu jipe enguiçado num pequeno rio como uma metáfora visual da condição retrógrada de seus ideais e condicionamentos sociais, chegando a chorar, o que é uma raridade; um belíssimo cervo morto provoca muito mais dor à rainha do que a morte da nora que seguiu uma vida a seu ver mundana e que de certa forma teria colhido o que havia plantado; o próprio Tony Blair com seu bom-mocismo suspeito é colocado em xeque por Elizabeth II, quando ela lembra-lhe que o abalo que teve, deve acontecer um dia com ele. Helen Mirrem como a rainha está não menos que extraordinária: não só suas palavras econômicas são bastante significativas e estão num tom imperial perfeito, como seus pensamentos passam a ser transparentes. Seus gestos, esgares, dúvidas, seus atos de elegante anacronismo são nada menos que perfeitos também. Não é à toa que na temporada de prêmios de 2006/2007, merecidamente tenha ganhado todos, inclusive o Oscar de melhor atriz, tendo ainda conquistado um dos mais nobres que é o Copa Volpi de melhor atriz do Festival de Veneza de 2006..

Assim tudo conspiraria para termos um filme cinematograficamente plenamente realizado e crítico. O resultado como um todo, entretanto, nos mostra algo um tanto diferente. Estamos aqui tanto longe da deliciosa “bobagem” descartável “Senhora Henderson Apresenta” (2005) com um trabalho soberbo de Jude Dench, como do dolorosamente cáustico e trágico “Ligações Perigosas” (1998), provavelmente o mais belo filme de Frears, baseado no romance epistolar de Choderlos de Laclos, um dos jogos de perversões de tinturas aristocráticas mais impressionantes do cinema, com uma extraordinária Glenn Close, capitaneando um elenco magnífico. Em “A Rainha” tudo nos parece meticulosamente calculado para que apesar das sutilezas críticas que emergem aqui e ali, todos ao fim e ao cabo, “saiam bem na foto”. Se o filme não contasse com uma atriz em desempenho tão extraordinário como Helen Mirren, que traz humanidade para personagem tão encalacrada em convenções, intolerâncias e que evolui na narrativa no sentido de camuflar hipocrisias, as fissuras do filme estariam mais expostas.

Se conseguíssemos encarar o filme como uma obra totalmente de ficção, sem elos com personagens reais, o que nos é ainda mais impossível pela sua estrutura, talvez tivéssemos uma visão mais generosa e compassiva dos personagens. Mas na forma como tudo é mostrado, a adesão latente, disfarçada, a um ideal monárquico ultrapassado “que muda para tudo continuar como está” e a visão de um Tony Blair em início de carreira como um “herói de diplomacia”, preocupado em salvar a monarquia, resultam bastante incômodas. Principalmente em se tratando de um político que se transformou pateticamente, depois de três mandatos consecutivos, segundo corajosas palavras públicas no recebimento do prêmio Nobel de Literatura de 2005, do dramaturgo, poeta, roteirista e ensaísta inglês Harold Pinter, num criminoso de guerra, sendo que sua propalada terceira via econômica e política se mostrou um engodo completo. O filme sinaliza em pontos específicos para a possibilidade desta farsa em evolução, mas tudo é muito tênue demais. Ter de encarar Blair como alguém que recebe conselhos políticos da rainha é algo ainda mais incômodo.

Para quem deseja ver retratado um mundo onde “tudo deve mudar para continuar como está”, com humanismo, sem desprezo pelos seus personagens, mas com uma visão histórica realmente ampla,multifacetada e crítica, recomenda-se “O Leopardo” (1963) de Luchino Visconti. Para quem quiser travar contacto com os limites esgarçados de lutas intestinas e exteriores com que um sistema monárquico pode se envolver, recomenda-se “A Rainha Margot” (1994) de Patrice Chéreau. “A Rainha” na visão de Stephen Frears é um filme bom, no limite da frivolidade, que de extraordinário tem mesmo é sua atriz protagonista, que já esteve presente num filme magnífico e profético, onde um intelectual era assassinado com livros que lhes eram enfiados boca adentro: o assombroso “O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e o Amante” (1989) do gênio Peter Greenaway. As metáforas de Greenaway, com seu visual arrebatador e transgressor, lançam luzes (e trevas) sobre a Inglaterra de hoje, de um modo com que “A Rainha”, com seu plano final de aluno aplicado de Escola de Belas Artes que acaricia um modo de vida a ser preservado, condenado a se eternizar, nem sonha.

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Nelson Rodrigues de Souza

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O Divino Drama Humano


















O Divino Drama Humano

1- “Lixo Extraordinário” de Lucy Walker e co-direção de João Jardim e Karen Harley

Os trabalhos de Vik Muniz são inequivocamente extraordinários: eles não se restringem à belíssimas composições com lixos reciclados, mas também há rostos de meninos feitos com açúcar, divas de Hollywood construídas com diamantes, mapa-múndi feito de sucata de computadores, etc.

Vik teve como origem uma família pobre de São Paulo. Ganhou dinheiro como indenização após ter sido ferido numa briga e assim comprou passagem para os EUA, aonde chegou também a trabalhar com limpeza até conseguir estudar, produzir e ser o Vik que conhecemos, um artista consagrado internacionalmente. O que ele não esconde, permitindo que surja um tanto de vaidade onde poderia surgir hipocrisia. Assim, ele quis devolver um tanto do seu sucesso para os trabalhos de coleta de lixo reciclável de Gramacho, onde faria fotos que reverteriam para estes trabalhadores. Chegando lá suas ideias estéticas mudaram e ele, guiado pela entrega/sabedoria e simpatia de Sebastião, líder da Associação dos Catadores de Lixo Reciclável, pediu a vários trabalhadores com que foi adquirindo mais empatia para posarem para certas fotos que ele dirigia, como uma reconstrução do assassinato do revolucionário Marat numa banheira, uma senhora com bacia na cabeça, etc.

Depois de escolher as melhores fotos, elas foram ampliadas e colocadas num galpão, onde foram vistas por uma perspectiva do alto, o que estimulou a cobertura de certos espaços vazios das fotos por lixo reciclado. Fotografadas novamente surgem imagens de alto impacto estético realizadas com “lixo extraordinário”.

Vik Muniz e alguns catadores (especialmente Sebastião), mesmo que não se escamoteie as condições de vida precária em que se encontram e as moradias frágeis, esbanjam simpatia e empatia. Assim o trabalho flui com mais naturalidade. Vik compreende o ciclo do trabalho da região e o orgulho de que muitos se investem numa atividade que teria tudo para ser muito depressiva. Principalmente quando vemos um caminhão entornar tudo e sem terminar seu trabalho já ter gente subindo para ser os primeiros a coletarem as melhores “pepitas”.

Um dos defeitos do filme é ser um tanto didático. Mas como o trabalho dos catadores e suas metamorfoses levaram três anos para serem captados pelas câmeras, por três diretores, esse viés talvez fosse inevitável. Trata-se de uma co-produção Brasil/Inglaterra. João Jardim afirmou ter filmado sessenta por cento e que o trabalho de edição final de Lucy Walker foi fundamental. Karen Harley (pernambucana, montadora de filmes como “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Baixio das Bestas”) fez imagens adicionais.

Se julgarmos “Lixo Extraordinário” pelas suas imensas qualidades, eclipsando defeitos aqui e ali, entendemos o porquê do filme ser um dos finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Uma coisa fica clara do começo ao fim: Vik não está “usando” essa comunidade. De Vik um tanto onipresente, passamos a ter como protagonistas esses seres, heroicos à sua maneira, na descoberta de uma forma de sobrevivência em que nós, mais bem nascidos, encontraríamos só o horror.O filme mostra com todas as letras como o que foi ganho é revertido para os catadores, como emoção genuína. O que soa estranho no filme é a rapidez com que uma obra é apresentada num leilão de Londres e é logo arrematada. Este universo de valorização das obras de arte é muito mais estranho do que o dos catadores. Mas não foi Vik quem o inventou.

2- “A Última Estação” (Reino Unido/EUA/ 2010) de Michael Hoffman

Leon Tolstói (Cristopher Plummer, ótimo) em 1862 casa-se com Sofia Andreevna Bers ( Helen Mirren, sensacional) e instala-se na sua propriedade em Isnaia Poliana. Ali Tólstoi escreve algumas de suas obras fundamentais como “Guerra e Paz”, “Anna Karenina” e “A Morte de Ivan Ilitch” (1886), uma sombria visão da condição humana onde a saída está na espiritualidade. Tólstoi passa a enxergar um tolstoismo em que os valores espirituais sejam elevados, pessoas vivam em comunidade em sua propriedade, e obedeçam ao celibato. Vladimir Chertkov (Paul Giamatti) com seu tolstoismo suspeito instiga Tólstoi a deixar toda sua obra para a posteridade russa. Já Sofia se sente enganada com estas tramas e quer garantir a fortuna em direitos autorais para seus herdeiros naturais. Um briga onde não faltam alguns lances burlescos vai ser desencadeada entre marido e mulher.

Valentin Bulgakov (James Mcavoy) vem para a comunidade como assistente de Tólstói mas é incitado tanto por Sofia como pelo oponente Chertkvov à uma dupla espionagem, o que faz de uma forma desajeitada. Seu celibatarismo é quebrado com Masha (Anne-Marie Duff) que tem ideias avançadas que contrastam com o tolstoismo que em tese abraçou.

“A Última Estação” tem bela reconstituição de época, desempenhos soberbos de Helen e Cristopher, histórias paralelas que dão conta de como se dá esta utopia na prática, com um toque pré-hippies (descontada as visões opostas do papel da sexualidade na vida humana).

Uma poda em alguns elementos cômicos e um aprofundamento nas questões utópicas que envolvem o projeto de fim de vida de Tólstoi, o que o leva até a romper com a mulher e sair da propriedade, tornariam o filme melhor do que é. Mesmo assim ele é irresistível.

3- “Inverno da Alma” (EUA/2010) de Debra Granik

Nas Montanhas Ozarks do Estado do Missouri vive uma comunidade fechada com suas próprias leis, mas que não tem nada de utópico como a que Tólstoi queria construir ( vide texto anterior). O que impera ali são os segredos convenientes, o espírito de Máfia e a brutalidade “quando necessária”.

O pai de Ree (Jennifer Lawrence) envolvido numa atividade ilícita da comunidade, que é a fabricação de uma droga, desaparece. Segundo a polícia ele tinha colocado como penhor a casa da família para depois de ter sido preso gozar de liberdade condicional até o julgamento. Ree é avisada de que se o pai não aparecer, ela terá de abandonar a casa onde desempenha papel vital como alguém que não só cuida dos dois irmãos menores como também da mãe em estado de crasso desatino.

Ree com firme determinação percorre as casas de onde poderia ter notícias do pai. Depois de muita hesitação acaba tendo a colaboração do tio paterno (John Hawkes) que a tratou muito mal no início e tem no semblante uma misteriosa mistura de dor, culpa, medo e raiva.

Ree (interpretada com brilho por Jennifer) se mantém estoica o tempo todo absorvendo as negativas sem se desesperar ou desistir. O problema com o filme é mostrar esta característica de Ree em excesso. Depois de vários nãos o que se espera do filme são outros nãos, até que se chegue a uma virada de narrativa. Não sem antes uma cena de grande violência.

“Inverno da Alma” é um bom filme em todos os seus propósitos e meios, mas que se ressente de um brilho mais especial. Nada justifica grande entusiasmo, mas também nenhuma depreciação. O que mais nos assusta é constatar que em pleno século XXI haja uma comunidade americana tão fechada em si, decadente economicamente, onde a saída para muitos é se alistar nas forças armadas para ir lutar nas guerras em os EUA se envolve e envolve seus cidadãos. Uma das melhores sequências do filme se dá quando Ree tenta se alistar para conseguir dinheiro e é envolvida por um burocrático carinho do examinador, que compreende ao seu modo a fragilidade da condição dela.

4- “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Reino Unido / Tailândia / Alemanha / França / Espanha/2010) de Apichatpong Weerasethakul

Tio Boonmee está com grave insuficiência renal. Sentindo a iminência do fim nesta vida terrrena vai para uma casa próxima de uma floresta com a cunhada, sobrinho e auxiliares. À mesa recebe a visita da mulher que morreu e também do filho agora como um macaco peludo com olhos reluzentes, principalmente nas noites da floresta.

A palavra chave para sintetizar o filme muitos já utilizaram, mas é inevitável repetir aqui: naturalidade. É sob o signo da placidez combinada com esta palavra que o filme se constitui, ligando homens, animais e Natureza como fazendo parte de algo maior, mas que não se apresenta de maneira óbvia e em sequências de curvas dramáticas triviais. Conversando com sua mulher, agora um fantasma, Boonmee ouve que não se deve superestimar o céu. É no apoio dela sentado na cama que o filme constrói uma de suas imagens mais fortes e belas.

Nesta obra de forte inspiração budista, onde se acredita em reencarnações até mesmo na forma de animais, é natural que se crie uma grande sequência onde uma princesa envelhecida que vê sua imagem na água mais jovem acabe por transar num rio com um bagre.

Boonmee vai amparado através da floresta revivendo encarnações até chegar numa caverna. De elipse em elipse chegaremos a uma sequência onde um monge questiona sua vida, se dividindo até em dois. Se recordar vidas passadas também é viver, estar atento ao que este nosso mundo nos oferece também ( e principalmente) é.

5- “Cisne Negro” (EUA/2010) de Darren Aronofsky

Numa sinopse básica “Cisne Negro” se mostra atraente. Nina (Natalie Portman) é a favorita para estrelar uma nova versão de “O Lago dos Cisnes”. Ela está substituindo Beth ( Winona Ryder) já um tanto velha para o papel. O diretor artístico Thomas ( Vincent Cassel) enxerga em Nina toda técnica que ela precisa para o Cisne Branco. Mas não vê a segurança, impetuosidade, certa violência e sensualidade que Nina deveria ter para também interpretar o Cisne Negro. Nina se vê ameaçada com a chegada de Lily ( Mila Kunis) que tem os atributos que ela não tem. Nina terá de encontrar em si seu lado sombrio e nesta viagem pessoal acaba se psicotizando,com fortes delírios persecutórios. Sua mãe (Barbara Hershey) numa neurótica atitude de proteção acaba prejudicando ainda mais a filha.

O que derruba “Cisne Negro” ao chão são as bombásticas criações visuais e situações grotescas próximas de um filme de terror adolescente. Assim desfilam pela tela mutilações, cortes, arranhões, muito sangue,etc. Tudo sem a menor sutileza, justamente num filme sobre o universo do balé e seus bastidores, onde se espera no mínimo um tanto de delicadeza.

Há delírios que se insinuam persecutórios e irreais que quando mostram o seu avesso ficam até inverossímeis, caso de toda sequência que começa no bar com pó na bebida, passando por uma transa lésbica que pode causar sensação em parte da plateia e não tem muita razão de ser.

Os efeitos “fantásticos” paupérrimos são tais que quando chega uma cena de delírio importante e realmente atraente como o nascimento de penas negras enquanto Nina dança como o Cisne Negro, já por exaustão, não conseguimos admirar esta criatividade simbólica.

Depois da guinada na carreira que foi o muito bom “O Lutador” (EUA/2009) com Mickey Rourke esperava-se que Darren apostasse mais na simplicidade. Ele acaba nos surpreendendo, mas num sentindo bastante negativo. Influenciado por vários filmes, o mais onipresente é “Repulsa ao Sexo” de Roman Polanski. Mas que diferença de direção e concepção visual! Polanski é gênio. Darren, aprendiz ruim.

A grande surpresa do filme é que apesar do gosto duvidoso de tudo que se vê na direção e no roteiro, Natalie Portman acredita e muito no seu personagem e acaba sendo a âncora de interesse do filme. Caso contrário, com uma atriz que fosse no máximo mediana este seria insuportável.

6- “Um Coração Fraco”, adaptação de Dostoievski por Domingos Oliveira, direção de Priscilla Rozenbaum

Na Rússia do czarismo o jovem Vássia que tem um emprego como copista (Caio Blat) divide uma pequena casa com um amigo (Cadu Fávero). Vássia chega eufórico em casa por estar de casamento marcado com Lizanka (Isabel Guerón), uma grande paixão sua que estava antes comprometida com outro homem, mas acabou por fim livre para aceitar o amor do jovem.

Vássia tem muitos papéis para copiar e pouco tempo para curtir os momentos de felicidade intensa que está sentindo. O amigo o estimula a pequenos encontros com a amada e a também ficar acordado para realizar o trabalho que o jovem tem pela frente. Mergulhado na voragem da felicidade, Vássia vai descobrindo seu lado sombrio que tem medo dela e a vai boicotando, caminhando para um estado de espírito perigoso, maníaco, onde põe em risco a própria sanidade.

Ainda que seja fruto de uma novela de um jovem Dostoievski, “Um Coração Fraco” muito bem transposto para o teatro, com uma casa que gira para marcar a implacável mutação do tempo, contém inquietações que o autor discutirá melhor mais tarde: a opressão da burocracia do sistema czarista, a ideia de felicidade e sua volatilidade, os abismos da alma humana, etc.

Com grande delicadeza e atuação soberba de Caio Blat que compõe Vássia com toda sua insegurança e êxtase que vai se transformando em depressão, temos aqui um antípoda do que vemos em “Cisne Negro” (texto mais acima). Dostoievski sonda nosso lado sombrio com sobriedade, grande calor humano e acima de tudo: generosidade.

7- “R&J- Juventude Interrompida”- direção de João Fonseca

(O texto contém spoilers, ou seja, detalhes fundamentais da encenação são comentados para uma análise mais pertinente)

Quando estive em Nova York em 1998 li uma crítica de Vincent Canby (prestigiado crítico de cinema da revista Time durante anos) muito positiva de um espetáculo teatral Off –Broadway, onde 4 atores revezam-se e fazem todos os personagens de Romeu e Julieta de Shakespeare.

Quatro alunos de uma escola interna repressiva, quando se veem em momentos de liberdade, resolvem montar com os recursos que tem Romeu e Julieta. Assim, com um lenço vermelho, magnificamente simulam sangue, mortalha e outros elementos, dispensando figurinos de época e dispositivos cenográficos.

O espetáculo em momento algum era caricato. O espírito da tragédia se manteve do início ao fim. Quando o teatro termina, toca um sino e os jovens têm de voltar à rotina opressora. Tomado pelas emoções que vivenciou, o rapaz que fez Romeu se recusa a voltar a esta realidade.

Valendo-se da adaptação de Joe Calarco, mas ignorando suas sugestões para direção, criando como os atores seus próprios caminhos, o que poderia ser uma salutar opção de João Fonseca torna-se um tiro no pé.

Na versão brasileira elementos gaiatos e carnavalescos entram em cena, alguns deles como pretexto para homenagear outras versões de Romeu e Julieta como as de Gabriel Villela e Franco Zeffirelli. Temos então sanfonas, a repetição ostensiva de “A Time for Us”, etc. Assim são muitos os momentos de riso da plateia diante do que (mesmo sendo encenado por jovens de um colégio) deveria ser uma tragédia. Não consegui maior empatia com o espetáculo e não enxerguei ali a tragédia da precipitação que é Romeu e Julieta.

No final simplesmente toca o sino da escola e não há uma conclusão sobre os efeitos que a encenação da peça teria sobre os alunos. É forçoso reconhecer que as palmas da plateia são efusivas.

Curiosamente imaginei uma corrosiva crítica de Bárbara Heliodora no O Globo. Que nada! Bárbara adorou o que chamou de brincadeira. Vá saber......

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Nelson Rodrigues de Souza