Grande Lixão: Veredas de Estamira
Quando Marcos Prado, fotógrafo, co-produtor de “Os Carvoeiros” de Nigel Noble e “Ônibus
Estamira de forma alguma pode ser tido como louca. Um diagnóstico possível para seu distúrbio mental seria esquizofrenia. Mas qualquer rótulo médico é insuficiente para explicar-nos o mistério da fertilidade e criatividade de sua mente, seu trabalho lingüístico muitas vezes de fascinante e espantosa elaboração. Há nela uma lucidez extrema de sua condição. Até mesmo quando toma remédios em que fica profundamente dopada, descreve em detalhes as conseqüências do que lhe prescreveram. Ela trabalha regularmente, tem falas de desconcertante saber e é muito forte psicologicamente como veremos adiante.
Há uma primeira parte em que tomamos conhecimento de Estamira em seu estado bruto: sua ida ao trabalho pegando ônibus, a sua chegada ao lixão, seu ato de vestir um uniforme e depois suas falas permeadas de jóias como “A minha missão, além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira”; “Às vezes é só resto. Mas às vezes também vem descuido” (o que nos lembra Adélia Prado, Manoel de Barros ou até o Riobaldo de “Grande Sertão:Veredas”); “A criação é toda abstrata. A água é abstrata. O fogo é abstrato”, A Estamira também é abstrata”; “Não existe o inocente, o que existe é o esperto-ao-contrário”; “Eu sou Estamira, eu sou a beira, eu estou lá, eu estou em todo e qualquer lugar”. Também nos é mostrado sua vida social com os colegas deste árduo ofício limite para sobrevivência, suas virulentas e intempestivas investidas verbais, principalmente contra o que chama de “Trocadilo”, uma entidade que seria responsável por suas desgraças e a dos outros. Numa primeira visão o diretor pensou em tirar seqüências muito pesadas, mas depois desistiu pois tinha de mostrar Estamira por inteiro, sem retoques, para o espectador, não mitificando-a.
O filme alterna preto e branco granulado (o que cria um universo aterrador de urubus bem pretos e garças brancas em fortes contrastes, em competição com seres humanos pelos bens possíveis) com cores que surgem tanto no lixão como no barraco que Estamira construiu
Apresentada a protagonista deste documentário fabuloso, aos poucos vamos montando um mosaico de seus dados biográficos, além da continuidade de suas falas, suas inquietações no lixão e entendendo melhor, sem explicações definitivas, o que a levou a este estado. Quando criança o avô tentou seviciá-la. Aos 13 anos o pai a colocou num bordel. Um homem a tirou de lá aos 17 anos e se casaram, tendo ela um filho, indo morar
Sem entender, nem cogitar a noção de karma, o que ninguém quis impor-lhe desta forma, Estamira revolta-se com toda força contra a idéia de Deus que os que a cercam querem lhe incutir. O neto pergunta-lhe porque ela não gosta de Deus e ela se transtorna e vocifera suas convicções de que ele está equivocado, comentando de forma pesada como essas idéias teriam chegado à cabeça do menino. Em outra oportunidade o filho insiste em falar em Deus, ela lembra sem papas na língua que a casa foi construída com seu esforço e que deve ser respeitada. Chega a expulsar o filho com um trato poderoso e original de uma expressão chula e corriqueira, que na ira santa de Estamira se torna contundente: “Vá tomar no cu da sua desgraça”.
Estamira diz: "Perversa eu não sou, mas ruim eu sou" e "Já tive dó de Jesus e de escravo". O Deus de que lhe fala o filho não evitou as desgraças por quais passou. Assim não há porque reverenciá-lo. Mas paradoxalmente sua veemente condenação de um Deus burocratizado que querem que aceite passivamente a faz a ser dotada de uma aura mítica poderosa, ser uma criatura plena de tragicidade e transformadora do profano em sagrado, mas sem deixar de ser bastante humana. Para o que passou e está vivendo não há espaço para se comover com a crucificação de Cristo nem com a dor dos escravos.
Se há momentos
Um dos achados mais surpreendentes de Estamira é a idéia de que o ensino oficial é cópia. Seu netinho estaria livre deste mal, pois não tendo ido ainda à escola não era uma cópia. Já a médica, alguém que não julgava ser uma má pessoa, mas deu-lhe remédios que abomina e marcou-lhe uma próxima consulta só dali a 40 dias, era uma cópia. Com muita argúcia Estamira denuncia um ensino que quer formar mecanicamente classes dominantes e não se envolver com um aprendizado genuíno propriamente dito. Ela chega ao requinte de mostrar sua visão particular do comunismo, o qual não seria uma mera uniformização das pessoas como também comenta que a Princesa Isabel libertou os escravos, mas jogou-os ao mundo, sem lhes dar trabalho.
Quando vemos imagens de um manicômio onde as pessoas estão jogadas pelo chão e contrastamos estas cenas com as do lixão, entendemos melhor o quanto há de nobre e heróico na resistência de Estamira em seu trabalho. Aquilo ali não lhe traz apenas seu sustento. É também uma forma de terapia. É a salvação possível que encontrou onde não vive de forma autista e desenvolve laços de amizade. É um micro-cosmos onde é soberana, compartilha seu reino e de onde extrai dignidade como principal elemento.
O filho de Estamira freqüenta a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Num relato tranqüilo, mas bastante incômodo, diz que a mãe não tem simplesmente problemas de ordem psiquiátrica, mas sim que está possuída pelo demônio. Diz que reza muito para Deus e que se Ele perdoar a mãe, voltará a visitá-la. Se realmente há o que se pode chamar de loucura neste filme está nesta atitude do filho ao querer este aval divino para o exercício da generosidade e afetividade filial.
Estamira teve uma filha que chegou a levar pequena para trabalho no lixão. O filho promove uma adoção para a pequena irmã, com a futura madrasta fingindo ser uma assistente social para que a mãe se dobre a esta situação. A jovem crescida visita a mãe, recebe carinhos dela e lamenta que não tenha podido ser criada por Estamira. Sabe que não consegue mais deixar a madrasta, mas questiona se foi realmente acertada a idéia de ter sido afastada dali. São estas encruzilhadas afetivas que dão certa razão ao canto de Estamira que parodia uma canção popular: “Eu hoje estou tão triste, eu queria tanto falar com o capeta”.
Quando Estamira sente dor no corpo afirma que está sentindo “um controle remoto”. De onde virá este controle? Do “Trocadilo” do qual tanto fala? Para ela, numa de suas veredas de seu pensamento mágico, com constantes ecos de Riobaldo de Guimarães Rosa, “Tudo que é imaginário,existe, é, tem”. A pedido dela (conforme declarou o diretor e assistimos num trecho do site do filme), com mais imagens surpreendentes, temos o encontro destas duas grandes forças da natureza: um mar bastante revolto e Estamira.
Responsável pela co-produção de um dos melhores documentários da História do Cinema Brasileiro que é o impressionante “Ônibus
Ps1. A cidade do Rio de Janeiro há algumas semanas está tomada por anúncios de “Estamira” das mais variadas formas. Perfeito! Não há porque ser inocente num mundo de hegemonia do marketing ostensivo. Quando lançado na sexta-feira 28 de julho, passou a ocupar apenas 4 cinemas na cidade, sendo que na Zona Sul está em apenas três horários do Arteplex 5 e dois do Instituto Moreira Sales. Este descompasso gritante também é uma forma de desgoverno e ainda há aqueles que ao assistirem o filme julguem que “Estamira” é que é uma das loucas de nossa sociedade....
Ps2. De acordo com entrevista ao O Globo de 27 de julho de 2006, numa matéria de Suzana Velasco, quando Estamira viu o filme, considerou sua missão cumprida. O diretor a sustenta e paga seus tratamentos num médico particular, agora adequados, a pedido dela, aonde ela vai semanalmente. Hoje os arroubos e arrebatamentos, sua criatividade diminuíram. Assim se manifesta o diretor: “Mas, se ela quer e busca estes remédios, é ela quem sabe. Será que ela não era mais feliz gritando no lixão? Não sei. Tem de perguntar para ela.”
Ps3- Este texto foi publicado originariamente no jornal Montblãat em 2006, tendo sido feitas algumas modificações
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Nelson Rodrigues de Souza
Isto que é mostrado no documentario não é loucura,é a pura realidade de uma mulher que sofre...
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