domingo, 22 de agosto de 2010

O Novo Mundo,Os Desejos e Cobiças que Afloram, A Eterna Força da Natureza e O Trabalho Incontornável do Tempo/Novas Diretrizes para Velhos Preconc.












O texto a seguir contém spoilers, ou seja, detalhes são revelados para uma melhor análise.

“O Novo Mundo” de Terrence Malick

O Novo Mundo, Os Desejos e Cobiças que Afloram, A Eterna Força da Natureza e O Trabalho Incontornável do Tempo.

“Tão de repente a certeza de que ali

a Natureza percebeu que eu percebi

juntou-se o nada, a água, a terra, o fogo e o ar

e eu consegui, por puro instinto despertar.”

Sérgio Natureza

Quando se soube que Terrence Malick estava por filmar o mito de Pocahontas, ”a primeira Eva americana” (uma índia que no século XVII, no que viria a ser o Estado de Virgínia nos EUA, salvou e teve um caso amoroso com um colonizador europeu, acabou casando depois com um nobre inglês, criou fama, foi convidada até a conhecer a corte inglesa e anos depois de morta em 1617, acabou recebendo este nome) já se podia imaginar pela pequena, mas muito singular cinematografia do diretor, que não teríamos uma história comum e passaríamos à distância do trabalho da Disney de 1995 sobre ela. Um crítico americano descreveu o filme como sendo “Pacahontas com ácido”. Como este nome não é citado no filme (só veio à tona anos depois da história narrada) só vamos nos referir neste texto à índia ou então a Rebecca, nome que recebe ao ser aculturada.

Estamos em 1607. Depois de uma índia (Q’ Onianka Kilcher) se relacionar em preces com o sagrado da natureza, há um corte e nos deparamos com o expedicionário John Smith ( Colin Farrell) prestes a ser enforcado por ser considerado um rebelde. Logo neste início deste “O Novo Mundo” (EUA/2005) já temos uma síntese das dicotomias com as quais o filme irá operar. Não são maniqueísmos fáceis, nem uma retomada simplória da idéia do bom selvagem de Rosseau (um mito que Hector Babenco destrói com grande potência em seu subestimado e esplêndido “Brincando nos Campos do Senhor”), mas uma visão que decorre do temperamento do artista e seus modos de expressão. Em “Terra de Ninguém” (1973), primeiro e cultuado filme de Malick, ao acompanhar a trajetória de um serial killer e sua namorada que se marginaliza também, há ambigüidades de sobra que evitam qualquer simplismo imediatista e constamos que o cineasta não desaprendeu as próprias lições que já nos deu. “Cinzas no Paraíso” (1978) ao nos mostrar belos, ambíguos, frios e ao mesmo tempo “quentes” arrivistas também é um filme que nos passa estas sensações.

Capitão Newport (Cristopher Plummer) sente que este homem preste a morrer será muito mais útil vivo, para ajudar a construir uma comunidade naquelas novas terras, o salva e dá-lhe uma missão. John cuidará da manutenção dos víveres já escasseando e acompanhará a edificação de um forte, marco zero da colonização de um lugar que daria mais tarde ao surgimento do Estado de Virgínia. Mas logo descobrem que não estão sós. Há um tribo de índios chefiada por um rei (August Schellerberg ) que é pai da índia ( que vemos logo no início). Em uma de suas explorações, John é feito prisioneiro e só não morre porque a índia coloca-se na frente do corpo dele e com seu prestígio faz o pai rever sua sentença. Os dois, em belos rituais de aproximação, terão aprendizados mútuos, dando início a uma relação amorosa que fará história (há sites que aventam a possibilidade de cenas eróticas mais explícitas filmadas terem sido cortadas da montagem final, distribuída no EUA e mundo afora). Até detalhes estratégicos daquela sociedade ele acaba aprendendo. Quando o rei o liberta para que volte ao seu povo e o convença a ir embora daquela região, há até os que não concordam com a idéia dado que ele conhece segredos demais da tribo.

John volta e é mal-recebido. Os que almejam seu poder o tratam como traidor. Ele é preso e depois passa a ser um trabalhador braçal. Para quem conhece um pouco da história dos EUA e acompanha o beco sem saída em que esta sociedade está se atolando, não há porque enxergar maniqueísmo de Malick aqui. A luta pelo poder que se vê no século XVII, bem como a selvageria com que a tribo indígena será atacada adiante, com fogos do ódio e da cobiça é um espelho distante da era Bush e suas seqüelas que chamuscam a era Obama. Por mais lírico que seja, Malick não desautoriza esta leitura.

A índia visitará o amado, o idílio recomeçará, mas logo será expulsa de sua tribo pelo próprio pai por traição, vindo a conviver com os ingleses. Seus gestos e sorrisos antes potentes e generosos vão cedendo vez a uma mulher, não amarga, mas mais comedida, de uma tristeza camuflada. John desaparece de forma consentida para outras missões, com o pretexto de que morreu, sendo que esta é a versão que a ela é contada. A chegada de John Rolfe (Christin Bale) proporcionará a ela um marido com ritual cristão e um filho, sendo ela agora batizada como Rebecca. Esse novo mundo não lhe será colado à pele de índia sem dor, conforme veremos depois e não representa nenhum clichê ou banalização ressaltar isso. Numa das mais belas seqüências do filme ela, tomando conhecimento de que John Smith ainda vive, diz ao marido que não pode ser dele, pois está ainda casada: ela é fiel aos seus sentimentos e não às convenções sociais. Este tema é abordado de uma forma ainda mais objetiva, gloriosa e elucidativa em um dos grandes filmes de Werner Werzog: “O Enigma de Kaspar Hauser”: um homem é criado desde criança durante anos numa casinha na floresta, com água e comida apenas, sem contacto com o mundo exterior e depois é “lançado às feras”, agora adulto, num povoado, segurando uma carta lacônica de apresentação nas mãos, imóvel como uma estátua.

Tudo é muito singular em “O Novo Mundo”: a estrutura narrativa do filme não é linear e avança com oposições e atrações de ordem poética, sendo que tudo o que foi exposto anteriormente e contribui para a idéia de narração foi apreendido por esta lógica; o perfeccionismo de Malick que numa carreira de mais de trinta anos só dirigiu quatro filmes até este em questão, é palmar aqui; o realismo do filme aqui e ali irrompe (ainda que em batalhas sem sangue explícito) por mais que haja suas intervenções lisérgicas, zen-budistas, new-age ; há no conjunto um trabalho que evolui não no sentido da construção de um mito mas na revelação paulatina de emoções genuínas de pessoas de carne e osso, que se nos parecem estranhas se deve realmente ao nosso desconhecimento do universo onde elas estão imersas, do que a uma tentativa de fazer da realidade e suas metamorfoses, um desbunde riponga datado; há em “O Novo Mundo” a captação dos movimentos dos corpos, das almas, do processo de colonialismo e a violência desencadeada, das forças da natureza e do tempo.

Se o filme já havia nos deslumbrado com sua beleza convulsiva e onipresente, nos 15 minutos finais, ela cresce ainda mais de uma forma indescritível e inesquecível. A integração entre elipses dramáticas, música que vai num crescendo e desaparece, emoções à flor da pele, movimentos de câmera ousados e a qualidade da fotografia ainda mais evidente, formam algo que dá vontade de pedir bis incontáveis vezes. No DVD podemos fazer isso. Mas estaremos longe da força que o Cinema em tela grande tem para nos envolver com obras tão assim próximas de um camafeu portentoso.

A índia tornada a Senhora Rebecca, casada, com um filho, reencontra sua grande paixão John Smith, mas não pode agir como se nada tivesse acontecido antes (intui que ele também foi cúmplice no processo que culminou com a separação deles). Ela se afasta de seu genuíno e verdadeiro amor e depois a veremos face a face com John Rolfe: ela o beijará como gostaria de ter beijado o outro. Mas seu drama interior ainda que não extravasado é enorme: ela resolverá este conflito atraindo e somatizando uma doença mortal para si. Mas a elegância e sobriedade com que Malick nos mostra isto tudo são inexcedíveis no Cinema Americano de hoje.

Há quem diga que “quando morre o cineasta nasce o fotógrafo”. No caso de Terrence Malick esta maldade não faz o menor sentido. Sim temos um grande diretor de fotografia aqui, mas antes de tudo há por trás um grande cineasta que a tudo orquestra, dentre outros predicados, com grandes improvisos visuais. Uma ave que voa, por exemplo, pode ser focada e cortar a dramaticidade convencional de uma cena, mas quem decide isto é Malick, não é seu diretor de fotografia.

É surpreendente como em “O Novo Mundo”, Malick não deixa de comentar o que foi a pilhagem dos bens materiais e espirituais dos índios promovida pelos europeus colonizadores. Mas tudo nos parece muito novo aqui e a história de amor entre John e a índia se sobrepõe: é ela que está em primeiro plano. Os jogos lúdicos desta relação amorosa tendem a ficar mais fortes em nossas lembranças do que as batalhas.

O teatro é mais a arte do ator, o cinema é mais a arte do diretor. Colin Farrel não é realmente um ator de primeiríssima linha do cinema americano mas tem talento e não há porque desprezar o seu trabalho com sendo “simples alterações nos movimentos das pestanas”....Ele nos faz compreender seu personagem, sua inocência , seu amor pela índia e sua cultura, sua angústia, sua consciência e divisão interior por estar envolvido numa situação de colonizador que o faz correr o risco de ser um predador daquela nova civilização com a qual se depara e passa a admirar. Para um filme em que o trabalho de direção é extraordinário e original não há porque “apontarmos o dedo” para o trabalho de Colin como calcanhar de Aquiles da obra. Seria como se diminuíssemos este monumento do cinema que é “Barry Lyndon” de Stanley Kubrick (outro grande perfeccionista como Malick) porque ele procura extrair o melhor (e consegue) de Marisa Berenson e Ryan O’Neall ....

Costumo trabalhar muitas vezes com spoilers mas “O Novo Mundo” tem uma integração entre imagens e sons (trilha com muito Wagner e Mozart), numa montagem que é imprevisível mas não aleatória (segue uma lógica mais poética do que dramatúrgica; esqueçamos os famigerados manuais de roteiro aqui...) que o que acontece com todo grande filme, aqui tem uma força maior ainda: ao vê-lo cada um terá um filme diferente na cabeça e ao revê-lo (experiência a qual não resisti e fiz) novos sentidos se farão. O que impressiona e comove em “O Novo Mundo” é que este efeito poliédrico é conseguido com simplicidade: não houve aqui a necessidade da intensa elaboração formal de um clássico como “O Ano Passado em Marienbad” de Alain Resnais, por exemplo.

Sorrisos telepáticos, gestos amplos, aves que cortam a paisagem, águas rolando, vegetação abundante, sons da natureza, lutas cruciais, Wagner e Mozart na trilha sonora...tudo isso nós já vimos em outros filmes mas da forma orquestrada por Malick não.Há um tal nível de delicadeza aqui que é suis generis (que até os grandes diretores americanos Francis Ford Copolla e Martin Scorsese por exemplo não têm, ou apresentam raramente ) e ao contrário do poeta Rimbaud, “por delicadeza o filme não perde sua vitalidade...”

Conforme já foi comentado, quando Rebecca descobre que John ainda está vivo, diz ao marido que não pode receber seu carinho pois está casada. São esses seus sentimentos nobres. Por mais embates que tenha havido entre o velho e o novo mundo, esta inocência de Rebecca não se perde. Quando está para morrer diz ao marido com muita coragem que o que importa é que o filho deles sobreviva. É o velho dando lugar ao novo. É uma aceitação do poder transformador da natureza que está em sua cultura de origem, não naquela que a traveste como uma lady: um papel que ela jamais assume de fato e o marido, calejado por perdas pessoais compreende.

Para exibição comercial nos EUA e mundo afora um corte de 20 minutos foi feito. Mas dado que Terrence navega na contramão de qualquer conceito óbvio mercadológico podemos estar perdendo momentos de ouro. Para quem mergulha na proposta quase que esotérica do filme (a índia faz autênticos e simples rituais com as mãos, por exemplo) 20 minutos a mais seria muito bem vindo. A estrutura dramática do que assistimos comporta um tempo adicional.

Com toda beleza formal inebriante da obra, nem por isso há banalização nos combates entre europeus e índios e até mesmo nos dissensos internos. Mas tudo é relativizado pela supremacia da natureza e do tempo. Duas cenas que se complementam são emblemáticas disso: primeiro vemos um prisioneiro num dispositivo que lhe prende a cabeça e as mãos. A índia aproxima-se e dá algo para que ele coma. Mais tarde veremos este dispositivo vazio. O tempo operou mudanças de ponto de vista. O prisioneiro pode até ter sido enforcado, mas ali passamos a ter uma nova configuração operada pelo tempo.

“O Novo Mundo” na melhor tradição de David Lean (realizador de “Lawrence da Arábia” e “Passagem para a Índia”, dentre vários clássicos) e para exemplificarmos com um diretor mais novo e recente (já falecido), Anthony Minghella (de “O Paciente Inglês”, “Could Moutain”) trabalha magnificamente sentido épico e intimismo concomitantemente. Mas se Terrence neste ponto se aproxima destes cineastas , em outros diverge: a ousada montagem de suas seqüências está mais próxima do que Pasolini chamou de Cinema de Poesia do que do Cinema de Prosa. Malick, entretanto, nos brinda com um caos organizado, ao contrário de Rogério Sganzerla em “O Signo do Caos” onde o caos é caos mesmo ( o que este não faz no extraordinário “O Bandido da Luz Vermelha”).

O encantamento dos monólogos interiores seja da índia, John Smith ou John Rolfe, bastantes presentes, é mais uma dádiva da obra. Neste ponto Malick está sendo até bem realista, pois se pensarmos bem, passamos muito mais tempo na vida com nossos monólogos interiores do que dialogando com nossos semelhantes, mesmo que seja a pessoa amada.

No extinto site No Mínimo, Ricardo Calil admite que não tem dúvida que confrontado com “O Novo Mundo” está diante de um trabalho de artista mas não saberia dizer se este quadro em movimento deveria ser exposto no Museu de Arte Moderna ou na feira hippie de Copacabana (sic). Eu não tenho dúvida alguma: este filme deveria ser enviado ao espaço sideral como já fizeram com outras obras de arte, para que extraterrestres no futuro, se acontecer o pior com este planeta tão convulsionado por ações e omissões de toda ordem, saberem que, além das baratas sobreviventes, tinha outra forma de vida que é inteligente, sensível e delicada.

Que na temporada de prêmios para filmes de 2005, este filme grandioso só tenha conquistado o prêmio de melhor atriz revelação pelo “National Board Review” para Q’ Onianka Kilcher e uma só indicação ao Oscar ( melhor fotografia para Emmanuel Lubezki (de “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” de Tim Burton), aqui num trabalho antológico em que filma grandes planos e seqüências só ao sabor de luz natural, isso depõe contra os próprios organizadores destes prêmios e não em relação ao filme. Este filme de grande mestre foi muito mal recebido nas bilheterias dos EUA. Não se pode esperar outra coisa de uma sociedade hiper-massificada no que diz respeito a uma obra tão out-sider, out-of-order, aparentemente boder-line , sociedade esta que criou platéias cinematográficas, com honrosas exceções, ávidas por prestigiar bobagens em que se destacam o humor caricato e fácil, o horror de fundo de quintal, o cinema de sangue e tripas, os quais são elevados fácil fácil à categoria dos Top Ten ( dez maiores bilheterias da semana). O pior é que este é um modelo que querem nos impingir e ...conseguem...Às vezes surge um Spike Lee com seu “O Plano Perfeito” mas é uma das exceções que confirma uma regra nefasta para a economia do cinema não só americano como em muitas outras partes do mundo. Há blockbusters de qualidades variadas que também são uma forma de exceção, mas mesmo nestes, apesar de evidentes qualidades, há em alguns uma tendência à infantilização das platéias que é muito incômoda e perniciosa.

No Brasil há o mito de que nós aqui não valorizamos com devíamos nossos artistas ao contrário do que aconteceria com os EUA. O fato de um artista da qualidade de Malick levar mais de vinte anos para de “Cinzas do Paraíso” (tido por muitos como um tendo um dos mais belos trabalhos de fotografia da história do cinema, feito por Nestor Almendros, fiel escudeiro de muitas obras de Eric Rohmer e Truffaut ) chegar a “Além da Linha Vermelha” e depois mais oito para termos esta jóia cinematográfica que é “O Novo Mundo”, nos mostra muito descaso com os artistas também nos EUA, não sendo pois uma desqualificação apenas nossa ( e poderia citar aqui vários outros exemplos que vão além de Malick). Pode-se argumentar que Malick é arredio, não gosta de dar entrevistas, é recluso (seria uma espécie de J.D.Salinger do cinema). Não compareceu ao festival de Berlim de 2006 para acompanhar a exibição de seu filme e satisfazer curiosidades da mídia (no seu lugar quem brilhou foi Q’ Onianka Kilcher que tinha dezesseis anos durante as filmagens; a tela do cinema sugere um mulherão; faz parte da magia do autor-diretor transformar o menos em mais, o pequeno em grande). Mas o roteiro de “O Novo Mundo” já estava sendo trabalhado desde a década de 70. Assim pelo seu dom para o cinema mais do que sublime, sua aura de artista americano ourives raríssimo, deveriam ter aparecido muitos produtores doidos e insistentes para que ele filmasse com carta branca, sem essas longuíssimas esperas, que transcendem qualquer noção de maturação dos projetos. Tomara o próximo Malick surja logo, pois adaptando Vinícius, sem querer incorporar nenhum vestígio de arianismo ( não me entendam mal por favor..): “A feiúra que me desculpe mas beleza é fundamental”...

Ps1. Quem se encantou com a epígrafe recomendo o CD “ Um Pouco de Mim” de Sérgio Natureza e Amigos, ponto de partida para o Projeto Poetas da Canção, através do selo SESCRIO.SOM. Os versos foram extraídos da canção “Interiores” de Cristóvão Bastos e Sérgio Natureza, interpretada por Ná Ozzetti, uma das duas ou três melhores cantoras brasileiras vivas. Que pela sua grandeza tenha gravado relativamente pouco, remetendo a Malick e o Cinema, é mais um dos escândalos culturais brasileiros.

Ps2 Este texto foi publicado originalmente no jornal Montblãat. Aqui encontra-se com cortes, atualizações e acréscimos.

O texto adiante contém spoilers, ou seja, detalhes são revelados para uma melhor análise.

“Novo Mundo” de Emanuele Crialese”

Novas Diretrizes para Velhos Preconceitos

Uma sinopse curta de “Novo Mundo” (Itália/França/Alemanha/2006) de Emanuele Crialese do tipo “um homem vende tudo o que tem para viajar com sua família à América e recomeçar sua vida” sugere aquilo que já foi muito mostrado e à priori condena a obra a repetir clichês. A grande façanha deste “Novo Mundo” é que uma visão solidamente poética se instala do começo ao fim com novas imagens e óticas originais de observação para este tema tradicional.

Caracterizando com força uma primeira parte do filme, logo na abertura destaca-se numa paisagem árida e pedregosa da Sicília do início do século XX, um homem, o viúvo Salvatore Mancuso (Vincenzo Amato) e seu filho Angelo (Francesco Casisa), com pedras na boca, chegando ao topo de um monte onde esperam um sinal de Deus para a idéia de viajarem à América onde já se encontra um irmão de Salvatore. Na região inóspita onde vivem, a matriarca Fortunata (Aurora Quattrochi) pratica medicina à sua maneira e a vemos como uma entidade ancestral capaz até mesmo de tirar uma cobra que se instala na barriga de uma mulher. De posse de fotografias montadas onde há aves gigantes e árvores que dão dinheiro, a América passa a ter uma idealização onírica com pessoas que carregam frutas e legumes enormes, surgindo até mesmo uma chuva de moedas no rosto de quem se dispõe a ficar com o corpo enterrado. Há uma influência nítida do cinema dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani (“Kaos” (1984,, “A Noite de São Lourenço” (1882), dentre outros), mas longe de ser mera mimetização temos aqui uma pujante e comovente retomada do universo camponês com sua mitopoética, sua ingenuidade que se mescla a uma particular sabedoria.

Numa segunda parte temos a viagem para a América na terceira classe de um navio, onde se junta aos Mancuso a enigmática inglesa Lucy (Charlotte Gainsbourg) que precisa arrumar um casamento para poder completar a imigração. Salvatore encanta-se por Lucy nesta travessia com a mãe Fortunata, em princípio arredia, o filho Ângelo, o mais novo Pietro (Filippo Puccilo) que é surdo-mudo e mais duas camponesas a que lhe foi confiada a guarda. As condições desumanas da viagem que remetem a um navio negreiro são mostradas sem escamoteações, mas sem sensacionalismo, permitindo ainda grandes brechas para a poesia em planos de detalhes e gerais marcantes. Há uma representação que remete agora a “América, O Sonho de Chegar (1994) de Gianni Amélio, uma obra sobre a sofreguidão de emigrantes albaneses que num mundo pós-muro de Berlim, procuram a Itália como a terra prometida.

Na terceira parte com a chegada do navio a Ellis Island o filme mostra o que tem de mais original. Não vemos nada de Nova York, apenas corredores, salas e aposentos kafkianos onde se fazem entrevistas, exames médicos, testes de inteligência, checagem de casamentos necessários, para enfim detectarem, num jogo de perversa eugenia, os que são bons o suficiente para merecerem entrada no novo mundo. Fortunata é quem se mostra mais refratária aos métodos inquisitoriais. Objetivamente diz que ninguém ali é Deus para separar “o bom do ruim”. Criado impasses para a imigração da família Mancuso são elementos da cultura siciliana que se vão contrapor à cultura capitalista deste novo mundo em que as pessoas são coisificadas e tornadas interessantes apenas pelo seu valor de lucro. As soluções que se apresentam para os Mancuso tem a ver com a sabedoria das origens, o que os testes de inteligência a que são submetidos não conseguem captar de forma alguma.

A lembrança do filme de Amélio sobre albaneses não surge à toa em nosso imaginário. Em uma das grandes ironias da História, a Itália que exportou imigrantes para várias partes do mundo, hoje encara como fazendo parte da ordem natural das coisas a discriminação de imigrantes do Leste Europeu, da África, do Oriente Médio, da América do Sul. Hoje a Itália, país enriquecido da Comunidade Européia, barra embarcações de imigrantes ilegais no Mar Adriático e Mediterrâneo.

Com uma leitura política nítida, em que o que se observa hoje é simplesmente uma reciclagem, novas diretrizes para um velho preconceito conveniente dissecado na tela, “Novo Mundo” não se esgota nesta vertente. Em entrevista a Flávia Guerra no O Estado de São Paulo, Emanuele Crialese, um romano que estudou cinema na Universidade de Nova York, foca mais seu filme:

O tema da imigração e da busca por um futuro melhor é universal. No entanto, mais universal ainda é o tema do sonho. É em busca de um sonho que se deixa tudo em uma terra e se parte para outra desconhecida”

Em “Novo Mundo” Crialese cria imagens de sonho simples, mas magistrais, de personagens mergulhados num mar de leite, com trilha sonora aliciante de Nina Simone. Em “Respiro” (2001), seu filme anterior, o mar se torna um santuário onde passa a viver Grazia (Valeria Golino), como uma criatura mitológica, ela que era discriminada na comunidade de pescadores da ilha de Lampedusa, a sudoeste da Sicília, por seu jeito livre de viver e suas crises de euforia e depressão, marcando seu inconformismo, o que a leva até a soltar todos os cachorros presos da comunidade, para desespero do marido Pietro (o mesmo Vincenzo Amato) e o apoio quase que incestuoso do filho mais velho Pasquale (Francesco Casisa). Com a força com que se aferram às suas próprias leis, cada uma ao seu modo bem particular, de forma independente das pressões sociais, Grazia e Fortunata são personagens da mesma falange espiritual.

Tanto em “Novo Mundo” como em “Respiro” tem-se um diretor que é um fabuloso construtor de imagens poderosas que transcendem o realismo das narrativas. Em ”Novo Mundo”, Leão de Prata de Revelação, além de outros cinco prêmios no Festival de Veneza de 2006 tem-se uma sintonia com os grandes mestres do cinema italiano. A nostalgia de termos perdido tantos diretores de uma cinematografia maior é em parte compensada pela ascensão de Emanuele Crialese junto aos relativamente poucos grandes cineastas italianos de hoje (numa comparação com a era de ouro já vivida), como Nanni Moretti, Gianni Amélio e o sobrevivente genial Marco Bellocchiio. Seu próximo filme é algo a não se perder de vista de forma alguma. A contribuição de Crialese ao Cinema enquanto grande arte áudio-visual, espera-se, será ainda mais notável.

Ps1 Segundo informação do site críticos.com.br, o primeiro filme de Emanuele Crialese, “Once We Were Srangers”(1997) é uma comédia sobre o choque cultural entre um imigrante siciliano e um indiano em Nova York, tendo sido exibido no Rio Cine Festival de 1998, sem exibição comercial no país.

Ps2 Este texto foi publicado originalmente no jornal Montblãat. Aqui encontra-se com cortes, atualizações e acréscimos.

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://tecovideo.com/images/Produto_P_10430.gif&imgrefurl=http://tecovideo.com/gpage13.html&usg=__Zr6Om24yvSfuPLi5dDm07z1jYnk=&h=270&w=191&sz=25&hl=pt-BR&start=32&zoom=1&tbnid=snhNyJOD5TmICM:&tbnh=170&tbnw=152&prev=/images%3Fq%3D%2522Terrence%2BMalick%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,640&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=488&vpy=215&dur=1397&hovh=216&hovw=152&tx=99&ty=125&ei=TjJxTLehGoKBlAf6-KnEDg&oei=HzJxTMnZJ4HGlQfYmKy3DQ&esq=2&page=2&ndsp=21&ved=1t:429,r:9,s:32&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjAXLpaIc0f6qeBRmNpIRGZbSg3CF8u84yZ1F_e52W_vXKtpb7idQ_ZUBgGAnDPKOiqPeQ-W0oo59UbYhvENx-qG4s87D1UGsP5Df5Yp4QDc8uo3skS6CLP-839LMPIuHciBpqCQCFZmfnS/s400/newworld.jpg&imgrefurl=http://fora-de-cena.blogs.sapo.pt/2007/05/&usg=__Y-ep5m3BPEstgoA_fxX_xsd0sYU=&h=266&w=400&sz=41&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=Su8P2L1SpUhcLM:&tbnh=124&tbnw=163&prev=/images%3Fq%3D%2522Terrence%2BMalick%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,277&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=667&vpy=217&dur=736&hovh=183&hovw=275&tx=146&ty=77&ei=fDNxTN_mDsKBlAfVmeS-Dg&oei=HzJxTMnZJ4HGlQfYmKy3DQ&esq=4&page=1&ndsp=32&ved=1t:429,r:28,s:0&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.impressoescinefilas.blogger.com.br/novo-mundo.jpg&imgrefurl=http://www.impressoescinefilas.blogger.com.br/2006_04_01_archive.html&usg=__XIoJnTnBcGq-WR3lJZ9UGEyL1Q4=&h=199&w=300&sz=17&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=N2Z7yPWLx1R_cM:&tbnh=124&tbnw=161&prev=/images%3Fq%3D%2522Terrence%2BMalick%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,277&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=231&vpy=229&dur=13847&hovh=159&hovw=240&tx=115&ty=100&ei=HzJxTMnZJ4HGlQfYmKy3DQ&oei=HzJxTMnZJ4HGlQfYmKy3DQ&esq=1&page=1&ndsp=32&ved=1t:429,r:25,s:0&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgZvpz6wf_f0VOsDYx8jqPJHmEbE9FMRtI093_RjRcDP8xGxTMYcTtkkcUj_Zy6VRksdYjeUkKGFKfUMsZxVNqFH8yy7QzWOKmpw17POckbMyjFLR1Fw7kzXzOhwTjrE_K5uH_LoRVsv3o/s400/thenewworld1.jpg&imgrefurl=http://minhavidadeprofessor.blogspot.com/2009/05/dica-de-filme-o-novo-mundo.html&usg=__ymAiELmw5Lccu5I_KBZlDynjWRA=&h=400&w=274&sz=22&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=ZJuf-W5Isr8mlM:&tbnh=132&tbnw=93&prev=/images%3Fq%3D%2522Terrence%2BMalick%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=549&vpy=40&dur=4398&hovh=271&hovw=186&tx=112&ty=147&ei=NjZxTPqtFYX7lweNurEO&oei=HzJxTMnZJ4HGlQfYmKy3DQ&esq=4&page=1&ndsp=32&ved=1t:429,r:3,s:0

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.cinepop.com.br/cartazes/novomundon_1.jpg&imgrefurl=http://www.cinepop.com.br/filmes/novomundon.htm&usg=__NaE1J_NjDah0sLnMzX7zxjc0Afw=&h=423&w=280&sz=19&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=qOGHR0PETnMjEM:&tbnh=163&tbnw=124&prev=/images%3Fq%3D%2522Emanuele%2BCrialese%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D628%26tbs%3Disch:10,200&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=947&vpy=194&dur=273&hovh=276&hovw=183&tx=95&ty=108&ei=ejdxTNiAIcHflgfMmoDvDQ&oei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&esq=3&page=1&ndsp=18&ved=1t:429,r:16,s:0&biw=1360&bih=628

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://old.thomazfc.com/wp-content/uploads/2008/06/captura-mundo-novo.jpg&imgrefurl=http://old.thomazfc.com/2008/06/filmes-italianos-no-brasil-ii/&usg=__7FITcyQZBwTsZ2iRM7_Vs1QqQH4=&h=300&w=450&sz=63&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=5kM7FcgJA9MXjM:&tbnh=149&tbnw=208&prev=/images%3Fq%3D%2522Emanuele%2BCrialese%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D628%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=136&vpy=90&dur=270&hovh=183&hovw=275&tx=137&ty=107&ei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&oei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&esq=1&page=1&ndsp=18&ved=1t:429,r:0,s:0

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.revistacinetica.com.br/img/nuovomondo04_000.jpg&imgrefurl=http://www.revistacinetica.com.br/nuovomundo.htm&usg=__AGrYHKTL7U_ziFFY-NLDqsso1Zw=&h=257&w=270&sz=19&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=jn66OsV95C8UFM:&tbnh=149&tbnw=177&prev=/images%3Fq%3D%2522Emanuele%2BCrialese%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D628%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=369&vpy=80&dur=115&hovh=205&hovw=216&tx=124&ty=77&ei=9zhxTO-LAcWBlAfxlsmcDw&oei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&esq=5&page=1&ndsp=18&ved=1t:429,r:1,s:0

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwInhhFprFVq9lMj3sTM3F8XB_oK58Hibhh063JKRUpaKeFAoEZnRA_SUOx17cIvIdin4cpCpgky9MODy4pUq2goyUCowqipkJ0m183wvUyIBN57XBmwo5VoEbJESbrcj1wWlwI1dyU-o/s400/10.jpg&imgrefurl=http://cineart2.blogspot.com/2008_03_01_archive.html&usg=__UU2E34OWlqaVuW6pFLm8gvdnSiU=&h=187&w=400&sz=22&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=eDMissjjY1DwMM:&tbnh=94&tbnw=200&prev=/images%3Fq%3D%2522Emanuele%2BCrialese%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D628%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=637&vpy=107&dur=550&hovh=149&hovw=320&tx=159&ty=91&ei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&oei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&esq=1&page=1&ndsp=18&ved=1t:429,r:3,s:0

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.revistacinetica.com.br/img/nuovomondo05.jpg&imgrefurl=http://www.revistacinetica.com.br/nuovomundo.htm&usg=__urR0vKrJmMCIYnIKqdLjpIAIGwU=&h=270&w=270&sz=17&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=GaS9nIxmj8imlM:&tbnh=163&tbnw=194&prev=/images%3Fq%3D%2522Emanuele%2BCrialese%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D628%26tbs%3Disch:10,160&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=617&vpy=255&dur=187&hovh=216&hovw=216&tx=129&ty=122&ei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&oei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&esq=1&page=1&ndsp=18&ved=1t:429,r:14,s:0&biw=1360&bih=628

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.cinepop.com.br/fotos/novomundon_1.jpg&imgrefurl=http://www.cinepop.com.br/filmes/novomundon.htm&usg=__ubL8N_egw9LT9DjnsMLejR-2xTM=&h=228&w=350&sz=12&hl=pt-BR&start=18&zoom=1&tbnid=7eIQEJELwwau_M:&tbnh=150&tbnw=196&prev=/images%3Fq%3D%2522Emanuele%2BCrialese%2522%2B%2522O%2BNovo%2BMundo%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D628%26tbs%3Disch:10,440&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=866&vpy=197&dur=307&hovh=181&hovw=278&tx=138&ty=85&ei=TDdxTLTEAoGKlweo7NCNDg&oei=NDdxTMKYCIWBlAeot7D_DA&esq=2&page=2&ndsp=20&ved=1t:429,r:4,s:18&biw=1360&bih=628

Nelson Rodrigues de Souza

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Debaixo do Tapete Mágico- Um Conto








Debaixo do Tapete Mágico

A maior astúcia do demônio está em fazer-nos crer que ele não existe.

Charles Baudelaire

Rio de Janeiro, anos 80

Aquela já era a hora da alcatéia, tal o número de fantasmagorias que perambulavam pela mente insone de D. Ruth. Extenuada, levantou-se e apelou para o calmante receitado para a tranqüilidade dos seus sessenta anos. Antes de voltar ao seu quarto, por alguns leves murmúrios, sentiu que o filho Flávio ainda estava acordado. Mas este não estava sozinho. Será que mais uma vez Márcio brigara com o pai e apelou para uma pousada na casa do amigo? Inquieta, D. Ruth esteve na eminência de encostar o ouvido à porta para descobrir que palpitante questão atraia a vigília dos amigos mesmo numa madrugada adiantada como aquela. Como outras vezes em que a tentação havia lhe tocado, ela também recuou envergonhada do seu ímpeto de indiscrição.

Não. Não seria desta vez que D. Ruth descobriria que o seu caçulinha Flávio e o filho de sua amiga Ester, Márcio, ambos já ultrapassando o status de balzaquianos, eram amantes inveterados, cada um tendo no outro a sua benigna droga pesada, com a qual procuravam aliviar as vicissitudes de um cotidiano entorpecedor. Com o pretexto das brigas freqüentes que Márcio travava em casa, os dois ousavam amarem-se no próprio apartamento de Flávio, às portas fechadas, contando com a compreenção de D.Ruth que não podia privar o filho de dar uma acolhida e estava longe de poder aquilatar a extensão daquela amizade. O homossexualismo para D.Ruth estava associado a criaturas mais desvairadas e não a homens feitos, barbados a la Che Guevara, com aparências graves e másculas, enternecendo sempre mas sem perder a dureza.

Foi o próprio Flávio quem apresentou a mãe do amigo. A amizade das duas foi instantânea. Ligava-as além das idades próximas, dos dramas de uma mesma geração, um fio condutor preciosíssimo: os problemas relativos a dois filhos teimosos, para os quais elas sonhavam um requintado matrimônio tradicional e danados que eram, não davam o menor sinal de que elas poderiam morrer tranqüilas, se eles tivessem encontrado companheiras que caso não fossem capazes de substituí-las completamente, o que era mais provável, fossem habilidosas o suficiente para sobrepujá-las em boa parte.

Mesmo conhecendo-se há quase quatro anos, as amigas ainda tinham muito que se descobrirem, principalmente quanto a uma fase aguda da vida de D.Ester, que as duas apesar de não gostarem de lembrar, misteriosamente todas as vezes em que se viam juntas descobriam-se depois de algum tempo meditando sobre esses anos de chumbo. Já havia um bom tempo que D.Ester não visitava o apartamento da amiga como fazia antes, pois esteve adoentada.

Sim. Márcio quando estudante de Direito, lá pelo final da década de sessenta teve uma leve participação nos movimentos de resistência ao regime. Sua colaboração foi coadjuvante, sem maiores elucubrações teóricas e ideológicas. O que o moveu foi uma indignação mais ao nível do estômago do que advinda de elaboradas conceituações como as que moveram muitos companheiros seus. Ele participou da urdidura da logística de um assalto. Mas foi só essa desesperada empreitada, da qual tinha consciência mas não participou diretamente, ser mal sucedida, colegas deram com a língua nos dentes compulsoriamente e ele viu-se envolvido numa teia pesada o suficiente para ter a trajetória de sua existência abalada e comprometida.

Numa via-crúcis compartilhada por muitas outras mães, D.Ester acompanhou todas as transferências de prisão do filho, apelou para militares conhecidos, outros conhecidos de conhecidos e evitou que Márcio sofresse dissabores mais complexos e definitivos que as marcas das sevícias a que tinha sido submetido e que tinham impregnado corpo e alma irreversivelmente. Quando depois de três anos a realidade do cárcere transfigurou-se em memória para o filho e este se viu finalmente livre, graças aos esforços sobre-humanos, principalmente da mãe, é que esta teve tempo de voltar-se para si e descobrir que seu coração já não tinha o mesmo vigor de outros anos e inspirava cuidados.

Foi depois de uma longa convalescência após implantação de mais uma ponte de safena, que D.Ester viu-se animada para fazer uma visita à casa da amiga. Enquanto os filhos trocavam olhares carinhosos e perplexidades no quarto, as duas mulheres trocavam confidencias e dúvidas na sala:

­- Esses nossos filhos são uns vampiros que nos sugam todo o sangue e nós somos umas tolas porque sentimos o maior prazer nessa sangria – disse D.Ester.

- É. Mas tem hora em que a gente perde a paciência. Parece que meus filhos casaram-se na hora exata. Mais um pouco e eu não os agüentaria mais. Quando eu me lembro que estou viúva, os filhos já encaminhados, quase todos casados, eu tenho já dois netos, morando apenas com o Flavinho, eu suspiro aliviada.

- Que é isso D.Ruth? Eu sei que a senhora gostava bastante do Sr. Sérgio, não é verdade?

- Gostava claro. Mas olha, eu acho que a gente conseguiu viver tantos anos juntos porque nem tínhamos tempo de brigar. Minha vida com os filhos todos era um corre-corre e o Sérgio como militar vivia viajando. Algumas poucas vezes eu o acompanhava, mas na maior parte das vezes não Eu disse que não brigávamos, mas não é esta bem a verdade. Certa vez insisti muito com ele para que me explicasse o teor do seu trabalho. Ele tinha impulsos violentos, imagina. Sabe o que ele fez?

- Não!

- Agarrou-me, colocou meus dedos na fresta da porta do quarto e ameaçou apertá-los se eu insistisse naquele tipo de pergunta. Eu nunca mais toquei no assunto. Se era segredo militar que ficasse com ele. O importante é que não deixava nada faltar na casa.

- Então a senhora não sabia o que ele fazia?

- O meu Sérgio fazia de tudo de tudo um pouco: isto eu sabia. No começo me contava das aulas que dava para os novatos. Mas depois, como já disse as missões dele eram segredos que não compartilhava comigo. Não gostava de falar muito sobre o trabalho não. Quando voltava, continuava com as aulas com os novatos e em casa só queria saber dos filhos... É. Morreu novo depois de uma viagem que fez para o Pará. Tinha ainda muitos postos a serem galgados pela frente!

- Mas garanto que se a senhora estivesse com todos aqui como há alguns anos atrás ainda encontraria forças para cuidar bem de uma casa. Quando necessário a gente descobre forças que jamais sonhou que possuísse.

- É. Quando eu me lembro de sua peregrinação para salvar a vida do Marcinho eu me pergunto se eu teria tido o mesmo sucesso.

- Teria sim... teria sim.

Neste ponto a conversa viu-se ameaçada de estagnação. D.Ruth arrependeu-se de ter tocado no assunto. D.Ester sentindo a amiga um tanto embaraçada procurou quebrar o gelo, enfrentando o tema com firmeza:

- Come é que era a sua vida em sessenta e oito, sessenta e nove, mil novecentos e setenta D. Ruth ?

- Minha memória anda já tão fraca. O que eu me lembro é que nós já morávamos aqui no Rio de Janeiro, os meus filhos entrando já para a faculdade, o Sérgio trabalhando bastante, passando até muitas noites fora. O país ganhou a copa do Mundo, não foi? Mas de política mesmo eu não me lembro de muito pouca coisa. Sabe, eu nunca gostei disso. A única coisa que eu me lembro é que ficamos num engarrafamento monstro no túnel porque tinham seqüestrado um embaixador, alemão ou americano, sei lá...

- É, eu também vivia como a senhora. Sempre voltada para os filhos. A senhora ainda deveria estar mais bem informada do que eu. Afinal o seu marido era militar. Mas eu... O Olívio, como faz ainda hoje, vive mergulhado na papelada do comércio. Eu, que nunca gostei de ler nem as manchetes dos jornais, quando recebi a noticia da prisão do Márcio é que eu caí em mim. Como que aquelas coisas todas estavam acontecendo e nós não sabíamos de nada?

- Eu hoje também me assusto, lendo algumas coisas que o Flávio traz para dentro de casa. Esses jornais ditos alternativos... Como é que tanta coisa podia estar acontecendo e nós completamente alheias?

D. Ester ficou ainda mais séria. As lembranças todas que lhe assomavam à mente agora e ao mesmo tempo em que lhe transmitiam uma invejável sensação de orgulho, de batalha vencida, traziam-lhe angústias que quase a faziam emudecer-se completamente e retirar-se do recinto de forma prematura. Por fim controlou-se e ainda teve fôlego para levantar mais uma questão.

- Sabe, D.Ruth, às vezes chego a pensar que as pessoas todas sabiam muito bem do que estava acontecendo, mas fingiam que não sabiam de nada para não sofrerem, não se comprometerem. Eu é que não pude, infelizmente, ficar alheia a tudo aquilo, por mais que não gostasse. É como meu filho adora repetir, aquele danado nasceu com o pé esquerdo: “Se a gente não cuidar da política ela cuida da gente”...

D. Ruth sentiu-se um pouco atingida pela observação da amiga. Mas a uma mãe que padeceu tanto, tudo se perdoava. Tentou, entretanto, concentrar a conversa nos filhos:

- O Márcio sempre foi assim revoltado com tudo?

- Os outros irmãos dele também não são fáceis. Mas estes acabaram mais cedo ou mais tarde se aprumando na vida, se engajando numa profissão e se casando. O Márcio é que sempre foi realmente o mais difícil. Algumas vezes é o filho mais carinhoso do mundo. Outras,é o diabo personificado! Um cão chupando manga! Uma árvore cheia de espinhos!

- Flávio também me dá essa impressão!

- Ele nunca se deu bem com o Olívio. Meu marido é muitas vezes, bruto, grosso, autoritário, mas é a maneira dele ser. Sempre trabalhou o máximo que pode para dar o melhor para a família. Já era tempo do Márcio criar uns anticorpos .Mas nada. Desde que largou a faculdade de Direito não se estabilizou em nenhum trabalho. Não suportava ver ninguém lhe mandando fazer o que quer que seja. Assim não dá. E olha que já está com os seus trinta e três anos!

E era justamente sobre o trabalho que os dois amigos conversavam no quarto. Depois de trocarem algumas carícias ligeiras, Flávio julgou que já houvesse acarinhado o suficiente o amante para poder dar início então, coração a coração, às cobranças:

- Já sei que você vai dizer que eu estou parecendo com o seu pai, mas realmente está na hora de você dar certo adeus a essa sua eterna disponibilidade. Não sei como você se suporta 24 horas por dia nesse marasmo. Aquele trabalho que seu pai lhe arrumou por mais enfadonho que fosse pelo menos desviava você dessas suas neuroses, desse seu ensimesmamento. Você está sempre esperando um amigo daqueles velhos tempos que hoje está na política ou se “aburguesou” de vez como tecnocrata de uma grande empresa, um amigo que vá lhe redimir desses anos todos em que você passou acabrunhado, mas esse amigo, esse “tio da América”, esse “Godot” não vem, não veio... ou veio? Será que sou eu esse amigo, alguém que além desses trocados que lhe empresta, do quarto que compartilha de vez em quando, só tem esses carinhos e essas palavras para lhe dizer?

Ora seu danado – respondeu-lhe Márcio, abraçando-o e beijando-lhe a boca, um tanto forçosamente, obrigando-o a calar-se. Flávio tentou reagir, franziu a testa, tentou manter-se frio, irredutível, mas não foi forte o suficiente. Cedeu à argumentação irrefutável do desejo. Mas até certo ponto também, pois se lembrou que por ser ainda de tardinha, os dois vampiros ainda tinham de recolher as asas até a madrugada, quando estariam livres do exorcismo dos olhares e barulhos intimidadores.

Flávio deixou o companheiro novamente alinhado, reparando-lhe a gola, dando compostura aos botões da camisa, à braguilha e censurou-o suavemente:

-Você é impossível! Quando eu quero falar bem sério com você, você me desmancha...

-Eu já sei tudo o que você quer me falar. Eu me digo isso todos os dias, a toda hora. Não é por falta de consciência não. Eu sei que as coisas do jeito que estão não podem continuar, mas qual seria esse novo estágio, eu não sei...

- Não é possível que você não goste mais de mim. Ainda bem que você não perdeu o gosto por sexo...

- É só tomar parte de um grupo que não dá nem um mês, eu descubro que tem algo falso ali, as relações começam a se deteriorar. Sabe, eu começo a perguntar, o que eu estou fazendo aqui? Não seria melhor estar em casa? Lendo, estudando? Entretanto até isso eu não tenho feito direito!

- Você perdeu o gosto pelo Direito. Considera o Direito a burocratização da Justiça!Ou o que deveria ser justiça. Tudo bem, mas você precisa descobrir o prazer por outras atividades. Escrever... sei lá...

- Daqui a pouco você vai me dizer que eu tenho de escrever as minhas memórias...

- Não graceje Márcio..

- Olha, eu tenho pensado em pintar... Mas é só eu falar em levar uns cavaletes, pincéis e tintas para casa que meu pai tem um troço... Nós precisamos arrumar um lugar só da gente. A arrogância, a brutalidade e insensibilidade do meu pai, querendo me fazer de qualquer jeito um homem de negócios como ele e a culpa por ver a minha mãe neste estado com essas crises periódicas me paralisa! Minha vida tem sido cuidar dela de hospital em hospital, como ela fez comigo de prisão em prisão...

- Tudo bem. Mas eu acho que dá muito bem para você cuidar da sua mãe e de você também... Eu tenho vontade de sair daqui também, de não ter essa vida vigiada, mas descubro que não posso deixar minha mãe mais sozinha. Meus irmãos com essa roda-viva deles já não tem condições de dar atenção a mamãe. A vontade que eu tenho é contar-lhe tudo a nosso respeito para que você venha definitivamente morar conosco. Mas cadê coragem? Eu acho que ela jamais nos compreenderia, nos perdoaria. A cabeça dela precisaria dar uma guinada de 180 graus. Ela precisaria nascer de novo!

- Eu também tenho essas mesmas desconfianças em relação aos meus pais. Uma noite em que mamãe estava no hospital, já fora de perigo de uma operação seriíssima, nós dois estávamos juntos, tão contentes que eu quase que aproveitei o momento de encantamento para me revelar por inteiro para ela. Mas eu me contive a tempo. Eu disse pra mim mesmo: “seu louco você está querendo é matá-la de vez, ficar livre dela, cortar o mal pela raiz, destruir o objeto da culpa.” Você não imagina como me senti mal...

- Eu imagino... Eu imagino... Quantas vezes me surpreendi pensando como me sentiria aliviado depois que a velha morresse? A gente não pode evitar que esses pensamentos nos possuam. Depois eu me belisco e digo: Que bobagem Flávio, que bobagem...

A conversa estava assumindo um tom sombrio demais para o espírito dos amantes. Márcio tentou então solucionar o problema com a exposição de um novo problema:

- E o seu trabalho Flávio, como vai? Pelo menos ele tem lhe dado prazer?

- Olha, estar em contacto com as crianças é uma coisa que ainda me fascina. Eu adoro dar-lhes aula. Até certo ponto compensa o filho que não tenho e provavelmente não teremos... mas o ensino da matemática, isto já está me aborrecendo. Estou tomando certa alergia da lógica. A lógica pra mim só existe nos compêndios de matemática. Onde está a lógica nesta vida absurda que nós vivemos?

Flávio e Márcio teriam ainda muitas queixas para desfiarem. Entretanto as duas mães bateram na porta para chamarem os filhos para desfrutarem de um saboroso lanche. Enquanto cada mãe, à mesa da cozinha servia as guloseimas, misturava o café e o leite e os adoçava, cada uma cuidando de sua ovelha negra, Flávio emitindo cúmplices piscadelas para o amigo, sugeria-lhe em transmissão de pensamento: “Como seria bom se esse quarteto pudesse se desvencilhar dessas cruéis amarras invisíveis que atavam suas vidas e estivessem livres para desfrutar não de um, mas mil momentos como esse!”

Sem terem como convencer D.Ruth que naquele dia Márcio havia brigado em casa e estando com pouco dinheiro, os dois amantes, ávidos por se entregarem, dissiparem os fantasmas que vieram à tona durante o dia, não resistiram e foram à rua mais suspeita da cidade, aquela onde em diminutos e recônditos quartos de lúgrubes hotéis para cavalheiros, certas espécies ocorriam para render tributo a certo império da falocracia. Ao subirem as escadas, estavam tão ansiosos que quase atropelaram o guarda que descia após ter recolhido a propina habitual, que dava aval ao estabelecimento.

Um tanto instigado pelas investidas de Flávio, Márcio comunicou à família que compraria uns cavaletes, pincéis e tintas. O Sr. Olívio transmitiu o seu pensamento a respeito com uma só palavra: “Ridículo!”. D.Ester tentou colocar panos quentes: “Deixa ele fazer o que tem vontade. Isso é uma terapia para ele”.

Márcio sentiu-se mais atingido com a observação da mãe do que a do pai. Deste, já tinha entronizado a peculiar falta de tacto. Mas a observação da mãe o chocou, pelo modo sutil com ela declarava que dava pouca importância ao evento. “É um trabalho! Não é passatempo! Não é uma terapia que eu estou procurando!” O pai como era habitual, suportava que o filho às vezes até lhe levantasse a voz, mas que respondesse exaltado à mãe recém-convalescente, isto não perdoava: “Dobre a língua quando se dirigir à sua mãe! Com essa atividade que você quer arranjar, você não paga nem uma caixa de remédios para ela!.Como se não bastasse tudo que você já lhe aprontou!...

Como nas outras vezes a Márcio só restou procurar alívio no regaço do amante. Ao chegar no apartamento do amigo, este sentiu que os olhos de Márcio apresentavam uma inquietação, um desespero que fugia do de costume. Nesta noite não se deram nem ao trabalho de fazer companhia a D.Ruth em sua odisséia televisiva e foram logo para o quarto confabularem sobre as previsíveis frustrações do dia.

Márcio estava como que possesso:

- Eu já estou farto de ter de aturar meu pai! Ele está sempre me jogando na cara o quanto custa a minha “hospedagem”. Mas o que ele gasta com as suas amantes, isso não tem importância... Você sabia que eu tenho no interior de São Paulo uma irmã?

- Como?

- Eu nunca lhe contei antes porque eu queria esquecer essa história. Eu descobri que ele teve uma filha com uma de suas amantes. Sempre escondeu ao máximo esta história. Mamãe sempre soube que ele tinha outras mulheres, mas se resignava. Eu soube dessa filha porque o flagrei numa conversa com um ex-sócio. Ele nem imagina que eu ouvi e sai devagar do escritório, sem ser notado. O meu ódio por ele só fez aumentar.

Flávio ficou atônito. Não imaginava que os conflitos familiares do companheiro fossem assim emaranhados. Mesmo assim arriscou um comentário:

- Tudo bem. Eu sei que essa sua raiva é incontrolável, mas você não pode se deixar contaminar, se consumir por ela. Você tem que ultrapassar essas barreiras. Você não pode passar a vida inteira em branco porque essas rédeas todas lhe prendem. Esse circulo vicioso tem de ser rompido em algum ponto... Esse torvelinho de pressões paralisantes tem de ser desfeito...

- Eu sei que essa conjuntura familiar não é a principal causa. Esse meu desacerto é culpa minha. Certa vez fui a um pai de santo, ele jogou os búzios e me disse que eu reencarnei nesta vida à força. Não queria vir. Pode? Mas eu já escolhi uma trajetória, mas eu preciso de certa ajuda, de alguém como você.

- Eu não sei direito como lhe ajudar. A minha vontade é trazê-lo para cá. Mamãe não iria entender!

- Você pretende contar tudo à sua mãe?

- Eu não sei o que faço, eu não sei. Mas vou tentar fazer mamãe compreender que você é meu amigo, você é filho de uma amiga nossa, nós temos o dever de ajudá-lo...

Nem bem D.Ruth preparou-se para ir deitar e D.Ester lhe liga perguntando pelo próprio filho. Estava muito preocupada, pois desta vez ele havia se retirado de casa mais furioso do que de costume. D.Ruth tranqüilizou-a. Ele estava em longa conversa com o filho. D.Ester acalmou-se.

A viúva mais uma noite gramou uma inquietante insônia, levantou-se, tomou o comprimido de praxe e ao se dirigir ao seu quarto teve a impressão de ouvir alguém chorando no quarto do filho. Relutou várias vezes antes de encostar o ouvido na porta para descobrir quem chorava. Assustou-se com a resposta: eram duas almas que choravam. Mas as revelações não pararam por aí: não eram apenas dois corações em frangalhos, mas dois seres que para se consolarem dos labirintos que a vida lhes lançava, juravam amar-se, se ajudarem sempre e quaisquer que fossem os empecilhos, faziam questão de lembrar-se que mesmo todo respeito que devotavam às mães, não era mais digno do que o amor que se dedicavam. D.Ruth ouviu tudo aquilo em estado de choque. O primeiro impulso foi bater bruscamente na porta e interromper aquele interlúdio amoroso. Mas não teve coragem. Cambaleante, dirigiu-se ao seu quarto, caiu na cama petrificada e mordeu o travesseiro com toda gana possível.

Na manhã seguinte o simples fato de Flávio, desatento, deixar o leite que estava sendo fervido entornar, foi o suficiente para a mãe lançar-lhe recriminações:

- Onde é que você está com a cabeça? Veja só o fogão como é que ficou... Depois é a empregada aqui que tem de limpar...

- Mamãe!...

Já há um bom tempo que Flávio não via a mãe assim tão mal humorada. Por uns segundos passou-lhe pela cabeça que a mãe ouvira tudo que conversaram. Resolveu então inquiri-la:

- A senhora passou bem a noite, mamãe?

Com medo de que o filho pudesse descobrir que ela o espionava D.Ruth fez questão de pintar outro quadro:

- Dormi otimamente como há muito tempo não dormira. Por quê? Estou com uma má aparência?

Antes de uma próxima visita de D.Ester, os amantes em todas as vezes que se encontraram só tinham uma idéia fixa: a oportunidade em que comunicariam a D.Ruth que o filho Márcio precisava de ajuda e precisava vir morar com eles.

Era exatamente sobre isso que os dois amigos conversavam enquanto D.Ruth e D.Ester entretinham-se na cozinha com uma nova receita de bolo.

- Meu marido anda tão estranho – contou D.Ester à amiga. Disse que precisava resolver um negócio urgente no interior de São Paulo e viajou. Quando voltar vai ter um troço com o ateliê que o Márcio montou no quarto! Meu marido me critica muito. Diz que eu vivo dando trela para as manias do Márcio. Que eu nunca o deixei educá-lo como ele queria. Que eu estraguei a educação do nosso filho. Essas coisas. Põe a culpa toda em cima de mim!

- Nós não somos culpadas de nada!

D.Ester a princípio não entendeu o que a amiga quis dizer, mas depois se lembrou que Flávio também criava problema para sua mãe e completou:

- Esses nossos filhos poderiam arrumar uma mulher logo, casarem-se e nos deixar mais tranqüilas...

- É D.Ester poderiam... poderiam...

Quando o filho transmitiu à mãe a notícia da necessidade de transferência, pelo menos por algum tempo, do amigo para o apartamento deles, ela a princípio criou objeções, insistia que Márcio não podia deixar a mãe sozinha, que alguém precisaria socorrê-la nos momentos de crise, mas depois cedeu diante da argumentação de que seria pior ele ficar em casa criando diariamente atrito com o pai que não suportava a idéia de ver o quarto do filho transformado num ateliê de pintura.

A presença do amante do filho na casa e convivendo com eles diariamente, por mais que a perturbasse, não foi forte o suficiente para que D.Ruth se denunciasse que já sabia de tudo. Ela o tratava com educação, respeito, mas com calculo excessivo. Por mais que Márcio tentasse cativá-la, sacudi-la de suas concentrações vespertinas, quando ela elaborava trabalhos de cerâmica, ela não se dava por vencida e cautelosamente mantinha distância. Ela nem mais ousou ouvi-los encostando um ouvido na porta. Considerou essa experiência como encerrada.

Constituído este estado das coisas, não provocou estranhamento quando Márcio terminou o seu primeiro quadro e estando Flávio a essa hora dando aulas, foi mostrá-lo, exultante, à sua anfitriã e esta não expressou a menor emoção diante da obra do namorado de seu filho: uma figura andrógina que sobrevoava a cidade do Rio de Janeiro, passeando em um tapete mágico.

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.desconspiracao.com/images/Disney/aladdin.jpg&imgrefurl=http://www.desconspiracao.com/tag/conspiracao/&usg=__r2qEgcck8NfWD6JBK4656HNgZAw=&h=374&w=382&sz=30&hl=pt-BR&start=30&tbnid=rgSdcOpeAtba_M:&tbnh=160&tbnw=163&prev=/images%3Fq%3D%2522Tapete%2BM%25C3%25A1gico%2522%2522Rio%2Bde%2BJaneiro%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DG%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,520&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=556&vpy=325&dur=2587&hovh=222&hovw=227&tx=115&ty=107&ei=yfNrTKCuCcKqlAfcqsShAQ&oei=uPNrTOyACYa8lQfcmdXrDw&esq=2&page=2&ndsp=17&ved=1t:429,r:8,s:30&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjpo_IEBLpghUMHidD7z2wojt37s4YYliEyjmC546YUiVxNRC4C1VxDgu1TRmTsP05WUMtRXpbOsVrY9Q9OgkvDYfMpeEURn0xRTbJc6ulQb_25lseA0a-OXy-V1U3doaub0CvyFocuhhk/s1600/chagall05a.jpg&imgrefurl=http://opiniatica.blogspot.com/&usg=___Q1hbvah7jAAElC45p2G_BICLq4=&h=705&w=500&sz=41&hl=pt-BR&start=30&tbnid=XoWWdwTxKw_mDM:&tbnh=169&tbnw=120&prev=/images%3Fq%3D%2522Tapete%2BM%25C3%25A1gico%2522%2522Rio%2Bde%2BJaneiro%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DG%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,520&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=558&vpy=126&dur=3766&hovh=267&hovw=189&tx=108&ty=120&ei=yfNrTKCuCcKqlAfcqsShAQ&oei=uPNrTOyACYa8lQfcmdXrDw&esq=2&page=2&ndsp=17&ved=1t:429,r:2,s:30&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3EzaWiFMOgrZ6WTQWnurIr2lRhqfplhtG6R929X8pEF26jMCdrtQaiqEyeMMqbzaixQB7Ca_V9QeJXx6OR1qDykBbC_hEMfJXvpOjm116PcVSs3G4fyAO6AcWuO75ip4_D-XZ4oqdyko/s400/For+the+gays.jpg&imgrefurl=http://detalhesdaavida.blogspot.com/2009_08_01_archive.html&usg=__G23wjIJZLHm5mF8770L14dWuzvE=&h=399&w=400&sz=24&hl=pt-BR&start=0&tbnid=PhwSJqTeUQPY5M:&tbnh=134&tbnw=165&prev=/images%3Fq%3D%2522Tapete%2BM%25C3%25A1gico%2522%2522Gays%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DG%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=1102&vpy=67&dur=557&hovh=223&hovw=224&tx=163&ty=129&ei=efZrTMWBIYGdlgeJ5PzUDw&oei=efZrTMWBIYGdlgeJ5PzUDw&esq=1&page=1&ndsp=32&ved=1t:429,r:7,s:0

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://veja.abril.com.br/180298/imagens/cinema1.jpg&imgrefurl=http://veja.abril.com.br/180298/p_086.html&usg=__lnnGy7-59jAvZiWrAPbgIgwVkFw=&h=170&w=450&sz=24&hl=pt-BR&start=168&zoom=1&tbnid=PERFLvihHLqccM:&tbnh=70&tbnw=184&prev=/images%3Fq%3D%2522O%2BQue%2B%25C3%25A9%2BIsso%2BCompanheiro%253F%2522%2B%2522Bruno%2BBarreto%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DG%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,4520&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=959&vpy=259&dur=3713&hovh=136&hovw=360&tx=157&ty=79&ei=mS5tTMj0F8WqlAe-memmDw&oei=Ny5tTM7DO4W8lQf94bSEDQ&esq=2&page=9&ndsp=21&ved=1t:429,r:13,s:168&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://50anosdefilmes.com.br/wp-content/uploads/2009/12/oficial3.jpg&imgrefurl=http://50anosdefilmes.com.br/2009/a-historia-oficial-la-historia-oficial/&usg=__-yedP42VOow9Ah1BJA4Q83WIe5w=&h=433&w=800&sz=26&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=8cShDvcgqu0MBM:&tbnh=126&tbnw=169&prev=/images%3Fq%3D%2522A%2BHist%25C3%25B3ria%2BOficial%2522%2522Luis%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=654&vpy=88&dur=8471&hovh=165&hovw=305&tx=163&ty=105&ei=VzBtTKOoL4OClAeqvYCjDQ&oei=VzBtTKOoL4OClAeqvYCjDQ&esq=1&page=1&ndsp=36&ved=1t:429,r:5,s:0

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgS4IQM1QM03ZuCI7bdztO-6FjF1aB0PXZnwucpeiWuyGXyqPW3UMeZM9TDvM_rP2yvy8_l4vM37638gL87keXFAcRKGluGzLkuLXNda-fnugnLo-owLz_I9Zs7jx79ouPLJC9fHZwzWslE/s320/HistoriaOficial.jpg&imgrefurl=http://filmespoliticos.blogspot.com/2009_09_01_archive.html&usg=__FLdlB5KKtFNfo7WmNR3ndJV-OpY=&h=320&w=226&sz=25&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=dqfbk8PV8h6d_M:&tbnh=126&tbnw=92&prev=/images%3Fq%3D%2522A%2BHist%25C3%25B3ria%2BOficial%2522%2522Luis%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=234&vpy=43&dur=1213&hovh=256&hovw=180&tx=103&ty=133&ei=bTFtTKoGxoCUB-G0mKwO&oei=VzBtTKOoL4OClAeqvYCjDQ&esq=20&page=1&ndsp=36&ved=1t:429,r:1,s:0

Nelson Rodrigues de Souza