quarta-feira, 3 de junho de 2009

Os Inocentes de "Mãos Sujas" da Imprensa



O artigo de Marcelo Coelho adiante é sintomático de como a imprensa não faz sua autocrítica diante do linchamento perpetrado contra Wilson Simonal, dado que se ele realmente agiu muito mal ao entregar o contador a pessoas do Dops, pelos depoimentos do filme, nunca foi colaborador da ditadura e dedo duro, como durante anos nos fizeram acreditar, o que arruinou sua carreira. Para Marcelo Coelho é como se Simonal com suas levianas declarações tivesse sozinho cavado sua sepultura. No filme está cheio de inocentes de "mãos sujas". Jaguar, Sérgio Cabral e Ziraldo comentam a vida de Simonal como se o Pasquim não tivesse uma responsabilidade histórica forte pelo linchamento. Jaguar cinicamente declara que teve muitos amigos que morreram devido ao vício do álcool, como se o caso Simonal não tivesse as suas singularidades. Nelson Motta que é quem melhor explica o que aconteceu com Simonal, durante anos teve uma coluna de música de prestígio em O Globo. Se sabia da inocência de Simonal por que não utilizou seu espaço para tentar chamar atenção de seus pares que o estavam boicotando?

É nestas horas que faz falta um pouco do espírito de um Michael Moore no documentário brasileiro. Ele teria feito perguntas incômodas a estes entrevistados especiais. Não os deixaria "impunes". Mesmo que ficassem em silêncio ou putos como Lúcio Costa ficou em "Conterrâneos Velhos de Guerra" quando Vladimir Carvalho perguntou sobre a morte irresponsável de candangos na construção de Brasília. O único que se mostra triste no filme por ter embarcado num certo boicote a Simonal é o músico Paulo Moura. Palmas para ele. E "last but not least": por que quando anos depois já na abertura política Wilson Simonal percorreu programas de televisão como o de Hebe Camargo, declarando-se inocente ou com dossiês mostrando sua inocência, a imprensa que o destruiu não foi atrás para trazer aos seus leitores o que havia de verdade em tudo aquilo?

O caso Wilson Simonal é tão vergonhoso quanto o que atingiu os diretores da Escola Base que foram acusados injustamente de pedofilia com base em fantasias das crianças, incompetência de policiais, sensacionalismo da imprensa e tiveram suas carreiras também destruídas. Pela baixa autocrítica da imprensa ainda hoje, nada impede que fenômenos como estes voltem a acontecer. Ou pior: estejam acontecendo!

Mesmo incompleto o documentário de Cláudio Manoel, Michael Langer e Calvito Leal é um dos mais importantes lançados este ano no Brasil, pelo emocionante resgate histórico que faz de Wilson Simonal, um grande artista, tragado por um emaranhado de circunstâncias lamentáveis às quais devemos ficar sempre atentos.

Ainda hoje até mesmo um jornalista responsável e historicamente admirável como Jânio de Freitas escreve na Folha que o filme deveria se chamar “Simonal, Ninguém Sabe o Dedo-Duro que Fui”. Se Jânio sabe de coisas que o filme não mostra que venha logo a público comprovar.

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São Paulo, quarta-feira, 03 de junho de 2009-Folha Ilustrada

MARCELO COELHO

Simonal, de alto a baixo

O equilíbrio entre "vir de baixo" e "estar por cima" transforma-se em tragédia individual

COM MUITA categoria, e sem espírito de pilantragem, o documentário "Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei" faz com o espectador aquilo que o cantor fazia com o público: leva-o de um lado para o outro, balançando para a esquerda ou para a direita, conforme a música.

Durante a primeira metade do filme, não há quem não se renda ao charme de Simonal. Mas a palavra "charme" não expressa bem suas qualidades.

Um cantor como Yves Montand, por exemplo, tem o maior charme do mundo. Seduz o público com uma mistura de gentileza com despreocupação, de muito magnetismo com certo desligamento também.

Mas Simonal parece "metido" demais para ser charmoso; está tão convicto do próprio sucesso que não se curva à necessidade de "seduzir" o público.

Age como se todo mundo já estivesse seduzido. Ele surge no palco como se desfrutasse de um privilégio -o de ser Simonal- que, generosamente, resolve então oferecer à admiração dos espectadores. As pessoas não ficam apenas encantadas com o cantor: parecem gratas a ele, simplesmente porque Simonal, como um príncipe, deu-se ao luxo de aparecer.

Mesmo nas cenas a que o passar do tempo confere uma aura de ridículo (Simonal dançando o cha-cha-cha, por exemplo), a superioridade do cantor não cede um milímetro. Uma espécie de soberania psicológica parece autorizá-lo a fazer qualquer bobagem.

Um silêncio de incredulidade e de admiração se impõe na sala do cinema quando se alcança o ponto alto dessa primeira metade do filme. Numa cena histórica, vemos Simonal cantando ao lado de ninguém menos que Sarah Vaughan.

E é a grande diva americana quem parece quase uma caloura encabulada, mal e mal ocupando o palco diante daquele brasileiro que, sem nunca ter aprendido inglês, conversa com ela com uma intimidade, com uma autoconfiança irresistíveis.

O lugar muito específico da "pilantragem" de Simonal, entre as décadas de 60 e 70, talvez se explique a partir desse encontro entre a jazzista americana e o mulato carioca.

O tropicalismo exacerbava, por assim dizer, o nosso próprio exotismo -fazendo da cultura brasileira, com suas bananas, carnavais e Chacrinhas, uma espécie de caricatura crítica daquilo que os americanos viam em nós, através de Carmen Miranda e do Zé Carioca.

No "patropi" de Simonal, o tropicalismo se inverte. Negro sem ser sambista, namorando loiras e passeando de carrão no Leblon, é como se ele fosse um grande "entertainer" americano "tropicalizado", "canibalizado" pelo ambiente carioca. Ele açucarou a imagem (que intimidava os brasileiros de 60) de um negro no topo da pirâmide social.

O que ele tinha de "metido" e arrogante, aos olhos da época, era contrabalançado por essa atitude de deboche, de não estar levando o papel a sério, que é tão clara nas suas apresentações. Não por acaso, ele cantava músicas tradicionais, como "Meu Limão, Meu Limoeiro", com ginga americana.

O equilíbrio entre "vir de baixo" e "estar por cima", obtido genialmente por Simonal em sua carreira, transforma-se em colapso ético e em tragédia individual depois.

A segunda metade do filme tem seu ponto mais impressionante no depoimento do antigo contador de Simonal. Torturado no Dops a mando do cantor, é hoje um homem velho e pobre; e o espectador, sensibilizado pelo implacável ostracismo de mais de 20 anos sofrido pelo astro, sensibiliza-se igualmente pelo destino desse cidadão anônimo, que os diretores do documentário tiveram o mérito e a sorte de redescobrir.

Julgar é fácil, ter pena é fácil, e sem dúvida é mais difícil perdoar alguém que, ao que parece, não teve o senso político ou a disposição de arrepender-se a tempo. Pensando nos inúmeros e muito calibrados depoimentos do filme, acho que Simonal associou o seu sucesso profissional a uma atitude de onipotência; andar de Mercedes era equivalente a se dizer favorável à ditadura, amigo dos homens do SNI... Não era isso, afinal, estar no alto da pirâmide?

Ensinaram-lhe que não. Uma pessoa mais equipada politicamente talvez tivesse meios de reconfigurar a própria imagem. Isso não aconteceu; depois de tanto sucesso, Simonal teve de voltar para o lugar de onde veio: o lugar de baixo. Mas não sem ter marcado, também, sua presença na história da música (e da sociedade) do Brasil.

coelhofsp@uol.com.br


http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrada/images/09125322.jpg

http://ci.i.uol.com.br/filmes/g/simonal_ninguem_sabe_o_duro_que_dei_2008_g.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Nelson, creio que quase todo mundo que assistiu ao filme ficou um pouco frustrado com as entrevistas, afinal nenhum dos entrevistados reconheceu que, se Simonal "deu um tiro no próprio pé", a imprensa, intelectuais e artistas acabaram de derrubá-lo, com um tiro certeiro no coração.
    Reproduzo a seguir um comentário que escrevi tempos atrás sobre o filme:
    "Simonal- Ninguém Sabe o Duro que Dei:Um documentário que considero imprescindível. Além de reabilitar um grande artista, ajuda a entender a história brasileira recente e a refletir sobre a responsabilidade da imprensa, bem como de intelectuais e artistas, na formação da opinião pública. Montado com extrema competência, o documentário mostra a ascensão e queda de um ídolo, relegado ao ostracismo após verdadeiro linchamento ético. A gente sai do cinema carregando uma tristeza no peito e pensando em como um passo em falso, um erro cometido, pode destruir uma vida inteira.
    Simonal, o negro pobre que atingiu a glória e deixou que ela lhe subisse à cabeça, assumindo-se mascarado e trilhando trajetória individual na MPB, foi facilmente escolhido como o judas da vez, a ser malhado. Inveja, preconceito, expiação de culpa teriam influenciado nessa escolha? Como bem lembrou Ziraldo, em plena ditadura militar imperava uma total dicotomização entre os bons e os maus, sem espaço para a dubiedade. Simonal errou? Sim. Por ingenuidade, alienação, arrogância; quem sabe julgava-se acima do bem e do mal. Mas, pagou caro demais por isso.
    Faltou, nas entrevistas, que os jornalistas do Pasquim e os colegas artistas fizessem uma mea culpa mais explícita do que a que esboçaram no filme. Senti falta também, embora as cenas musicais sejam ótimas, de imagens que mostrassem para o público - especialmente o mais jovem - o Simonal intérprete, complementando a faceta tão ressaltada de showman."
    Abraços.
    Gina

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