
Pessoal,
Estarei ausente do blog por duas semanas (mais ou menos) para tratamento de saúde .
Aproveitem este período para ler posts antigos e se possível emitir comentários.
Até a volta.Abraços a todos,
Nelson Rodrigues de Souza
Uma rápida propaganda de preços menores numa certa condição da TIM aconteceu. De repente faixas da lateral direita e abaixo da tela se tomam de textos e preços de propaganda e de uma mocinha imbecilizada, sorridente, fixa na diagonal direita, abaixo, sai um balão, como se fosse uma história
Claro que depois ainda houve outra propaganda da TIM. Essa guerra dos celulares quer nos dar a impressão que vai resolver todos os males do mundo! Uma idéia que tenho para um curta-metragem é o Carlitos de Charles Chaplin de "Em Busca do Ouro" não mais comendo uma bota cheia de pregos, mas uma "macarronada" de celulares....Tempos mais modernos.....
Já é muito chato e prejudicial ver trailers com luz acesa (o que virou uma praga). Agora nos vem mais essa!
Nos primórdios da introdução de celulares no Brasil vi uma cena emblemática dos novos tempos: perto de casa na calçada do ex-Teatro Delfim uma moça estava caída no chão, chorando, ligando por celular para a família, pedindo ajuda, pois tinha apanhado do namorado. Este continuava enchendo-a de impropérios.
Tudo isto confirma Ernesto Sábato: “O homem do século XX é um gigante técnico e um infante ético”. O que eu estendo para o século XXI, num nível mais radical.
http://idgnow.uol.com.br/idgimages/200704/GodFather.jpg
Nelson Rodrigues de Souza
Não conheço crítica negativa feita ao filme “Carandiru” (Brasil-2003) de Hector Babenco que se sustente. Pelo que saiba só Hugo Sukman
1) ”Luis Carlos Vasconcelos não corresponde à verdadeira dimensão humana de Drauzio Varella....”.
O ator passa com palavras, gestos e olhares todo calor humano de quem não quer julgar ninguém, quer antes de tudo compreender, quer ser solidário, numa interpretação muito rica em nuances. É alguém que vibra com as pequenas e grandes conquistas dos presos.
2) “Carandiru” faz o elogio da “bandidagem”.
O filme como seu personagem médico, quer antes compreender do que julgar. É um filme generoso com seus personagens desvalidos. Estamos aqui longe da implacabilidade de “Dezesseis Zero Sessenta” de Vinícius Mainard com roteiro do irmão “enfant terrible” Diogo Mainard. Esse olhar de Babenco, poeta da marginalidade sim (por mais que este grande autor não goste do epíteto...) está presente em todos os seus filmes: uma solidariedade singular e comovente.
Em “Carandiru”, por mais que se evidencie o massacre de 2 de outubro de 1992, promovido pelos policiais com o beneplácito de seus comandantes nos choques brutais ( 111 presos indefesos executados ( segundo certas conversas que tive, muito mais do que isto), sendo que este fato serviu de pretexto para a criação do PCC- Primeiro Comando da Capital com o slogan “ Paz, Justiça e Liberdade”, ” roubado” do Comando Vermelho Carioca, para os detentos se protegerem de futuros morticínios), assim como várias cenas anteriores ( um rato que sai da pia que morde dedo do preso Majestade; o irmão Zico, que, doidão, joga água quente em outro irmão, Deusdete; Zico sendo esfaqueado e morto por vários outros presos ,numa situação que nos remete a “Assassinato no Expresso do Oriente”, policial de Agatha Christie filmado com eficácia por Sidney Lumet; briga de facções, talvez tendo por estopim o fato de um presidiário colocar ou não uma cueca num varal; um enforcamento de um estuprador numa noção canhestra de ética carcerária; assaltos a carros forte promovidos por Antonio Carlos e Claudiomiro; comparsas que se traem mutuamente; mulheres que disputam o mesmo homem com violência verbal; Peixeira como “o dono do pedaço”,cobrando estadia de outros presos; o mesmo Peixeira, culpando-se e tendo pesadelos com mortos que voltam “do além”, considerando-se enlouquecido e questionando o médico sobre sua própria sanidade; os aidéticos mostrados com verdade acachapante; o preso gordo que encalha num túnel cavado para fuga e é assassinado para dar passagem aos outros...etc...), por mais que ocorra todas essas “encruzilhadas das bestas humanas”, estamos longe do sabor completamente amargo que filmes respeitáveis e muito bons nos trazem, por não atingirem uma maior transcendência humana. É o caso de obras tais como “Contra Todos” de Roberto Moreira, “Nina” de Heitor Dhalia, “O Invasor” de Beto Brandt, “Amarelo Manga” de Cláudio de Assis, “Um Céu de Estrelas” de Tatá Amaral, “Cronicamente Inviável” de Sérgio Bianchi e e o recente “Tony Manero”, filme chileno de Pablo Larráin, etc...
Não é uma questão de sermos Polyanna, “tapando o sol com a peneira”, mas sim de termos fé no ser humano, com suas qualidades e defeitos, por mais que haja violências várias e corrupções para todos os gostos e desgostos, por mais que a realidade grite não...Se perdermos esta fé e acreditarmos que o homem é e sempre será o lobo do homem, não nos sobrará mais nada, a não ser clamar aos céus por uma boa morte.
No também extraordinário “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles, esta fé nos vem através do personagem do jovem fotógrafo, que assim como Paulo Lins, um dos roteiristas do filme e autor do romance que deu origem a esta obra, “deu a volta por cima”. O autor Paulo, hoje trabalha sua experiência para compreendermos, antes de tudo, o que se passa, sem moralismos e falsas piedades, numa situação que aponta para a responsabilidade de todos nós, uma resposta à questão proposta por José Joffily em seu pouco visto e urgente “Quem Matou Pixote?”. A força e contundência do rapper MV Bill e suas atitudes é outro sinal desta transcendência. Sabermos que trabalham de modo tão vigoroso meninos e jovens de favelas em “Cidade de Deus” é uma dádiva, sem nenhum paternalismo.
A velha senhora que é a única a acompanhar o enterro do rapaz “justiçado” de forma torpe e criminosa pela polícia em “Ônibus
Em “Carandiru” a humanidade dos presos e do médico nos restitui o dom de acreditarmos que um mundo diferente é possível, por mais que vejamos, com mais um extraordinário trabalho de fotografia de Walter Carvalho, um cipoal de iniqüidades, crueldades, malandragens, assassinatos e roubos.
A rigor não tenho nada contra obras artísticas que se constituem em autênticos “Cul- de- Sac” ou seja “Becos Sem Saída”, como “Dogville” de Lars Von Trier”, “Armadilha do Destino”, “O Inquilino”,”Lua de Fel”, “Chinatown e “O Bebê de Rosemary de Roman Polanski, “Cerimônia Secreta” de Joseh Losey, “O Processo” de Orson Welles,”Quanto Vale ou é Por Quilo” de Sérgio Bianchi,“ O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante” de Peter Greenaway , “A Professora de Piano” de Michael Haneke, “Assunto de Mulheres” de Claude Chabrol”, ”Saló” de Pasolini, ”O Crepúsculo dos Deuses” de Billy Wilder, ”O Passageiro: Profissão Repórter” de Antonioni, “A Mulher do Lado” de François Truffaut ( “Nem com você, nem sem você”), as tragédias gregas e de Shakespeare, obras de Kafka, Becket, Arrabal, Jean Genet, Ionesco, muito de Fassbinder, etc...etc...
É função também da obra de arte incomodar, inquietar o leitor/espectador, deixá-lo quase que sem ar, boquiaberto, mas que seja obra poderosa o suficiente para fazê-lo refletir e assim ao seu modo reverter o que se apreende na obra de arte, seja numa exposição, numa tela de cinema, num palco ou numa leitura. Não podemos trazer os fantasmas vistos nas obras de arte para as nossas vidas simplesmente e sim através de uma catarse, ganhar elementos para (por que não?) mudarmos a própria vida e a dos nossos semelhantes indiretamente, num trabalho minimalista, de formiguinha, mas que pode ter suas repercussões benignas de maior alcance. A grande arte muda a vida sim e indiretamente o mundo!Quem diz/escreve o contrário está equivocado.
Tenho, entretanto “uma queda especial” para obras que sem nenhuma babaquice, sem pieguice, sem “forçação de barra”, abrem frestas para esse “Beco sem Saída” e nos apontam para uma pequenina que seja, “luz no fim do túnel”. Claro que estas qualidades são muito subjetivas. Elas podem estar presentes ou não dependendo do espírito crítico de quem julga. Considero, por exemplo, o final de “Minority Report: A Nova Lei” de Spielberg perfeito. Já há quem considere essa obra (premonitória dos horrores das paranóias atuais dos americanos e de gente de outros quadrantes (baseada no mesmo Philip Dick de “Blade Runner”), onde todos são suspeitos de serem criminosos até prova em contrário), um filme restaurador de uma reles ordem familiar, crítica ao meu ver, não pertinente, que estendem a outros filmes essenciais de Spielberg, um dos gênios do cinema contemporâneo com um dos olhares cinematográficos mais instigantes, uma imagética das mais fortes e belas, o que se pode observar até mesmo em filmes realmente menores como “O Terminal”.
Os filmes a que me refiro, não niilistas, são obras que transcendem e vigorosamente entram e saem do “teatro da crueldade humana”. “Carandiru” de Babenco, ao seu modo bastante enviesado, apesar do massacre monumental e perversidades expostas comunga com um amor extremo às pessoas como, dentre várias possibilidades, “Noites de Cabíria” ,“8 e Meio” e “Amarcord” de Federico Fellini, “A Trilogia da Vida “ de Pasolini, “O Pianista” de Roman Polanski, “Uma Canção para Martim” de Billie August (só exibido num festival BR-RJ no Brasil), “Tudo Sobre Minha Mãe” e “Carne Trêmula” de Almodóvar, “Estação Doçura” e “Bagdá Café” de Percy Adlon, “As Lagrimas Amargas de Petra Von Kant” peça e filme de Rainer Werner Fassbinder, “A Lista de Schindler” de Spielberg, “Exílios” de Tony Gatlif, “Gritos e Sussurros” e “Face a Face” de Ingmar Bergman, “Solaris” de Andrei Tarkovsky, “2001, Uma Odisséia no Espaço” de Kubrick, “Pai Patrão” dos Irmãos Tavianni, “Deus é Brasileiro” de Cacá Diegues, “Asas do Desejo” de Wim Wenders, etc, etc...
Nem só de gosto amargo na boca vive o amante da sétima arte e outras. Há o agridoce e o transcendente também. ”O Beijo da Mulher Aranha”, romance de Manuel Puig, tornado peça de teatro, filme de Hector Babenco e musical da Broadway, tem em Molina uma dignidade, uma sabedoria e alegria de viver, que nos contagia e nos faz sentirmos mais fortes, ainda que seu final seja trágico.
3) “Rodrigo Santoro faz um travesti, para obviamente, Babenco nos mostrar um ator da Rede Globo num difícil papel”.
Rodrigo é hoje mais do que “um ator da Globo”: seu excelente trabalho em “Bicho de Sete Cabeças” de Laís Bodansky , “Abril Despedaçado” de Walter Salles, “Leonera” de Pablo Trapero e num tom menor em “A Dona da História” de Daniel Filho, dentre outros, o colocam como um do melhores atores de sua geração. Sua composição do travesti Lady Di é primorosa, gesto por gesto, olhar por olhar. O casamento dele com “Sem Chance” vivido pelo também soberbo Gero Camilo, é uma das cenas mais tocantes do Cinema Brasileiro. A alegria genuína dos amantes, o jeito feliz e cúmplice do médico, fazem da cerimônia celebrada por um homossexual, um oásis em meio a tantas agruras. Antes temos a fala excelente da mãe de Lady com o pai, que não quer o casamento: ”Nós estamos velhos demais pra sabermos o que é certo, o que é errado.”
4)” O filme foi recebido friamente pela platéia e pelo júri em Cannes”.
Desde quando a platéia de Cannes, em alguns aspectos fashion, os júris, são termômetros certos de qualidade superior e justiça? Absurdos acontecem por lá. “Dogville” de Lars Von Trier perder a Palma de Ouro para “Elefante” de Gus Van Sant, um filme muito bom, mas que é um pigmeu perto do primeiro, é pra mim um grande equívoco. “Roseta” dos irmãos Dardenne (só exibido em festivais no Brasil) que ganhou a Palma de Ouro principal, é excelente, mas não é mais significativo que o aliciante e fantástico “Tudo Sobre Minha Mãe” de Pedro Almodóvar. A não inclusão de “Casa de Areia” de Andrucha Waddington na competição oficial de 2005, um filme também transcendental, é uma gritante injustiça, etc...
”Dogville” nos mostra um mundo muito cruel, em que a violência é combatida com violência, mas sua dramaturgia é tão poderosa que o amargor vem acompanhado de uma sólida reflexão sobre os desatinos desse país (os EUA) que se considera um exemplar de civilização a ser seguido por todos os povos, o que toca as cordas do absurdo. Pode-se extrapolar o filme para outros rincões, mas a referência particular aos americanos é notória. A maldade do ser humano neste filme assusta mais do que a que é praticada por presos de “Carandiru”. Lars Von Trier tem um olhar perverso, numa chave altamente crítica que aponta para soluções que o espectador é quem tem que buscar, uma forma também legítima de se fazer cinema.
5) “Carandiru” é mal-ajambrado enquanto filme”
O filme de Babenco tem roteiro magnífico (de Fernando Bonassi, Victor Navas, o próprio Hector) com cuidadosos e elucidativos flashbacks que compõem um mosaico dos antecedentes criminais e esperanças de vários presos chaves da narrativa.Uma eficácia que os maneiristas flashbacks de Monique Gardenberg em “Benjamin” não atingem. Os trabalhos de Wagner Moura, Lázaro Ramos, Ailton Graça, Millen Cortaz, Caio Blat, Ricardo Blat, Milton Gonçalves, a sempre sublime e camaleônica Maria Luiza Mendonça ( tão esplêndida aqui como em “ Coração Iluminado”, outro trabalho subestimado de Babenco, assim como o oportuno e inquietante “Brincando nos Campos do Senhor”, onde o olhar generoso é direcionado aos índios, mas sem idealizá-los), etc... são de rara qualidade.
Estes desempenhos nos reafirmam o quanto Babenco é um meticuloso diretor de atores, assim como tem apurado senso de ritmo na realização de planos e seqüências que retemos na nossa memória afetiva tais como Pixote mamando num peito da prostituta de Marília. Pêra; a missionária fanática de Kathy Bates espantando os índios que se amam na rede em “Brincando nos ...”; Meryl Streep como uma sem-teto que se abriga numa biblioteca fingindo que lê livros em “Ironweed”, um fracasso de público nos EUA porque seu pobre povo não pode ter olhos para sua própria miséria, principalmente através de um filme lançado no dezembro natalino, por um olhar estrangeiro.
Dentre algumas seqüências de “Carandiru” primorosas, com sabor de antologia destacam-se: o sangue que se mistura à água escadaria abaixo, lembrando-nos uma pintura de grandes mestres; o hino nacional cantado com fervor pelos jogadores, pouco antes do massacre, onde eles estão em comunhão com essa nação que nos traz tantas decepções, mas o que importa é que por alguns momentos de epifania, eles acreditam no país em que vivem; o desalento dos presos todos nus no pátio, enfileirados, numa massa de sobreviventes atordoada; o preso interpretado por Dionísio Neto, que é salvo do extermínio por ter a cara parecida com o filho de um policial que por um triz não lhe tira a vida; a entrada triunfal de Rita Cadillac ensinando a uma platéia gigantesca, atulhada de presidiários o uso correto de camisinha através de uma fálica garrafa e a alegria e euforia das pessoas com aquele grandioso show da diva possível, etc..Algo análogo em menor escala, em relação à Rita, Babenco faz com um show de um cover mambembe de Roberto Carlos em “Pixote” no deletério ambiente da FEBEM que o filme nos mostra.
Babenco está aqui no auge de sua maturidade enquanto cineasta. O extraordinário “Pixote” tem a sombra de “Os Esquecidos” uma das obras-primas de Luis Buñuel, pairando sobre ele. Quanto a “Carandiru” não há um filme sequer sobre encarceramento de seres humanos, ao que eu saiba, que o suplante, nem mesmo os excelentes “O Sistema” de Tom Gries,. “Um Sonho de Liberdade” de Frank Darabont e até mesmo o vigoroso “Memórias do Cárcere, que é parcimonioso no retrato dos presos comuns (o seu forte é mostrar como resistem os intelectuais como Graciliano Ramos, uma médica como Nise da Silveira, etc criando seus mundos à parte numa atitude análoga, mas bem diferente das criações dos encarcerados de “Carandiru”). Só o subestimado e excepcional “O Expresso da Meia Noite” de Alan Parker lhe é comparável.Tanto Parker como Babenco trazem com vigor raro, o horror que é ser privado de liberdade numa prisão.Num país (ou mundo?) em que se fizermos uma enquête, a maioria das pessoas deve comungar com um ódio atroz pelos presos, por supostamente estarem com “casa, comida, roupa lavada, energia elétrica, etc..”, tudo de graça, estes filmes essenciais não realizam pequena façanha...
6) ”A implosão do complexo de prédios do Carandiru, um documentário inserido no filme traz a falsa impressão de que os problemas de presos estão resolvidos no Brasil.”
O filme não autoriza essa interpretação. Ele mostra o que aconteceu realmente. Aquele inferno particular foi destruído, sepultando muitas histórias, algumas colhidas pelo olhar generoso de Drauzio Varella. Outros infernos existem em outros recantos. Babenco não é ingênuo, ele sabe disso. Pode-se agora fazer um filme, por exemplo, sobre os horrores de uma prisão de São Gonçalo, com presos engaiolados e amontoados, se revezando para poderem dormir.
7) “ O Prisioneiro da Grade de Ferro” de Paulo Sacramento é o filme que vai ficar para a História como um autêntico retrato do que era o complexo “Carandiru”, um documentário que tem o olhar dos próprios presos para a realidade que os circunda, com câmeras de vídeo em mãos.”
Carandiru já ficou na memória de milhões que foram prestigiá-lo no Cinema, o estão assistindo em DVD e por serem atingidas profundamente pelas emoções vivenciadas pelo filme, passaram essas emoções para outras pessoas e uma corrente eterna será feita.
&
Defeitos? O filme tem um “gravíssimo”: poderia ter apresentado uma metragem muito maior, pois mais histórias boas para contar não faltavam. Não é à toa que surgiu a série de televisão com o mesmo tema.
“Carandiru” é um filme humanista na melhor tradição do termo como “Ladrões de Bicicleta ” e “Umberto D” de Vittorio De Sica , “Três Irmãos” de Francesco Rossi, “Os Últimos Passos de um Homem”de Tim Robbins, “Não Matarás” de Krzysztof Kielowski. “As Portas da Justiça” de Gianni Amélio, ”Dançando no Escuro” de Lars Von Triers, etc.....sendo esses quatro últimos filmes, dentre outros temas, excepcionais libelos contra a pena de morte, sem perder a dimensão de grandes obras de arte, representando um não rotundo aos que almejam essa punição extrema, uma obviedade que deveria ser seguida por toda sociedade que se quer julgar civilizada, mas que não encontra eco num contingente enorme de pessoas e países. Para muita gente, inclusive pessoas que se acreditam bem-pensantes, a palavra humanismo hoje virou palavrão. A propósito de seu filme citado anteriormente, com atuações embasbacantes de Sean Penn e Susan Sarandon, Tim Robbins afirmou que sua função como cineasta era abrir janelas para onde as pessoas não querem mais olhar, uma operação que se encontra em todos os filmes de Hector Babenco e em “Carandiru” em particular..
Segundo os letreiros finais há três versões para a história que “Carandiru” nos conta: a de Deus, a dos policiais e a dos presos. Foi mostrada a dos presos....Mas com intervenção divina acrescento.
Para quem ainda não entende (ou finge que não entende) por que aconteceram/acontecem as Revoluções Francesa, Mexicana, Cubana, Bolchevique, as rebeliões nas Febens e nos presídios como houve em “Carandiru”(um complexo projetado para abrigar 3000 presos mas que já chegou a ter em seus domínios por volta de 9000 ), os homens-bomba, a revolta de Canudos, a violência nas favelas e nas ruas dos grandes centros,etc...medite sobre este trecho de “O Grito do Povo- Os Canhões do Dezoito de Março”, história em quadrinhos sobre a insurreição popular de 1870, com a França mergulhada numa guerra civil, conhecida como a “Comuna de Paris”, HQ esta, desenhada e escrita por Tardi ( famoso por ter feito o cartaz de E
“Por acaso somos cegos? É preciso que os pobres cheguem a tal ponto de miséria que não lhes reste alternativa a não ser se rebelar? Um dia as cordas que os prendem irão se transformar no estandarte do ódio.”
http://www.aids.org.br/mostra2006/images/filmes/Carandiru.jpg
http://www.cdcc.usp.br/ciencia/artigos/art_23/sampafilmesimagem/carandiru.jpg
http://globofilmes.globo.com/GF/foto/0,,5124472,00.jpg
Nelson Rodrigues de Souza
No Limiar da Corrupção
Tão logo o diretor da Autarquia entrou na sala de reuniões, os chefes de departamento silenciaram imediatamente e acompanharam-no com seus olhares receosos. Tinham já conjecturado sobre a razão desta reunião extraordinária, mas nenhum deles possuía um indício sequer realmente palpável. “Quando falta informação, a imaginação coloca-se a trabalhar” – já filosofou antes várias vezes o inefável e imprevisível diretor. E era justamente desse mal que padeciam os intrigados funcionários.
Dr. Mendonça sentou-se na cabeceira da mesa, tomou pausadamente o seu cafezinho enquanto calculava as palavras a ser proferidas, o que deixou alguns dos chefes mais impacientes, irritados, ainda que não permitissem que essa irritação transparecesse, penalizando então os pobres lábios que se viam furtivamente mordidos.
“Senhores, o momento que nossa Autarquia atravessa é muito grave!” – enfatizou Dr. Mendonça, como um dentista que depois de uma longa “mise-en-cene” toca uma cárie exposta. “Nós todos aqui sabemos da excelência dos trabalhos realizados, temos consciência de que temos sempre procurado fazer o melhor para o desenvolvimento de nosso setor, mas o nosso Ministro não anda sendo bem informado a respeito da necessidade vital de permanência da nossa Autarquia. Senhores, eu sei que ficarão estarrecidos como eu fiquei, mas cumpro o doloroso dever de lhes informar que se cogita em Brasília de acabar com o nosso órgão, depois de tantos anos de bons serviços prestados! E isto nem é um segredo. Outros órgãos também tem problemas neste sentido.Vocês vão ler isto nos jornais. Uma lástima!”
Os chefes que até então ouviram tudo com calculada calma puseram-se a falar compulsivamente, formando uma sinfonia perturbadora e dissonante com insólitos elementos tais como “Isso não é possível!”, “É uma injustiça!”, “Essa nova presidência da República!”, “Era só o que faltava!”, “Esse Ministro!” e outras ladainhas análogas. O diretor-maestro deixou-a inacabada, interrompendo, incisivo, o estrépito dos instrumentos e retomando a palavra: “Senhores, eu sei que o momento é difícil, compreendo as suas apreensões, mas nenhuma decisão concreta ainda foi tomada. Estamos apenas no terreno das especulações. O ministro irá refletir melhor, tenho certeza. Temos as mais fortes razões para nos preocuparmos, mas não podemos permitir que uma fração sequer de desespero nos esmoreça. Temos muitos trabalhos já engatilhados e o que de melhor temos a fazer é redobrar esforços. Muito! Multiplicar o afinco com o qual devemos nos debruçar diante das tarefas. As atenções deles diante dos nossos trabalhos serão intensificadas. Nós agigantaremos a qualidade e presteza dos nossas obras com maior garra ainda. Para isso, eu tenho umas reformas para lhes comunicar. Os senhores devem abandonar os seus postos de chefia hoje mesmo!”
A audiência que tinha adquirido uma coloração de maior tranqüilidade voltou a apresentar o estupor, a insegurança do choque inicial. A voz reverberante do diretor novamente veio em socorro dos fiéis: “Senhores, está sendo criada hoje uma Assessoria Técnica e Administrativa da Presidência e eu conto com a colaboração de todos vocês. Os Chefes de Departamento serão de agora
Cada chefe escolheu então o substituto, com o referendum dos demais, de acordo com um critério quando não de antiguidade, baseado no currículo e nos trabalhos desenvolvidos. Jair ao escolher Luiz Carlos, entretanto, quebrou a harmonia da seleção que reinou até então. Homero levantou as mais fortes objeções, desafiando o coro dos contentes: “Luiz Carlos me parece ter habilidade, mas nem se compara a Renato que você tem subaproveitado. Renato é mais antigo na Autarquia, tem maior experiência e um currículo muito melhor, com cursos de grande prestígio. Por que não escolhê-lo?” Jair irritou-se com a intervenção: “O senhor se mostra bem informado demais a respeito dos meus funcionários, senhor Homero. Parece até que tem relações particulares com eles. Consegue até comparar as competências. Só que o senhor deve saber muito bem também como todos nós aqui, pois já comentamos isso e muito em reuniões, que este funcionário é um homossexual e creio que não ficaria bem para uma Autarquia que necessita provar as suas melhores qualidades ter um chefe com tal predicado.” A solidariedade para com Jair foi imediata. Homero sentiu-se em incontrolável inferioridade e tentou ainda argumentar: “Eu não creio que num momento como esse em que temos de concentrar o melhor dos nossos esforços, a vida particular e afetiva de um funcionário tenha maior peso do que a sua comprovada competência. É transparente a diferença qualitativa entre os dois. Eu acho que isso vai “pegar muito mal” tanto dentro do departamento de vocês como fora. Isto pode ser fator de desestímulo, principalmente, diante de nossas funcionárias mulheres que vão se projetar no funcionário preterido. E olha que a contribuição delas tem sido decisiva!”
O diretor encarou Homero e Jair com energia e deu o seu parecer, após uma minuciosa e requintada baforada em seu cachimbo: “Dr. Homero tem razão! Não podemos nos descartar do funcionário Renato dessa maneira. Se ele é visivelmente o mais adequado, ele deve ser escolhido! Vamos dar-lhe um voto de confiança!”. Até mesmo Homero surpreendeu-se com a decisão do Dr. Mendonça. Mas como, segundo um slogan predominante na audiência, “chefe é chefe e decisão de chefe não se discute”, aquietaram-se todos.
De fato, todos os presentes não mais ignoravam que Renato era homossexual. Naquela mesma sala o assunto já tinha sido alvo dos mais desabonadores e jocosos comentários. Se na época, Homero esforçou-se por ficar quieto, desta vez lembrou-se da auto-admoestação que impingiu a si com muita força e não mais se conteve, defendendo o funcionário com argumentos que resultaram um tanto ambíguos e certamente lhe provocariam algum desgaste perante os demais assessores, levantando até suspeitas pela razão de sua solidariedade, o que poderia desmontar álibis bem criados com casamento, mulher e filhos. Mas correr este risco lhe assomou como algo totalmente imperioso.
Poucos anos atrás, quando tinham passado mais uma vez o telefone a Renato em sua sala com um sarcástico “É aquela voz”, ele atendeu como de hábito, constrangido, à chamada. Ao ver seus comentários lacônicos serem arremedados por alguns colegas num nível de deboche já agudo, interrompeu a fala alegando que depois a retomava e explodiu: “Vocês estão doidos para saber de quem é essa voz masculina que tanto liga pra cá? Não é? Pois é meu amante entenderam, é isso mesmo! Agora que vocês já estão saciados eu quero que vocês acabem com esse chá diário de mediocridade e cuidem das suas vidas e do trabalho!...”
Renato sentiu vontade de mandá-los todos a certo lugar comum, mas lembrou-se do chefe Jair ao lado, próximo à mesinha do telefone e calou-se. Quando Renato saiu da sala, os colegas entreolharam-se em transe num coro de frases feitas, destacando-se: “Ele nunca me enganou!”, “Ele está com problemas com o macho dele e a gente é que paga o pato!” Jair limitou-se a sacudir a cabeça e emitir um “É...”. Na próxima reunião com os chefes de então, o assunto veio à tona. Houve até quem perguntasse a Jair se o seu funcionário era pelo menos ativo. “Essa coisa de ativo e passivo da Autarquia é com o departamento do Homero!”- disse Jair rindo. Até mesmo Dr. Mendonça abandonou a fleugma habitual e aderiu às sonoras gargalhadas. Homero cuidou-se de início, mas logo se juntou aos demais. Mais tarde envergonhou-se da concessão feita ao clima dominante.
Informado pelo Dr. Mendonça numa reunião com os prováveis novos chefes, de que seria o chefe de seu departamento, Renato pediu um dia para dar a resposta. A indecisão do momento dado que os demais aceitaram prontamente os cargos, incomodou o diretor. Sentiu vontade de aturdir o funcionário para fazê-lo ver a grande oportunidade que lhe concedia, mas logo cedeu à idéia do tempo para assimilação da novidade, com a ressalva de que no dia seguinte, pela manhã, impreterivelmente, queria uma resposta.
À noite Paulo e Renato levantaram todos os prós e contras da oferta da tarde e se sentiram num emaranhado novelo. “Eu sei que o aumento de salário vai ser interessante para nós dois – argumentou Paulo preocupado –, mas eu me pergunto se a gente vai ganhar tranqüilidade com o enorme aumento das suas responsabilidades. A impressão que me passa pelo mau-humor com que você tem voltado do trabalho é que as picuinhas do ambiente lhe violenta bastante. A idéia que eu faço da Autarquia é que é um buraco negro da economia, um intrincado cabide de empregos. Eu sei que este é o emprego “que se lhe ofereceram”, mas tenho meus receios. Eu sei que sou um privilegiado, pois tenho os aluguéis que recebi de herança e posso me dar ao luxo de me acomodar nos nossos trinta e tantos anos, estudando e fazendo o que bem entendo, com meus quadros que pouco vendo, sem me preocupar com esses lugares públicos e privados sórdidos. Do jeito que estão as coisas eu não sei qual deles é pior, se o marasmo do funcionalismo parasita mesclado com os vários momentos de grande sufoco( alguns tem de carregar os departamentos nas costas) ou a neurose compulsiva de lucros da iniciativa privada, sem freios.O que eu pergunto a você é se acredita mesmo que a Autarquia seja imprescindível para o país. Caso contrário não seria melhor você continuar na sua, sem se envolver demais com aquelas jararacas deste serpentário, com poucas exceções?
Renato desconcertou-se com a objetividade do amigo. Respirou de modo ofegante, encarou-o, denunciando um ar de cansaço e enfado nos olhos e posicionou-se: “Eu cotidianamente vejo uma porção de expedientes mesquinhos ao meu redor. Pouco pude fazer até agora para mudar esse estado de coisas. Aliás, fiquei um tempo na geladeira sem me darem trabalho. Agora tenho a oportunidade de trabalhar para ver, pelo menos no meu departamento, as coisas mudarem. Olha, eu acredito que se a Autarquia for encarada realmente com seriedade por todos, ela pode vir a ocupar seu espaço que é legitimo, necessário, da melhor maneira possível. Eu vou aceitar! Lavar as mãos será pior!”.
Na primeira reunião que Renato realizou com seus agora subordinados ficou patente o visível mal-estar que acometeu Luiz Carlos principalmente. Se alguns olhares mostravam-se solidários, outros desconfiados, indecisos, o rosto de Luiz não disfarçava nada o desgosto por estar ali recebendo aquelas instruções todas como um funcionário como os outros, algo que o abominava. Durante a chefia de Jair fora privilegiado com os trabalhos mais interessantes, comungou com as maiores inquietações profissionais do chefe e agora sentia uma barreira nítida diante de si. Viu-se apenas como mais uma pecinha da engrenagem como tantas.
Conforme esperava, num rápido seminário sobre os trabalhos em evolução, correspondentes a cada funcionário, que realizou entre seus subordinados, Renato deparou-se com um problema inquietante: realmente, de todos eles, dado a intimidade com o chefe anterior, Luiz Carlos era quem tinha uma visão mais abrangente dos trabalhos realizados nos últimos anos. Durante o início de sua chefia teria de contar com uma maior boa vontade desse funcionário, pelo menos até que pudesse difundir mais suas novas diretrizes perante os demais. Algo que lhe exigiria um bom tempo de ensino e muita paciência.
Ao interessar-se por um trabalho recente que sabia ter sido feito por Jair e Luiz Carlos, o novo chefe sentiu as primeiras dificuldades. Tinha necessidade de inteirar-se do balanço feito das atividades do ano anterior em sua área. Solicitando as cópias a Luiz Carlos este alegou desconhecer o paradeiro: ”Quem sabe os originais estejam com o diretor e umas cópias com o Jair. Eu não tenho certeza” – argumentou Luiz Carlos com nítida má-vontade. Ciente da necessidade do chefe, a sempre solícita Sílvia lembrou-se da região do arquivo onde uma vaga lembrança a fazia supor que Jair tivesse guardado os documentos. Investigando o conteúdo das pastas achou o pequeno dossiê esperado. Como Renato aquela tarde extrapolou o seu horário habitual com todos, Luiz Carlos mordicou-se, mas não viu abertura para criticar a parceria. Encarou-a apenas com ferocidade lançando-lhe telepáticos palavrões.
Na manhã seguinte Luiz Carlos enquanto o chefe não chegava recriminou Sílvia: “Qual a razão de você se adiantar e entregar os documentos para ele? Está querendo fazer boa imagem? Não adianta essa badalação para cima dele porque você sabe que ele é uma bichona! Não vai ceder aos seus apelos!... Era só o que nos faltava acontecer: a gente ficar sob o comando desse veado!”. O funcionário inflamou-se tanto que não percebeu a entrada de Renato. Silvia permaneceu impassível, não lhe fez nenhum sinal. As lamentações continuaram: “Sabe, é uma humilhação para todos nós ficarmos dependentes da vontade desse bicha! Apesar de gostar do trabalho daqui, eu vou arrumar uma transferência para a sala do Jurandir mesmo que seja uma área que me desagrada.” Pensou ainda em dizer: “Além do mais eu não estou a fim de me contagiar com Aids. Trabalhar aqui também está ficando é perigoso!” Mas imaginou Sílvia o enfrentando, esmerando-se em sarcasmo: “Está com medo de ter vontade de transar com o chefe é, pois só assim pode haver algum risco. ...E afinal quem disse que ele é soropositivo?” Luiz calou-se então neste quesito.Respirou fundo e preparou-se para mais investidas contundentes, mas percebeu finalmente a presença de Renato que os encarava, trêmulo de raiva. Por alguns instantes prevaleceu um silêncio pesado, o chefe se recompôs afinal e abrandou a intervenção desejada: “Luiz Carlos, o senhor pode ir para onde quiser. O que eu não vou permitir é que continue levantando intrigas sobre questões pessoais. Faça-me o favor de limitar-se às suas tarefas.” Luiz acomodou-se em sua mesa, furibundo, contorcendo-se com a raiva reprimida.
Na reunião na diretoria à tarde, Renato procurou mostrar ao Dr. Mendonça as conclusões que tirou da leitura do dossiê. “Sr. Diretor há vários valores aqui superestimados. As reformas feitas não foram necessárias.Eu lamento ter de lhe comunicar isso mas o Sr. Jair exorbitou de suas funções, favorecendo sem o embasamento suficiente determinados índices. Veja... “
O Diretor o interrompeu: “Eu sei muito bem o que o senhor quer me mostrar. Afinal eu li também este dossiê. A questão é que o senhor ainda não sabe como é o mecanismo de dotação de recursos para a Autarquia. Nós fomos contemplados com certo orçamento para o ano passado, fizemos projetos a menos do que esperávamos. Sobrou-nos uma parcela. Nós entendemos então que essa verba teria de ser aplicada em melhorias para o nosso trabalho, como um banheiro mais moderno e outros investimentos...” “Mas diretor – interrompeu Renato estupefato –, há pouco tempo já haviam sido feitas obras no banheiro e aconteceram também compras desnecessárias, máquinas supérfluas!” Dr. Mendonça impacientou-se: “Sr. Renato, o senhor está se mostrando sem visão adequada. O Sr. pode garantir que não mais expandiremos o nosso quadro funcional? Há a lei agora que nos amarra! Mas e depois? Tudo isso que foi comprado será utilizado! Além do mais nós não poderíamos de modo algum ter devolvido a verba porque se assim tivéssemos procedido nossos orçamentos futuros estariam comprometidos. Eles não encarariam como deveriam, as nossas necessidades. Receberíamos bem menos do que nós tivéssemos pedido, pois estariam crentes que trabalharíamos com menos...Mas não vamos mais falar dessa história Sr. Renato! Isto é coisa do ano que passou! O importante é nos concentrarmos no trabalho do atual exercício. Existe um seminário urgente no qual o senhor irá nos representar, por estar melhor preparado no tema principal, em Recife, daqui a três dias.Agora tenho de ir discuti-lo junto à Assessoria, antes de lhe passar as coordenadas.”
As novas preocupações incutidas na cabeça de Renato foram tão fortes que em alguns momentos pensou até em desistir do cargo. Sua cabeça estava tão confusa que não sabia ao certo o que mais o incomodava: se a postura do diretor diante do dossiê ou as novas tarefas recebidas de supetão. Ao aceitar o cargo já imaginava certa resistência de Luiz, mas não esperava que ela fosse tão ostensiva, o que aumentava ainda mais suas preocupações. Acalmando-se, sentou-se na escrivaninha de casa para esboçar os tópicos a serem abordados na palestra. Vendo-o tão preocupado, Paulo fez questão de acompanhá-lo até Recife.
Após uma breve exposição dos trabalhos realizados pela Autarquia, um dos convidados perguntou a Renato sobre um problema de Olinda que não foi abordado em nenhum trabalho. O expositor simplesmente admitiu que não tinha nenhuma notícia desse trabalho. O convidado insistiu que Jair no seminário anterior havia prometido uma solução e que um ofício a respeito do tema havia sido enviado à Autarquia. A Renato só restou acrescentar que iria averiguar o que realmente aconteceu. Outro representante ousou perguntar como a Autarquia reagia à idéia ventilada de extinção. “Nós temos nos esforçado no nosso órgão no que diz respeito ao nosso desempenho em todas as áreas para que em Brasília se conscientizem da real necessidade de nosso trabalho” – respondeu Renato com mal dissimulada vergonha das próprias palavras proferidas. A lembrança da palavra “nós” pronunciada provocou-lhe um rubor na face que se tornava visível para alguns espectadores mais à frente. Outro representante ainda mais audacioso atreveu-se a perguntar se a Autarquia não estaria com excesso de funcionários. Renato titubeou, mas acabou admitindo que acreditava mesmo que ela tinha esse problema. Perguntado sobre que medidas seriam tomadas ele alegou desconhecer os planos da diretoria nesse sentido. Terminada a fase de debates, antes da próxima exposição, seguiu-se o cafezinho no salão nobre. Rodeado por curiosos, Renato teve ainda de responder com mais detalhes a alguns que tocavam na mesma tecla do fechamento. Um pouco mais descontraído na conversa informal ele pode expor melhor o que realmente pensava a respeito. “Por que não veio com a sua mulher?” – perguntaram ao chefe debutante que ficou com o rosto enérgico, crispado. “Ela não estava passando bem e ficou no Hotel” – respondeu Renato, mais uma vez vexado de si mesmo.
Ao chegar ao hotel encontrou Paulo bastante aborrecido: “Puxa vida, você saiu de manhã e nem me acordou. Eu tinha a maior curiosidade em vê-lo palestrar, mas pelo jeito você ficou com vergonha de mim”. Renato justificou-se: “Eu não quis que você me acompanhasse porque eu não queria deixar nenhuma margem para especulações.” “Isso é paranóia de sua cabeça. – irritou-se Paulo – Deveria ter tanta gente lá... Quem é que iria saber que você é meu namorado? Bastava que não entrássemos juntos.”
O novo chefe com os nervos à flor da pele perdeu a paciência com o parceiro: “Com tantas questões fervilhando na minha cabeça você vem me aporrinhar com essas frescuras!” Isto bastou para que fossem dormir cedo, amuados, sem se falarem. Como demorassem a pegar no sono, Paulo pulou sobre o amante no escuro, sussurrou-lhe ao ouvido que esquecesse as colocações que fizera e logo entrelaçavam os corpos com gestos precisos de proteção mútua.
Os dois assistiram às exposições da manhã seguinte como dois estranhos e à tarde dirigiram-se ao aeroporto para a volta a São Paulo. No avião Paulo suspirou junto ao amigo: “Ufa! Ainda bem que nenhum daqueles chatos quis lhe acompanhar até o aeroporto, como em “Um Só Pecado” do Truffaut! Por pouco eu quase vejo esse filme de novo!”
Apresentado um relatório de viagem, Renato concentrou-se num trabalho sobre S. Leopoldo que era urgente. Como Luiz era o único da sala que já tinha viajado para a localidade com o ex-chefe, foi solicitado a ele as informações recolhidas e os nomes e referências dos principais contactos. Luiz alegou não se lembrar muito bem desse caso em particular porque depois daquela viagem inúmeras outras foram feitas e sua memória não era tão bem dotada assim. O chefe percebeu pelo tom cínico da argumentação, pelo prazer quase sádico tenuamente estampado no rosto, que se em parte era verdade o que o subordinado dizia (não se lembrava de tudo com detalhes), muita coisa sabia e não estava nem levemente inclinado a fornecer essas informações. Sílvia e Aloísio foram chamados à sua mesa, o problema foi explicado e os dois passaram toda manhã e boa parte da tarde ligando para diversos órgãos de S. Leopoldo à cata de informações. Reunida a base de dados necessária os dois enfronharam-se no computador para variados cálculos e comparações com outras localidades já disponíveis em arquivo.
Renato que até aquele ponto havia se mostrado sereno, apesar das provocações de Luiz, transtornou-se completamente quando o desafeto recusou-se a desvendar alguns contratempos computacionais que paralisavam o trabalho dos dois colegas. Foi só ouvir Luiz asseverar que já cansou de explicar aqueles macetes e que eles já não deveriam ter mais dúvidas, Renato exasperou-se: “Pois eu já estou farto de seu corpo mole. Ou você se toca de que com a mudança de hierarquia a necessidade de colaboração mútua é imperiosa, imprescindível, ou vou ser obrigado a me valer da minha posição. Essa é a ultima vez que eu suportarei sua displicência.” Os dois acomodaram-se quietos em suas mesas em meia hora de respirações ofegantes e manejo tenso das canetas, lapiseiras, calculadoras e teclados. Como Luiz continuou ignorando as dúvidas dos colegas, Renato viu-se compelido a ir ele próprio ajudá-los, interrompendo a escrita do texto do relatório que ia adiantando. Naquele dia não só o chefe como os dois subordinados saíram bem mais tarde do que o usual.
O primeiro assunto tratado com o Dr. Mendonça, após a entrega do trabalho, pela manhã, foi a indolência de Luiz. Renato ponderou que se não contasse com a imediata colaboração do funcionário seria obrigado a pedir a sua dispensa e substituí-lo por alguém disposto realmente a trabalhar. Garantiu que só daria a ele uma oportunidade a mais. O diretor mostrou-se decepcionado e preocupado com o que considerou uma disputa: “Sr. Renato, é lamentável que em tão pouco tempo essa inimizade já tenha sido criada. O Luiz Carlos é um funcionário competentíssimo. Na gestão do Jair ele mostrou-se bastante produtivo. O senhor precisa aprender a ganhá-lo: tem de ser habilidoso. Aposto que o está tratando como se ele fosse igual a todos os outros ali e sabemos que ele não é. O senhor sabe que ele é filho do Dr. Noronha não sabe?” Renato respondeu que já ouvira falar e mostrou um semblante insubmisso o suficiente para que nele fosse dito um silencioso e patente “E daí?”. O diretor procurou uma máscara mais intimidadora: “Sr. Renato, o Dr. Noronha é um aliado nosso em Brasília, decisivo! Ele é intimo de vários assessores do Ministro. Numa época de tantos cortes e apreensões não podemos nos dar ao luxo de criar problemas com o nosso ilustre e essencial simpatizante. Eu gostaria que o senhor lidasse com o filho dele de modo bastante diplomático, entendeu? Fui suficientemente claro?” Renato sentiu os olhos turvarem, sentou-se e tomou um cafezinho demoradamente.
O diretor continuou: “Outra coisa Sr. Renato, fiquei sabendo que o senhor em Recife teve a audácia de declarar que nós estamos com excesso de funcionários! Com base em que o senhor se atreveu a esse disparate? Nós temos tantas áreas a serem atacadas que em breve nos faltarão funcionários. Essa lei que nos restringe as contratações logo nos trará problemas!” Renato com voz ligeiramente trêmula conseguiu contra-argumentar: “Tudo bem. Se forem feitas mudanças estruturais fortes e nas linhas de ações, no futuro poderemos vir até a precisar de novos funcionários. Mas atualmente é patente a ociosidade. Basta passear pelos corredores, entrar nas salas!” Dr. Mendonça reagiu com pronta rispidez: “ Vamos admitir que isso seja verdade, Sr. Renato. Mas isso é coisa que se diga num seminário aberto ao público? O senhor teve sorte porque esse era um seminário regional de menor importância. Nem a imprensa local noticiou nada, o que foi uma sorte. Mas e se fosse aqui
Por mais que Renato se esforçasse, o almoço não lhe descia ao estômago, os talheres balançavam trêmulos sobre os pratos. Abandonou então a mesa e restringiu-se a um suco da lanchonete. À tarde expôs a situação de S. Leopoldo com tropeços, sem a fluência com que enfrentou o público no seminário. Chegou ao fim de sua explanação esclarecendo todos os pontos que pretendia, muitas vezes mostrando-se chato até, reiterando diversos pontos. A falta de tranqüilidade, o nervosismo, entretanto, eram indisfarçáveis. As mãos gesticulavam de forma abusiva. Após tirar algumas dúvidas dos assessores com correção e presteza, mas com a voz titubeante, lembrou-se de perguntar a Jair sobre o trabalho de Olinda. O ex-chefe serenamente afirmou que não sabia de pedido algum nesse sentido. Renato perturbou-se com a postura inabalável do interlocutor e o pressionou, com crescente indignação: “Mas como não se lembra se o representante de lá mandou até um ofício?!” Jair olhou para o diretor, denunciando com o olhar a suposta deselegância de que era alvo e respondeu decidido, sem hesitação: ”Ah! Sim! Agora me lembro! Foi um chato sem a menor importância da Secretaria de Obras de Olinda que me abordou após minha palestra, para me pedir um parecer para resolver um problema dele... Ele mandou mesmo o ofício é? Eu pensei que ele quisesse apenas aparecer. O trabalho me pareceu tão banal...”
Homero que em todo esse tempo folheava relatórios antigos pediu um esclarecimento: “Comparando aqui os investimentos previstos na área num trabalho do ano retrasado, com o que você nos apresenta hoje, houve uma redução drástica. Você poderia nos explicar o porquê?”
Renato fez uma pausa para meditação e respondeu, ora com firmeza, ora com calma aparente, ora com uma fúria que lhe escapava por entre os lábios: “Esse trabalho foi realizado durante a chefia anterior sem a minha participação. Eu não lhe posso responder de imediato sobre o que foi feito anteriormente. Eu não sei se foram tomados os cuidados que tive agora. Se quiser poderemos depois fazer uma análise mais detalhada!” Jair olhou novamente para o diretor e este lhe fez um sinal com os olhos e cabeça para que se contivesse. “A sua colaboração foi preciosa Sr. Renato. – interveio Dr. Mendonça – O senhor está dispensado! Depois da reunião particular com os assessores o senhor no fim da tarde me procura sim?”
Renato molhou os pulsos na água gelada do bebedouro, entrou na sua sala, chamou Luiz e pediu-lhe o relatório antigo de S. Leopoldo. Luiz alegou ignorar o paradeiro do trabalho, observou que talvez a biblioteca tivesse uma cópia. O chefe ficou fora de si: “A cópia da biblioteca está com o Sr. Homero! Você sempre foi unha e carne do Jair! Eu tenho certeza que você sabe em que lugar desses armários está o relatório! Eu o quero imediatamente entendeu?” A voz gritada de Renato ecoou nas outras salas, chegando um tanto abafada até mesmo à sala de reunião dos Assessores. Luiz assustou-se e após uma demorada procura localizou o relatório. O chefe sentou-se para lê-lo, mas os olhos não se concentravam nas linhas.
Na conversa com Dr. Mendonça no fim da tarde, Renato estava atento, mas simultaneamente totalmente indiferente, abúlico, sem mostrar sofrimento nem se exaltar. O Diretor pediu-lhe que se sentasse e iniciou sua preleção: “Quando os assessores quiseram vetar o seu nome com o pretexto de que o senhor era um homossexual, eu me opus. Resolvi dar o meu crédito. Vejo agora que me enganei. Vocês homossexuais são muito perturbados, instáveis, sujeitos por qualquer motivo a extravasarem as emoções. Este tipo de passsionalismo da personalidade é incompatível com quem almeja uma liderança. Na reunião de hoje o senhor mostrou-se extremamente inseguro. Em Recife teve seus maus momentos. Em reuniões importantes que muitas vezes temos em Brasília, eles em sua maioria não entendem patavina do que falamos. O que muitas vezes é bom.... Mas eles são muito sensíveis quanto ao fato de lhe passarmos credibilidade ou não. A postura é muito importante! Muito mais do que o conteúdo. Não adianta entrar em minúcias importantes e titubear... O senhor ainda é jovem e poderá aprender bastante ainda. Eu tenho a acrescentar agora que somos obrigados a destituí-lo da chefia, para fortificação da nossa Autarquia, principalmente numa fase que nos é tão crítica nestes tempos de grande crise econômica. O senhor está em regime de CLT, mas eu não vou despedi-lo da Autarquia. O senhor poderá, se desejar, continuar trabalhando na mesma sala, mas com a chefia do Luiz Carlos. Eu, apenas, se estivesse no seu lugar me sentiria muito mal trabalhando como subalterno num espaço aonde eu já fui chefe... O senhor está dispensado. Tem alguma coisa a dizer?” Renato como que acordou de um transe e disse que queria dizer algo sim: “O senhor só tem razão num ponto... Quando disse que eu sou perturbado. Só que perturbado pelos outros! Pelo sistema! Eu não sou tímido. Sou intimidado!”
A indignação de Paulo com os acontecimentos era bem maior do que a do amante. Renato sentia-se quase que leve, ainda que não relevasse a amargura. Perguntado sobre o que iria fazer, disse que não sabia ainda. A questão era que Renato não conseguia sentir ódio de ninguém lá da Autarquia. Já os conhecia há um bom tempo. Sua ira voltava-se inteiramente contra si: ”Eu me deixei encantar pelo fascínio de ser chefe daquela arapuca deixando de ver várias coisas que eram gritantes. Se ao menos eu tivesse tido a coragem de enfrentá-los logo no primeiro atrito! Eu deveria ter pego os documentos em que os gastos inúteis eram nítidos e tê-los endereçado à imprensa. Era o que eles mereciam, merecem! Agora se eu fizer isso, essa imprensa canibalesca é bem capaz de dizer que eu sou um mafioso traído pelo bando, que agora se vinga!...” Renato comentou a pena que sentia em saber que Sílvia estava também naquele ambiente.
“Você ainda pode estar de mãos atadas, pode ser chato para você, um bumerangue que pode feri-lo! Mas a mim não! Minha vida tem sido um tédio ultimamente apesar das facilidades que tenho. Eu sei como não comprometê-lo! Eu estou precisando de novas emoções!” – arrematou Paulo com um ódio amaciado, calculado, misterioso e uma lucidez que se avizinhava da loucura.
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Nelson Rodrigues de Souza