quarta-feira, 17 de junho de 2009

Lutando Contra o Tempo e Intempéries





“Home” (França/2009) de Yann Arthus-Bertrand lançado mundialmente no Dia Internacional do Meio ambiente (5 de junho) tem imagens deslumbrantes ( ainda que algumas sejam aterradoras) filmadas em 54 países e em 120 locações diferentes. O título em português “Home- Nosso Planeta, Nossa Casa” evidencia o calcanhar de Aquiles do belíssimo e urgente projeto: o excesso de didatismo.

É enfatizado com sagacidade que em algumas poucas décadas o homem mexeu seriamente com um equilíbrio da natureza de 4 bilhões de anos, mas como já é tarde demais para ser pessimista, algumas soluções de ordem ecológica são apresentadas como casas com telhados que aproveitam energia solar, a extinção das forças armadas na Costa Rica e o emprego deste dinheiro para o reflorestamento de áreas antes devastadas, dentre outras alternativas.

Antes de serem apresentadas soluções no último seguimento do filme como lenitivos, depois de crescente angústia, somos confrontados com imagens de desmatamentos, cidades artificiais como Dubai nos Emirados Árabes construída de forma ecologicamente bastante precária, o desperdício de energia no sistema viário de Los Angeles entulhado de carros, o artificialismo de Las Vegas, a pobreza de Lagos na Nigéria, o uso de pesticidas em massa, a queima de florestas que liberam CO2 para a atmosfera aliada à emissão de gases dos automóveis, o que provoca o efeito estufa e acarreta, dentre outros males, o derretimento de calotas polares e ameaça elevar em poucos anos os oceanos em até 7 metros, rios que permanecem a maior parte do ano secos, gados confinados que consomem energia que poderia estar sendo empregada para mitigar fome de povos desvalidos, dentre outros desastres ecológicos.

Tudo nos é mostrado através de belíssimas angulações e num acúmulo de informações que é como se fosse uma sinfonia dos desatinos humanos que atingem as belezas da natureza que estavam em equilíbrio até que o homem passasse a intervir de uma forma inconseqüente.

O filme não quer terminar de forma pessimista e apresenta soluções ecológicas que estão sendo empregadas e se ficarmos “together” (uma ênfase que soa pueril mesmo que válida) podemos ampliar esforços e salvar o planeta, pois temos pouco tempo, mas ainda ele existe.

O que o filme não enfatiza é que os problemas ecológicos inegavelmente gravíssimos que assolam “nossa casa” são importantes demais para ficarem nas mãos só de ecologistas. Há que haver mudanças radicais de modelos políticos, de paradigmas religiosos que instigam povos à superpopulação como os dogmas oficiais católicos que são convites a nascimentos irresponsáveis (com o veto a controles de natalidade), os fundamentalismos islâmicos geradores de cegueira e pobreza, lutas contra corrupções intrincadas de corporações que agem apenas em função de seus interesses, principalmente os estamentos militares, dentre várias outras medidas que transcendem as benignas alternativas engenhosas meramente ecológicas. Por exemplo: agora se vive um grande impasse nos EUA, pois para que a economia global saia da crise os americanos precisam voltar a consumir mais, mas se isto acontecer vai aumentar os problemas ecológicos. Qual a saída?

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Em “Intrigas de Estado” (Inglaterra/EUA/2009) de Kevin Macdonald (de “O Último Rei da Escócia) o promissor congressista Stephen Collins (Ben Affleck) passa a ser suspeito da morte de uma assessora de quem era amante. O amigo jornalista Cal McCaffrey (Russell Crowe), repórter veterano do fictício Washington Globe, junto com a blogueira de política Della Frye (Rachel McAdams) sob a coordenação da editora Cameron Lynne (Helen Mirren) passa a investigar o caso e vai descobrindo ligações com interesses corporativos que envolvem políticos graúdos e privatização da segurança, sem nenhuma preocupação com as baixas de vidas que pode provocar, algo que estava sendo investigado por Stephen.

O filme trata de questões altamente pertinentes e atuais: o papel de um jornal impresso e seu futuro numa era que tende à hegemonia do jornalismo virtual, os comprometimentos de isenção de um jornalista quando estão envolvidos laços de amizade, os limites éticos para ações e métodos mais incisivos de investigação, as aparências que precisam ser sempre investigadas, pois num cipoal de interesses tendem a enganar mesmo, etc.

Com reviravoltas demais beirando a inverossimilhança e uma cena de ação numa garagem totalmente deslocada, condensando em pouco mais de duas horas o que era uma série da televisão britânica de seis horas, estes temas relevantes mencionados não são tratados com a profundidade que mereciam e conforme já se escreveu o filme deixa de ser o “Todos os Homens do Presidente” do século XXI. Mas o saldo de tudo ainda é positivo e trata-se de um filme que merece ser visto e não bastante esnobado nas bilheterias como aconteceu nos EUA.

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“Home”, com sua clareza e suas qualidades de concatenação de idéias, até certo ponto, pode servir como uma crítica a “Intrigas de Estado” em seus atropelos narrativos. Já este com sua captação de relações políticas e corporativas bem complexas pode ser uma crítica de uma ingenuidade que contagia “Home” principalmente nas soluções apresentadas.

Encarando-se estes dois filmes tão distintos como complementares podemos ter um quadro inquietante do mundo em que vivemos e do qual corremos o risco de sermos expulsos, se não houver mudanças profundas em várias direções, mas que sejam convergentes para realmente “descobrirmos onde o males nascem e destruir suas sementes”, criando formas mais humanas e viáveis de vida.

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Nelson Rodrigues de Souza

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O Baile de Máscaras






“Fiz de mim o que não soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti estava errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não o desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi no espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não conseguia vestir o dominó que não tinha tirado

Deitei fora a máscara e dormi no vestuário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime”

De Tabacaria, Álvaro de Campos- heterônimo de Fernando Pessoa.

Quando me formei Engenheiro já sabia que minha vocação era outra: Cinema, Teatro e Literatura. Por “trapaças da sorte”, eu que queria uma posição modesta na estrutura organizacional do meu trabalho, fui cada vez mais sendo obrigado a assumir maiores compromissos, incluindo chefia. Não podia perder o emprego e tive que utilizar máscara de engenheiro de elite com a qual não me sentia confortável para poder sobreviver (ser “Engenheiro do ITA” era o meu maior “pistolão” para poder sobreviver naquele ambiente de muitas tormentas). Não diria que a máscara tivesse se colado ao meu rosto de forma definitiva que não a pudesse tirar. Mas em muitos momentos era a sensação que tinha. O desfecho desta história foi violento e doloroso, mas não é o que será explorado aqui neste momento.

Ontem vi “O Zoológico de Vidro” de Tennessee Williams (“À Margem da Vida”, na antiga tradução) numa bela montagem de Ulisses Cruz, com admirável trabalho de Cássia Kiss, como a mãe Amanda, com um casamento falido, sendo que o marido a abandonou “para descobrir o que havia pelo outro lado das linhas telefônicas”, que quer exercer um supercontrole sobre os dois filhos e os asfixia. Tom trabalha num depósito mesquinho sem perspectivas, é arrimo da família e sai todas as noites alegando ir ao cinema. Com vontade de ser escritor, tem insinuada uma vida homossexual subterrânea com a qual a mãe foge de sintonizar para não quebrar a imagem idealizada do filho. Laura, supertímida, tem um problema na perna, anda de forma desajeitada e cultua os animais de vidro de sua cristaleira, conversando com eles, o único grande elo que consegue estabelecer com o mundo. Por grande insistência da mãe, Tom traz para jantar o colega de trabalho Jim para ser um possível namoro de Laura, o que redunda numa grande decepção. Desde o começo já sabemos através de um Tom narrador que ele abandonou a família e foi conhecer o mundo através da Marinha Mercante. Tom ainda tem culpas, mas conseguiu retirar a forte máscara de “bom filho salvador” que a família queria lhe pregar em seu rosto para que ele mitigasse o fracasso existencial de seus parentes. Ele é um forte alter-ego do próprio Tennessee e isto, com as liberdades da ficção, de certa forma explica as ácidas (e neste caso do “O Zoológico...” também terna) visões das famílias que o autor traça em suas grandes obras-primas, clássicos do teatro, sempre montados com grande atualidade.

Este ano comemora-se o centenário de Carmen Miranda. Uma das mais belas homenagens à grande artista é o CD e show “Balangandãs” de Ná Ozzetti, onde esta cantora sublime, ainda pouco divulgada no Rio de Janeiro, canta sucessos de Carmem, evocando-a sem imitá-la, mas com grande precisão técnica e ambiência emocional, com um Bando da Lua “modernizado” por um quarteto/quinteto de ases, formado por Dante Ozzetti, Mário Manga, Sérgio Reze, Zé Alexandre e participação especial de Danilo Moraes. Ná veste a máscara de Carmen, mas sem deixar de ser a Ná que conhecemos.

Num dos grandes documentários do Cinema Brasileiro que é “Banana is My Businnes” (Brasil/1995)de Helena Solberg todos os superlativos que Carmen merece vem à tona mas há momentos em que o filme adquire a coloração de um filme de terror: quando percebemos que a artista que colocou de uma forma linda e original bananas tropicais na cabeça, como símbolo maior de outros adornos, é obrigada por empresários americanos a não se desvencilhar mais desta imagem. Carmen tem uma máscara colada no rosto que passa a asfixiá-la. É obrigada a fazer shows na Broadway de um local para outro numa mesma noite, sem poder descansar, fica presa de psicotrópicos e numa roda viva onde também se intrometem desilusões amorosas acaba falecendo precoce e tragicamente. Faltou a ela coragem para dar um basta a tudo e seguir a vida como realmente desejasse como fez Greta Garbo ou numa forma mais branda, redimensionar sua carreira.

Em “Onibaba, a Mulher Diaba” (Japão/1964) uma das obras-primas de Kaneto Shindo, num contexto de camponeses que vivem em extrema miséria, no Japão do século XIV, cria-se uma armadilha em um buraco profundo onde pessoas são feitas prisioneiras e é aproveitado o que se pode por uma senhora e sua nora, cujo marido está na guerra. A nora foge periodicamente de casa, percorrendo belíssimas ramagens que balançam ao vento para encontrar um amante. A sogra para não perdê-la coloca uma máscara assustadora no rosto e sempre surge à sua frente para impedí-la de fugir dos seus domínios. Um dia ao voltar para casa a nora vê a sogra desesperada: a máscara grudou-lhe no rosto de uma forma potente que parece irremediável. O horror maior do filme está instalado.

Em “Persona” (Suécia/1966) de Ingmar Bergman, a enfermeira Alma ( Bibi Anderson) vai a uma casa de campo na praia cuidar da atriz Elizabeth (Liv Ullmann) que acabou perdendo a voz em pleno trabalho numa tragédia grega e acaba muitas vezes trocando de papel: a primeira que era “terapeuta” passa a ser “paciente”. As máscaras são trocadas e muitas vezes confundidas. Isto já aconteceu comigo em relação a um analista que tive que adoeceu bastante. Eu não queria abandoná-lo para não rebaixar sua auto-estima de profissional. Passei assim a ser um pouco “terapeuta” dele também. Hesitei muito em tomar uma atitude. Ele também apesar de eu ter colocado várias vezes esta questão. A história estava me fazendo mal e não acabou bem. O rompimento que poderia ter sido amigável foi brusco e surgiu um ressentimento que hoje, com a sabedoria do passar do tempo, está dissolvido.

É possível viver em sociedade sem máscaras? Quais são as máscaras aceitáveis e quais não são? Quais os limites? O que fazer quando não conseguimos mais tirar as máscaras que construímos?

Eu, Pessoa e seus heterônimos como Álvaro de Campos, Tom, Carmen, as mulheres de “Persona”, a senhora japonesa, o analista, temos aspectos em comum. Os encaminhamentos que demos às questões das fortes máscaras divergem. Como você está lidando com as suas máscaras? Ou você não as tem? Não acredito....

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Nelson Rodrigues de Souza

sábado, 13 de junho de 2009

Sob a Égide do Mito do Eterno Retorno




Matheus Nachtergaele quando filmava “O Auto da Compadecida” de Guel Arraes no Nordeste travou contacto com a história de pessoas que cultivavam as vestes ensangüentadas de uma menina morta desaparecida. Imaginando os entornos desta circunstância, teve um estopim criativo para que pensasse na realização de seu primeiro filme que depois de exibido em vários festivais (incluindo a Mostra Um Certo Olhar de Cannes 2008), premiado em Gramado 2008, chega agora ao circuito. Com a estréia do filme “A Festa da Menina Morta” (Brasil/2008) agora podemos conferir até mesmo uma certa mitologia que estava se criando em torno do filme que tem proporcionado prêmios a Daniel de Oliveira, um ator que sempre se entrega generosamente a seus personagens (como vimos no seu espantoso Cazuza, de “Cazuza, o Tempo Não Para”) e agora depois de longa pesquisa junto a pajés, pais de santos,outros oráculos e “cavalos”, cria um personagem inesquecível para a galeria dos notáveis para a História do Cinema Brasileiro.Há quem julgue seu trabalho um tanto over quando no fundo está adequado às circunstâncias que o protagonista vivencia que são over por si mesmas.

Numa localidade ribeirinha bastante pobre do interior do alto Amazonas, bem distante de Manaus, Santinho (Daniel de Oliveira) é quem primeiro trava contato com as vestes de uma menina morta, trazida por um cachorro. Passa então a ser tratado como um escolhido, uma figura santa em sua comunidade, que quando o filme começa está nos preparativos da vigésima festa da menina morta, onde ele terá palavras que tentarão amenizar as dores do cotidiano, mesmo que enfatize que “este ano a palavra é dor” no cerimonial final que se tem.

O interessante no filme, com bela fotografia de Lula Carvalho e ótima e verossímil ambiência criada por Matheus e seus colaboradores é que “Santinho” nos bastidores não é propriamente um santo. É capaz de grandes cóleras, derrubando vasilhas com que lhes lavam os pés ou até mesmo receber num misto de grande dor e repulsa a mãe (Cássia Kiss), num melhores momentos do filme, que vem de Manaus para render-lhe tributo. Com o pai beberrão (Jackson Antunes) passa a ter uma relação homoerótica incestuosa que nos é mostrada com bastante impacto e força visual, por entre um ambiente chuvoso. Como em muitos oráculos historicamente se encontra a androginia como um atributo sagrado, o filme faz questão aqui de nos perturbar os sentidos (com em outras seqüencias em que o som de um porco sendo morto invade a cena), mesclando e confundindo o sagrado e o profano.

Tadeu( Juliano Cazarré) irmão da menina morta é a única pessoa relutante na comunidade em participar deste ritual pois sabe que a rigor o milagre que esperava que é ter a menina viva, ressuscitada, não aconteceu. Isto não o impede de depois de muitas brigas, imprecações e hesitações fazer parte do cortejo que reverencia Santinho e a menina morta que este representa na Terra.

Com esta particular religião da comunidade bastante pobre que tem apenas neste momento de êxtase religioso uma transcendência de um cotidiano mofino, pode-se traçar certos paralelos com outras religiões como a umbanda, o candomblé. Mas estas têm um grau de sofisticação e historicidade oral (com preciosos documentos baseados nesta oralidade) que na comunidade de Santinho não comparece. Ali se tem uma fé que se mescla a certo desespero, com uma coisa tentando anular a outra. Santinho também é relutante em relação à sua representatividade, sendo que em alguns dos “inumeráveis estados do ser” que o acomete vivencia um ceticismo desanimado para depois se fincar como guia espiritual.

“A Festa da Menina Morta” é um ritual cheio de contradições de um Brasil profundo que só não é usufruído melhor pelo espectador porque o roteiro de Hilton Lacerda e Matheus é um tanto relutante, faltando-lhe maior liga, o que a inspiração maior do diretor que é Cláudio Assis, consegue com mais força em “Baixio das Bestas” e “Amarelo Manga”, principalmente neste último. Neste sentido esta experiência lembra “Feliz Natal” de Selton Mello que tem ótimos atores e personagens, uma situação básica forte, intrigante, imagens vigorosas, mas se perde um tanto no quesito “evolução”. Mas “A Festa da Menina Morta” a rigor é bem mais fascinante,sucedido e vigoroso do que o primeiro filme de Selton, apesar das restrições.

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Enquanto “A Festa da Menina Morta” consegue trazer elementos universais através de uma comunidade, como a necessidade imperiosa de se crer em algo transcendente diante das vicissitudes terrenas, “Apenas o Fim” (Brasil/2008) de Matheus Souza alardeando o álibi de ter trabalhado com pouquíssimos recursos ( câmeras emprestadas, atores que trabalharam de graça, etc) é uma obra que só deve se comunicar realmente com os jovens de classe média próximos à idade dos jovens protagonistas que vivenciam o fim de uma relação. Se Domingos de Oliveira,Wood Allen e Richard Linklater foram as grandes inspirações, o resultado obtido é pífio e está muito longe dos mestres. Só um espírito de condescendência pode nos fazer ter uma aproximação mais generosa com esta obra que narra momentos em que uma relação terminal é avaliada, mas que não consegue trazer nem um centésimo da angústia e poesia que vimos em “Eu Sei que Vou te Amar” de Arnaldo Jabor ou então em “Antes do Por do Sol” e “Antes do Amanhecer” de Linklater. Tudo em “Apenas o Fim” é muito superficial e só certa simpatia e vivacidade dos atores protagonistas impedem que não mergulhemos no tédio total.

“A Festa da Menina Morta” e “Apenas o Fim” são filmes de iniciantes de propostas e resultados bastante diversos. Como o cinema pode sempre nos surpreender não vamos nos arriscar aqui a fazer profecias definitivas sobre a qualidade das obras futuras destes dois Matheus cineastas, ainda que toda a nossa experiência e intuições nos conduza a esperar muito mais de Nachtergaele.

http://www.adorocinema.com.br/filmes/festa-da-menina-morta/festa-da-menina-morta07.jpg

http://img.blogs.abril.com.br/1/asetimaarte/imagens/a-festa-da-menina-morta-(2008).jpg

http://img.blogs.abril.com.br/1/mostra-cinema-sp-2008/avatar/apenas-o-fim.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

quinta-feira, 11 de junho de 2009

As Idiossincrasias Refinadas e Estilizadas de Cada Um





Vi três filme esta semana: "A Mulher Invisível" de Cláudio Torres, "Caramelo" de Nadine Labaki, "Um Homem de Moral" de Ricardo Dias. Adivinhem o filme que mais gostei: "A Mulher Invisível” claro! Não posso ser preconceituoso e ter hipocrisias ( ainda mais com a minha condição de homossexual em que já sofri muito por estes mesmos motivos encalacrados em outros). Claro que nem sempre consigo: atingir esta meta integralmente é tarefa para santos que não sou.

Não posso negar, no entanto, que ri muito com a comédia de Cláudio Torres. O filme foi tido como veiculando valores machistas. Está aqui havendo outra confusão entre personagens e autor. Cláudio Torres não avaliza as idéias de seus personagens. Ele simplesmente os mostra. São inúmeras as situações hilárias e Selton Mello (Pedro) constrói em sua vasta galeria mais um grande personagem, com sua fragilidade enternecedora. Abandonado pela mulher passa a ter visões de uma mulher ideal, aquela que perdoa suas traições, fica com uma camiseta de futebol assistindo jogos de terceira divisão, arruma toda a bagunça da casa, etc. Luana Piovani (Amanda) está ótima na captação desta mulher de fantasia,com sensualidade arrebatadora e ótimo senso de comédia. Selton, brilhante na composição do ex-marido solitário, injeta grandes doses de humanidade em seu personagem machista. O amigo vivido por Wladimir Brichta ( Carlos) também se apaixona por Maria Manoella ( Vitória), viúva de um policial, que está vidrada no vizinho Pedro, o que vai provocar várias confusões. Ao mesmo tempo em que procura ajudar o amigo que percebe estar sendo vítima de uma alucinação tem de lidar com o fato de sua amada Vitória estar mesmo bem interessada é no amigo Pedro. E as confusões estão criadas com situações irresistivelmente cômicas, com toques de romantismo.

Cláudio Torres já havia acertado bastante com o surpreendente e barroco carrossel de emoções e mesquinharias que foi “Redentor”, um filme operístico (com excelentes efeitos especiais), como há muito não se via no cinema brasileiro desde os tempos de Glauber, numa fábula irresistível sobre ambições desmedidas e trapaças mútuas.

Agora num tom mais leve e eficiente tem tido enorme bilheteria como o amável e inteligente “O Divã” de José Alvarenga, adaptação de um original de Martha Medeiros que já havia feito muito sucesso no teatro com uma aliciante e comovente Lilia Cabral que exita entre vários homens que surgem em sua vida. São filmes que não revolucionam a linguagem cinematográfica e num tom bastante popular piscam para o público e obtêm sucesso, uma das maneiras válidas de se fazer cinema no Brasil.Taxar estes filmes tão dinâmicos e perspicazes de televisão filmada revela muito mais preguiça mental de quem quer analisar estas obras apressadamente do que de fato os fenômenos que estão ocorrendo.

“Caramelo” de Nadime Labaki tem ótima cor local ao focar suas histórias paralelas de mulheres vinculadas a um salão de cabeleireiro, numa paisagem rara: Beirute no Líbano. São nos mostrado o preconceito contra uma mulher que tem um amante casado, uma que manifesta desejos lésbicos, uma que tem que esconder a perda de virgindade para poder se casar, etc. O problema com o filme é que num exagero de elipses muito bem fotografadas, o filme aborda superficialmente todas estas histórias e nos faz pensar que se o filme não se passasse no Líbano cairia na irrelevância.

“Um Homem de Moral” de Ricardo Dias é um bom filme que faz um ótimo apanhado do processo criativo do compositor e biólogo Paulo Vanzolini, autor de clássicos como “Ronda”, “Volta por Cima”, Na Boca da Noite”. Vários intérpretes surgem para dar voz a canções de Vanzolini formando um ótimo mosaico de sua obra, telas divididas. O problema com o filme é que Ricardo Dias já havia feito dois filmes com Paulo Vanzolini, enfocando sua carreira de biólogo, algo que não temos obrigação de saber e “Um Homem de Moral” se ressente de mais informações sobre a personalidade cativante e bastante comunicativa de Vanzolini., um ser que emprega todas as partes de seu cérebro com chama interior muito forte, com memória prodigiosa., podendo fazer tanto impecáveis trabalhos na área biológica ( como análises de impacto ambientais em obras), como também passar meses para descobrir a palavra certa para uma música. Faltou mais elementos para conhecermos melhor este homem polivalente, o que deve estar em parte nos outros filmes, mas que não temos nenhuma obrigação de os termos visto.

Inácio Araújo arrasa com “A Mulher Invisível” em seu blog. Uma injustiça tão forte como a que faz com Bertolucci em sua sessão de filmes para televisão na Folha de São Paulo, onde considera sua obra de modo geral apresentando mais estilismo do que estilo.

07/06/2009

Blogo do Inácio Araújo -Cinema de Boca em Boca

Não dá pra encarar a "Mulher Invisível"

Do título “Mulher Invisível” o que conta é o segundo termo. Com bastante esforço cheguei a uns 40 minutos de filme e me mandei, pensando na frase antológica do Jairo Ferreira: já perdi o meu dinheiro, não vou perder meu tempo. Com 5 minutos já havia uns 30 lugares comuns em circulação.

Depois entra a Luana Piovani. Aí serviu para lembrar um velho anúncio de lâmina de barbear. Entrava uma loira platinada tipo “sedutora de terceiro grau” (ou primeiro, não lembro), como dizia Anna Karina em “Alphaville” e dizia: “Eu sou a platina de Platinum Plus. Experimente minha suavidade. E depois deixe-me se for capaz.”

Bem, o filme parece acreditar que essa história de “sedutora de terceiro grau” era a sério, que o mundo é assim mesmo, um clichê. Ou acredita que Luana Piovani é isso. Ela é dada como pessoa de mau humor. Vendo o filme eu acho que compreendo.

Parece que a gente está vendo um anúncio de sabonete, só que não dura 30 segundos. Não acaba nunca.

Não vi um plano sequer inspirado. Não tem ritmo. O roteiro é escolar. Na maior parte do tempo parece que a câmera está na distância errada.

Tudo isso aceita-se. O que me embrulha o estômago é que esses filmes argentários parecem feitos como uma fórmula para ganhar dinheiro. Não há nenhum sinal de que, antes de tudo, alguém pense: eu gostaria de elevar, por pouco que seja, os espectadores deste filme. Ao contrário: parece que a intenção é rebaixá-los, desconsiderá-los. Como se dissessem: o que importa é botar as pessoas na sala, não vale a pena fazer nada melhor.

Isso é triste de ver no cinema brasileiro, porque é pior que a TV.

Na TV, com toda a limitação de um veículo de massa, pelo menos na Globo, pelo menos na Globo do tempo em que não havia concorrência, parecia haver a preocupação de dar o melhor possível para as pessoas. Então, não dá nem para dizer “isso é televisão”. Melhor dizer: isso não é nem televisão.

A Conspiração se supera.

TELEVISÃO

Crítica

"Assédio" é filme de rara sensualidade

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA- 10 de junho de 2009

Durante quase toda a vida, Bernardo Bertolucci nos deu mais estilismo do que estilo, é mais ou menos o que diz Jonathan Rosenbaum, o grande crítico americano. Fiquei feliz de descobrir essa afinidade: também não sou fã do italiano e também fiquei fascinado com "Assédio" (TC Cult, 1h55, classificação: não indicado para menores de 12 anos).

Este filme de 1998 de certa forma se constitui num aberto desafio à moda não-me-toques que os EUA andaram exportando. Aqui, há um músico (ou pintor?) inglês que, na Itália, assedia descaradamente uma jovem africana e negra. Existem entre eles todas as distâncias do mundo, se se quiser.

Mas existe a proximidade do desejo, do homem, primeiramente, existe, portanto, o assédio, a vontade de vencer resistências. Existe, com isso, um filme de sensualidade rara (dez vezes mais que "O Último Tango em Paris", por favor!) a que as ruas e cores de Roma servem como baliza.

Rosenbaum chama o filme de obra-prima. Talvez seja.

Prefiro os milhões de brasileiros que vão ao cinema assistir a um filme despretensioso e cativante como “A Mulher Invisível” do que pensar na idéia de que jovens influenciados por Inácio Araújo passem a levar a sério demais sua visão de Bertolucci e evitem este autor tão essencial, que nos deu tantas obras-primas com “O Último Imperador”, “O Último Tango em Paris”, “1900”, “O Céu Que Nos Proteje, “O Conformista”, “La Luna”, dentre outros.

Cid Nader no site Cinequanon tem uma visão positiva de “A Mulher Invisível” com a qual concordo em linhas gerais. Como fã de Selton Melho em vários trabalhos, desde “Lavoura Arcáica” passando por “O Cheiro do Ralo” e “Meu Nome Não é Johnny”( não gosto mesmo é dos atores em “Os Desafinados”, incluindo Selton”).etc, não concordo que ele só agora dá um show. Mas em linhas gerais gosto bastante da crítica. e assino embaixo em muitos aspectos, descontado também o fato de que não faço generalizações sobre a produção múltipla da Conspiração Filmes, que já nos deu uma obra prima como “Casa de Areia” de Andrucha Waddington e um filme bastante amável e cativante como “Eu, Tu, Eles” do mesmo Andrucha.

A MULHER INVISÍVEL:

Fonte: [+] [-]

Original: Idem

País: Brasil

Direção: Cláudio Torres

Elenco: Selton Mello, Luana Piovani, Maria Manoella, Vladimir Brichta, Fernanda Torres, Paulo Betti, Lúcio Mauro

Duração: 105 min.

Estréia: 05/06/2009

Ano: 2009

"A Mulher Invisível" – desta vez, Selton Mello bem aproveitado e dando show

Autor: Cid Nader –Cinequanon

Tenho uma certa precaução quando sei que vou cruzar com filme originado nas sinuosidades da “Conspiração Filmes” - apesar de achar bem interessante o “Redentor” (2004), dirigido pelo mesmo Cláudio Torres que dirige esse A Mulher Invisível -: não gosto dos discursos saídos lá de dentro, que sempre e sempre “arrotam” arrogância e superioridade imaginativa, nunca e nunca se concretizam na prática na tela, não vemos como obra concluída. Fiquei muito mais precavido ainda quando percebi a associação da produção à “Globo Filmes”: tenho dito em várias ocasiões o quanto desgosto da ingerência estrutural nos filmes da produtora platinada, que procura distanciar os seus produtos cinematográficos das linguagens mais apropriadas ao veículo, direcionando-os ao caminho bem mais simplificado e “malandramente” fáceis que o veículo televisão exige e entrega – como que querendo crer numa burrice imaginada do público, e na não possibilidade de agradar com as possibilidades que o cinema criou e imaginou.

Continuando nos quesitos desconfianças ante o produto, aqui no site, internamente, aconteceu uma discussão bastante ampla, e que se amplificou a mil discussões paralelas, surgida sobre um questionamento que indicava (supunha) uma acomodação de nossa cinematografia recente (aquela que tem angariado as maiores bilheterias) ante a possibilidade de se faturar com produções que representariam a classe média carioca, vista com superficialidade e propícia a servir de mote para arrancar risos fáceis. Questionou-se a origem de nosso melhor cinema (quase sempre brotada dos nossos cafundós abandonados: mas nem sempre, e isso é importante saber) e os caminhos que tais produções estariam indicando como os “únicos” a serem percorridos por quem ainda imagine faturar financeiramente com a arte aqui no Brasil. Pois bem, A Mulher Invisível se insinuava com um produto típico dessa linhagem – e até se revelou como tal mesmo.

Ressabiado por ressabiado: a presença de Luana Piovani (aqui como Amanda) e sua sexualidade estonteante como possível gancho gratuito, ou os maneirismos repetidos de Selton Mello (Pedro, um controlador de tráfego abandonado pela mulher) no seu modo de atuação. Sim, eles também me fizeram tentar “antever” um desastre que parecia inevitável, muito por conta de suas muitas gêneses contaminadas.

Pois bem, filme visto e um monte das desconfianças jogadas no lixo. Mesmo já sabendo de ante-mão – por conversas com quem viu, por reações de listas de discussões – que uma saraivada de “maus” tiros receberá o filme, vou me colocar na posição de quem o recomendaria para quem está com vontade de dar boas e sinceras risadas. Vale lembrar que entre os “mitos” caídos, se salva, e bem, a utilização de Luana como o símbolo sexual desejado e desejável – dentro do que se poderia esperar dela, e com a esperteza do diretor sabendo que seu forte mesmo está na sua imagem e numa composição “ingênua” entre corpo e sorriso rasgado. Vale lembrar que, entre o que não era mito, se sai extremante bem a atriz Maria Manoella – vinda de trabalhos mais “dramáticos”, digamos assim -, com seu jeito mais cool, introspectivo, e que dentro de uma “trama galhofa” é responsável pelo contra-peso entre comicidade pura e ingenuidade romântica (sim, o filme é também um produto similar aos produtos românticos de estirpe hollywoodiana – no melhor dos sentidos), sonho/desejo e realidade.

Entre mitos desmantelados e certezas concretizadas, o que, realmente, acaba se caracterizando como o grande trunfo do filme, a grande sacada, o resultado inquestionável, é a atuação “repetida” de trejeitos e sorrisos irônicos (um tanto sarcásticos) do Selton Mello. Se Cláudio Torres pensou no filme como obra que exigia a presença de Luana, Selton é o grande responsável pelo ritmo obtido – dentro do campo das atuações, que acaba avalizando toda a dinâmica narrativa. Ele domina o ambiente e a tela. Há segurança nos seus atos – diria que há muito da repetição do que ele tem feito ultimamente -, e o fato de se perceber “ele” de sempre no filme, resulta numa desmistificação sobre cacoetes e macetes. Se ele é ator que sabe interpretar com alguns mecanismos que se repetem, cabe ao papel escolhido e à sagacidade do diretor saber aproveitá-lo dentro “desses conformes”. Aqui, a química deu uma baita liga e o filme se beneficia bastante disso. Mesmo percebendo-se a similaridade com comédias românticas americanas, mesmo se capturando algo de denso numa camada inconsciente que pode levar ao desejo incontrolado com reações complexas (quando ele se recolhe e enclausura no apartamento), o principal mesmo está na atuação de um ator que resolveu dar showzinho..

Vá ver os três filmes sem preconceitos por sua conta e risco e comente aqui sua visão sobre estas questões emaranhadas tão contraditórias.

http://www.adorocinema.com/filmes/mulher-invisivel/mulher-invisivel-poster01.jpg

http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/foto/0,,20794677-FMM,00.jpg

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http://www.cinefrance.com.br/_images/filmes/caramel_f01cor_2007110526.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 9 de junho de 2009

A Verdade Espatifada



Por respeito às vítimas, familiares e seus amigos envolvidos no acidente com o Airbus A330, vôo 447, hesitei se deveria ou não fazer este post. Mas agora há vários dados em jogo que nos movem a sair da inércia e ficar alertas quanto ao encaminhamento de todo este processo. Mais do que julgar e se for o caso aplicar sanções apropriadas a possíveis responsáveis, o que está ainda mais urgente é evitar que outros acidentes aconteçam.

De tudo que li na imprensa alguns textos me chamaram mais a atenção:

Sobre homens e máquinas

Marcelo Allevato *, Jornal do Brasil- 5 de junho de 2009

RIO - O recente desaparecimento do vôo AF 447 no trajeto Rio–Paris, envolto em mistério, suscitou diversas hipóteses envolvendo circunstâncias meteorológicas, falhas humanas, defeitos mecânicos e, por fim, a mais curiosa e intrigante de todas: o aparato eletrônico do moderníssimo Airbus A330 teria interpretado de forma equivocada as variações de velocidade e posição da aeronave induzidas provavelmente por turbulência, e iniciado procedimentos automáticos – a princípio corretivos – independentemente da vontade dos pilotos, que teriam causado o mergulho fatal. Sem entrar no mérito da verossimilhança da hipótese, a discussão traz à baila questões instigantes: seria a evolução tecnológica em certas circunstâncias nociva? As reações humanas em situações extremas seriam mais adequadas?

É possível adiantar que não há respostas definitivas para essas questões; e acrescentar que efetivamente as máquinas são incapazes de sentir medo. Por isso, lhes falta capacidade de reagir a situações de perigo com a mesma variedade de possibilidades de que somos capazes. Na realidade, diante de situações de perigo, a decisão a ser tomada é, a princípio, escolher em frações de segundo entre fugir ou lutar. Essa decisão aparentemente simples é tomada de acordo com a análise de diversas informações provenientes dos órgãos dos sentidos que monitoram o ambiente, as quais são enviadas ao cérebro, onde o processamento desse conteúdo envolve não só o recurso a habilidades adquiridas, no caso dos pilotos por meio da aprendizagem e do treinamento, como também a evocação automática de memórias relativas a outras situações semelhantes vividas ou observadas, que dependerá da experiência de cada um. Todo esse processamento é velocíssimo, e feito de forma quase inteiramente não verbal.

Um terceiro componente fundamental na tomada de decisões nessas situações é a afetividade, e o cortejo de sensações físicas que acompanham a sensação de perigo. Acredita-se que a tomada da decisão mais adequada em circunstâncias extremas dependa do funcionamento harmônico desses três componentes, e a relevância do afeto e das sensações físicas na tomada de decisões adequadas em condições experimentais parece desmentir a crença de que o melhor é decidir de cabeça fria: pacientes com lesões neurológicas que os tornem incapazes de vivenciar a angústia diante de situações adversas geralmente tomam decisões inadequadas e por vezes desastrosas.

Esse trágico acidente, portanto, gera especulações que acrescentam a seu mistério contornos de fábula: caso a hipótese acima seja verdadeira, a decisão fria, porque prévia e inflexivelmente programada da máquina diante de uma situação complexa e velozmente mutável, teria sido desastrosa. Certo é que o aparelho não seria capaz de angustiar-se diante da iminência da morte.

É teoricamente provável que os pilotos, humanos, falíveis e angustiados diante do perigo, reagissem de forma mais adequada, com suas habilidades adquiridas potencializadas pelo próprio medo, já que dificilmente profissionais tão habilitados e experientes ficariam amedrontados ao ponto da imobilidade diante do perigo. No entanto, reféns da decisão da máquina, podem ter assistido ao desfecho de seu drama sem possibilidade de reação. Provavelmente jamais teremos uma resposta definitiva quanto às causas do acidente, tampouco sobre os limites da tecnologia e das habilidades humanas.

*Psiquiatra

Em acidente anterior já havia lido pilotos manifestarem preocupações com um excesso de computadorização dos aviões, o que seria contraproducente e perigoso. Certos aviões estariam sendo projetados mais para serem pilotados por engenheiros do que por pilotos.

Numa entrevista a Ruben Berta a O Globo de 7 de junho de 2009, o escritor Ivan Sant’Anna, autor do livro “Caixa Preta”, que reconstitui três grandes acidentes históricos brasileiros, aponta para algumas questões bastante inquietantes. Selecionou-se duas:

O Globo- O que o senhor pensa de a França estar à frente das investigações?

Sant’Anna: A investigação poder ser política. Geralmente há dados conflitantes: é um avião americano, uma companhia brasileira, há várias partes interessadas. Neste caso é tudo francês: companhia aérea, pilotos e fabricantes. Se descobrirem falha do projeto ou problema de piloto, por exemplo, isto pode ser escondido. Não acredito em relatório independente da França. Há muito dinheiro envolvido e é uma atividade que depende muito da confiabilidade.

O Globo- A crise está afetando a rotina das empresas aéreas?

Sant’Anna: Há cada vez mais um consenso entre pilotos de que, se for constatado algum problema, não se deve voltar, segue-se assim mesmo. É uma tendência mundial de minimizar os prejuízos. O piloto sabe que, se retornar, vai ter de dar um milhão de justificativas.

Segundo O Globo de 8 de junho de 2009, a Air France demorou a trocar equipamentos ( sondas de pitot). A Companhia teria recebido comunicado da Airbus em 2007 e só em maio de 2008 começou a discutir substituição.

Já na Folha de São Paulo de 9 de junho de 2009, tem-se mais dados inquietantes:

Pilotos exigem troca de sensor e podem parar

Membros de sindicato minoritário criticam Air France por não suspender vôos mesmo após admitir problemas em sensores de velocidade

Grupo, que representa cerca de 10% dos comandantes, disse acreditar que falha está entre as principais hipóteses para queda de Airbus no mar

MARCELO NINIO

DE GENEBRA

Um grupo de pilotos da Air France ameaçou ontem parar de voar até que a empresa substitua os sensores de velocidade da frota de Airbus.

Membros de um sindicato minoritário, o Alter, que representa cerca de 10% dos comandantes da Air France, criticam a empresa por não ter suspendido os vôos dos Airbus-A330 e A340 mesmo após admitir, no sábado passado, que os sensores desses modelos haviam apresentado problemas.

Uma das mensagens automáticas enviadas pelo Airbus que caiu no Atlântico, com 228 pessoas, indicava problema nos sensores externos.

Para os pilotos, a falha está entre as principais hipóteses para o acidente. "Queremos proteger nossos tripulantes e passageiros", disse o sindicalista Christophe Presentier à emissora France Info.

No sábado, a agência francesa que investiga o acidente confirmou que a peça já havia mostrado falhas nos A330 e A340 e que a Airbus havia recomendado a troca. E acrescentou que o avião que caiu no dia 31 não havia passado pela atualização.

Cada avião tem três dessas peças, chamadas pitots. São tubos instalados na dianteira do avião, que medem a velocidade do vento e enviam os dados para outros sistemas.

Uma das mensagens automáticas enviadas pelo Airbus em seus minutos finais indica problemas na medição dos pitots, dentro da sequência de panes que o aparelho acusou.

Uma das hipóteses é que, com isso, o computador do avião tenha interpretado dados errados e induzido os pilotos a fazer manobras inadequadas.

Sem admitir ligação com o acidente, a Air France anunciou no sábado que iria "acelerar" a troca dos sensores. Ontem, disse que todos os aviões A330 e A340 já estão com pelo menos um sensor novo.

"Em nove aviões já foram trocados dois ou três dos sensores", disse a porta-voz da Air France, Veronique Brachet.

A Air France tem 15 aviões do modelo A330 e 19 do A340. Segundo Brachet, a troca de apenas um dos sensores é suficiente para dar segurança imediata ao avião. Ela disse que a substituição total será "rápida", mas não falou em prazos.

A porta-voz disse não temer uma greve de pilotos (a empresa tem 4.000), já que a ameaça partiu de uma minoria.

Outro sindicato

O maior sindicato de pilotos da França, o SNPL (Sindicato Nacional dos Pilotos de Linha da França), também diz existir a suspeita que o desastre esteja ligado ao sensor, mas afirma estar satisfeito com as medidas adotadas. "O ideal seria a troca imediata dos três sensores, mas ter um trocado já dá uma boa garantia de que os dados de velocidade serão enviados corretamente", disse o vice-presidente do SNPL, Pascal Guerin.

Para Guerin, comandante de um A340, ainda é cedo para dizer o que derrubou o Airbus, mas está claro que uma falha simultânea dos três sensores coloca o piloto em apuros. "Sem eles o piloto perde todas as indicações de velocidade."

Ele classificou de "excessiva" a exigência do sindicato Alter, que orientou seus membros a se recusarem a voar enquanto ao menos dois dos sensores não forem trocados.

Indagada por que a troca não havia sido feita antes do acidente, a porta-voz da Air France disse que a explicação está no comunicado emitido pela empresa no sábado.

Nele, a Air France afirma que se antecipou à proposta da Airbus de realizar uma experimentação dos novos sensores e decidiu trocar todas as peças a partir de 27 de abril.

E conclui: "Sem pressupor uma ligação com as causas do acidente, a Air France acelerou este programa de troca".

Por meio de sua assessoria em São Paulo, a Airbus disse que recomendações como a de troca dos sensores "são frequentes e não relacionadas a incidentes específicos". Afirmou que a intenção "é melhorar a performance do equipamento, e não a segurança". A empresa não respondeu aos outros questionamentos para "não prejudicar a apuração"

Trocando em miúdos, encontrar a verdade sobre o que aconteceu realmente com o vôo 447 está se tornando algo bastante labiríntico, uma ciranda pirandelliana como muitas outras, onde reina o “assim é se lhe parece”.

No cinema não conheço filme que melhor tenha abordado a questão dos poderes de um indivíduo contra um sistema de aviação do que “Whisky Romeo Zulu” de Enrique Piñeyro. O filme não estreou no Brasil nem se encontra em DVD. Foi visto no CINESUL de 2005. É um thriller de dimensões políticas, com toques de documentário ao final, que nos lembra os melhores filmes de Costa Gravas.

Valeria a pena a Movie Mobz que tem trazido filmes esquecidos ao circuito batalhar para exibi-lo no país em circuito. As questões que o filme levanta ainda são atualíssimas, ainda que o caso real do acidente do Boeing 737 da LAPA argentina que o filme aborda seja bem distinto do atual. Mas no que diz respeito ao que pode um indivíduo e sua consciência diante de um sistema adverso em situações de segurança, o filme é de atualidade assustadora.

Conversei com o diretor após a sessão e ele me disse que durante o período de pós-produção do filme recebeu ameaças de morte. As autoridades ao final, personagens reais colados num mundo de ficção fortemente calcado em fatos, dando desculpas esfarrapadas formam um momento muito forte e propositadamente patético do Cinema Latino Americano.

Adiante vai uma crítica da época do site críticos.com.br. Do texto de Ricardo Cota discordo quanto ao comentário sobre utilização de uma música de Clara Nunes, onde para mim não há nenhum problema . O mesmo vale para o flashback mencionado.

POR DENTRO DO CINESUL

Por RICARDO COTA

13/6/2005

O CÉU QUE NÃO NOS PROTEGE

Whisky Romeo Zulu

Na prateleira de gêneros de uma locadora, Whisky Romeo Zulu teria como destino óbvio a galeria “filme-denúncia”. Mas, no Brasil e países afins, o mais justo seria situá-lo como “filme de terror”. Baseado em história real, Whisky Romeo Zulu reforça o alerta para a tragédia anunciada das companhias aéreas em processo de falência, algo perigosamente familiar por essas plagas. Em 31 de agosto de 1999, um Boeing 737 da LAPA espatifou-se no centro de Buenos Aires. Por trás do acidente, um histórico de cortes econômicos e de operações sigilosas responsáveis por uma série de vôos de risco precedentes à tragédia anunciada.

Em sua estréia como diretor, Enrique Piñeyro, ele mesmo um ex-piloto da LAPA, surpreende pela segurança e firmeza na direção de um filme de caráter investigativo. Conhecido do público pela sua atuação como ator em Esperando o Messias, de Daniel Burman, Piñeyro, também presente no elenco de Whisky Romeo Zulu, conta com a boa interpretação de Alejandro Awada como protagonista. Alejandro compõe com sobriedade e distanciamento o piloto espremido entre decisões limítrofes, como denunciar as perigosas ações de sua empresa ou pedir demissão. Um romance do passado atravessa a trama e torna ainda mais complexo o drama do piloto, que descobre ser uma paixão da pré-adolescência hoje alta executiva da LAPA.

Whisky Romeo Zulu - o título refere-se à forma como as iniciais dos códigos aéreos são proferidas por funcionários – foge ao esquematismo e ao tom empostado dos filmes-denúncia tradicionais. Para o bem e para o mal, Piñeyro exercita estilos diferenciados, que contribuem para ratificar o alto nível de profissionalismo do cinema argentino contemporâneo. Acerta ao captar a tediosa rotina do piloto solitário, entrecortada pela poética dos sobrevôos por sítios históricos e belíssimas visões celestes. Merece registro também uma sensação de “nowhere” que acompanha esses profissionais, que vivem em todos os lugares e em lugar algum, sobretudo na passagem pelo Rio de Janeiro, infelizmente anunciada por uma deslocada interpretação de Clara Nunes na trilha sonora. Piñeyro erra, no entanto, ao inserir um desnecessário flashback do romance infanto-juvenil de seu personagem principal, justificável apenas como capricho de uma produção sofisticada, em termos de registro de época, porém despropositada.

Exaltado pelo Clarín como “um filme necessário”, Whisky Romeo Zulu não cabe apenas no figurino da indignação. É mais do que isso. Além de revelar um diretor de luz própria, impede que as manobras escusas que tornam imprevisível o deslocamento aéreo caiam no esquecimento.

# WHISKY ROMEO ZULU

Argentina, 2004

Direção e roteiro: ENRIQUE PIÑEYRO

Elenco: MERCEDES MORÁN, ALEJANDRO AWADA, ENRIQUE PIÑEYRO,CARLOS PORTALUPPI

Duração: 105 minutos


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http://www.elcine.ws/sitio/images/stories/peliculas/argentina/wrzpineiroawada.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

domingo, 7 de junho de 2009

A Morte que a Vida Anda Armando; A Vida que a Morte Anda Tendo



“A Partida” (Depatures/ Partidas-título bem mais adequado/Japão/2008) de Yojiro Takita ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, derrotando o favorito “Valsa Com Bashir” de Ariel Folman sobre a omissão e de certa forma contribuição dos israelenses, jogando fogos para melhor localização, gerando massacres de palestinos no Líbano por fanáticos libaneses. Também sobrepujou o sublime “Entre os Muros da Escola” de Laurent Cantet, conforme já comentado aqui, um dos grandes filmes que chegaram ao nosso circuito exibidor nos últimos anos. Se foi feita certa injustiça, temos de ficar gratos ao Oscar e suas idiossincrasias por estarmos logo em contato com uma obra digna e fascinante com a qual dificilmente travaríamos visão aqui no Brasil, dado que o sistema exibidor ao ter que trabalhar com pacotes, para cada filme importante ( como um ganhador da Palma de Ouro tal “A Fita Branca” de Michael Haneke) tem de trazer ao país obrigatoriamente ( com acontece em outros países) um conjunto muitas vezes repleto de irrelevâncias, enquanto filmes importantes como “Il Divo” de Paolo Sorrentino ( essencial para se conhecer a Itália berlusclownesca de hoje), prêmio do júri em Cannes, permanece aqui inédito, para ficarmos só num exemplo de uma lista que é enorme.

“A Partida” trabalha com ambigüidades inquietantes: ao mesmo tempo em que é um filme positivo que valoriza a vida, também é um obra que nos faz encarar a morte de frente e ao nosso modo, de acordo com nossos espantos, encará-la com mais naturalidade dado que é uma passagem inevitável do ser humano em sua condição de mortal. Pode-se argumentar que até mesmo este último aspecto também é uma louvação da vida, pois aprender a morrer também faz parte da grandeza desta.E não estarão errados os que assim argumentarem.

Daigo Kobayashi (MasahiroMotoki, brilhante) é um violoncelista de uma orquestra de Tóquio que com a baixa freqüência de público se dissolve. Num ambiente bastante competitivo resolve voltar para a cidade do interior onde nasceu, com sua mulher (Ryoko Hirosue), onde apesar dos pais já terem morrido resta-lhe um café bastante largado e que precisa ser cuidado. Vendo um anúncio de “ajuda a partidas”, pensa tratar-se de uma agência de viagens. Ao encontrar o senhor mestre de cerimoniais fúnebres (Tsutomi Yamazaki) com sua despachada secretária ( Kazuko Yoshyuki) é convencido logo por grande intuição a se transformar num artista da arte de se preparar os corpos, com limpeza, troca de roupas,. maquiagens, antes que os defuntos sejam colocados num caixão para cremação, rituais que antes eram feitos pelas família, mas agora é feito pelo especialista, diante das famílias, num embate entre o Japão moderno ( onde o tempo escasso rege os destinos) e o tradicional ( onde se pratica artes cavalheirescas de clima zen).

Incompreendido, Daigo passa a ser desprezado por amigos e até mesmo sua mulher o abandona. Fatos redentores o esperam para reverter a situação.

Com um uso ostensivo de música a embalar as cenas emotivas, numa clara opção pelo melodrama, conformem observou Inácio Araújo na Folha de São Paulo, é um filme que areja o gênero com sobriedade, muita paciência na exposição dos rituais e sem abdicar de um tanto de humor em meio a tema tão grave, onde uma cena chave neste sentido é o encontro de algo mais no corpo de uma jovem suicida, o que provocará dúvidas e catarses da família.

Poucos filmes (como “O Sétimo Selo” de Bergman), se focaram tanto nos liames indissociáveis entre vida e morte, como este “A Partida”.Devemos valorizar o máximo a vida ( e a seqüência final é pródiga neste sentido) mas a vida fica incompleta se não encararmos a morte com um dos componentes dela que deve ser bastante meditado e enfrentado. Uma coisa não existe sem a outra. A grande dimensão de uma, só se realiza com a vivência no mesmo quilate da outra. Até mesmo em seus letreiros finais o filme ostensivamente nos tenta lembrar disto.

Tudo nos é narrado com muita delicadeza, afastando qualquer fantasma de morbidez gratuita. Daigo foi abandonado pelo pai aos seis anos de idade e carrega muita mágoa disto. Daí surge certa previsível situação para redenção. Mas não é nada que derrube o filme, pois tudo é feito com muita beleza e emoção.

Gostando-se ou não de “A Partida”, em maior ou menor grau, este é um filme que passa a fazer parte de nosso repertório de inquietações humanas que poucas vezes foram mostradas antes no cinema, com tanta objetividade. “A Partida” é um filme para se reter. Dificilmente estas emoções com os ostensivos e inúmeros rituais vão nos deixar insensíveis mesmo depois se nos atracarmos a uma pizza pós-cinema.

“A Partida” é um pequeno grande filme, que por via transversa, não premiando o soberbo “Entre os Muros da Cidade”, a academia fez bem em premiar. Foi uma injustiça que teve seu lado imensamente positivo: é por ela que estamos agora tendo estas emoções tão nobres em nome da “vida que a morte anda tendo”.

PS O título do post vem de um verso de “Desenredo” de Dori Caymmi e Paulo Cezar Pinheiro, uma canção do repertório impecável de Renato Braz, incluída no CD “Quixote”, um canto maior lamentavelmente ainda pouco conhecido, ainda que seja um dos nossos maiores artistas vivos.

http://www.grupoparisfilmes.com.br/banco_arquivos/imagens/DEPARTURES/APartida-web.jpg

http://www.adorocinema.com/filmes/partida/partida-poster07.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Anatomia da Culpa- Um Conto



Anatomia da Culpa

“Deus sabe a minha confissão

Não há o que perdoar

Por isso mesmo é que há

De haver mais compaixão.”

Drão de Gilberto Gil.

Realmente, apesar de eu já estar “por aqui” com essa patuléia ignara, essa chusma indócil, essa massa enlouquecida pelo consumo que deseja e mal obtém (aqui a publicidade, o marketing é de primeiro mundo, já o poder de consumo...), essa turba que escolhe os seus próprios carrascos, devo reconhecer que há ditados populares que têm sua sabedoria: “Em casa de ferreiro, espeto de pau”. Será que só assim posso explicar como é que consigo trabalhar de forma prazerosa como analista, ter clientes que se sentem bem com meu trabalho e me recomendam para outros de forma tal que mesmo nesta época de crise (ou talvez justamente por ela) não tenho tido problemas, quando há tantos consultórios vazios e apesar desse “sucesso” (vamos dizer assim), me vem essa sensação de vazio (este não consigo exorcizar)? É certo que com sábio pragmatismo continuo praticando minha porção Robin Hood: tiro de quem tem para aqueles que pouco ou nada tem (apesar de existirem aqueles que mentem que não têm, mas não vão enganar logo a mim...) De qualquer forma adoro todos os meus clientes, até mesmo os mais malandros. Mas não consigo entender, entretanto, porque tem sido difícil pra mim amar os que me são mais próximas.O pobre e bom Otávio foi minha última tentativa neste sentido. Meu relacionamento amoroso com Angélica já havia extrapolado, abusado de todas as concessões que a boa vontade é capaz e não tinha mais como evoluir. Às vezes chego a desejar que eu não tivesse esse desejo tanto por homens como por mulheres. Seria menos conflitivo. Logo me dou conta da bobagem e prossigo namorando a vida com todas as suas possibilidades. O fato é que depois do affair Angélica, algo me fez concentrar-me nos homens e levar mais a sério essas possibilidades de relacionamento. Quando conheci Otávio então, um clic, como o fechar de um estojo, se deu e acreditei por algum tempo que “havia por fim encontrado um grande amor... mentira!”

Eu que para ir às festas com Otávio tinha que beber o tempo inteiro para suportar a visão daquela fauna toda com todos os seus tiques, trejeitos, suas idiossincrasias, suas mitologias particulares, quando ele insistiu para que fôssemos os dois aqui do Rio de Janeiro para São Paulo, a fim de encarar a família dele, depois de certo estranhamento, certa relutância, acabei aceitando essa espécie de “volta às origens”, ainda que minha própria família esteja de mim bem mais longe. Que Deus a conserve!

Se hoje sei melhor o porquê dessa minha coragem de ir encará-los, dado que aqui não gosto até mesmo de ir à cinemas, teatros, acompanhado com um namorado junto à essa classe média ruidosa e mal educada, na época não sabia ou tinha uma vaga idéia. O que iria acontecer por lá não nos era difícil de prever. E, no entanto fomos! Algo nos movia àquele encontro com uma força para mim até então desconhecida.

Tudo se passava como se eu que de certa forma já tinha lidado com situações tensas como aquela, indiretamente, através de meus clientes, precisasse de uma oportunidade assim, “ao vivo”, face a face, para entender melhor até que ponto minhas sinalizações tinham força.

Otávio vive há anos no Rio de Janeiro. Aqui diz ter encontrado uma repressão à sexualidade que se processa num tom menor que em outras praças brasileiras. Se hoje sua situação econômica é razoável (o mesmo não posso dizer de mim dado que dependo da divisão das despesas da casa com aquela cascavel; caso contrário tenho que atravessar o túnel Rebouças para a Zona Norte), para isso houve sacrifícios que ele ainda questiona até que ponto tenham sido válidos. As aulas de canto e música que eu insisti para ele voltar a ter, às vezes (me confessava angustiado) lhe faziam mais mal do que bem: elas insistentemente lhe lembravam o cantor de ópera que ele gostaria de ser e não era. Através dele aproximei-me do mundo da ópera. Sua coleção de DVDs na área é fabulosa. Em resumo, nos momentos de mau-humor, em retrospecto, vejo nosso relacionamento como mentiras&dvds. Sexo não havia! É claro, havia, mas eu não conseguia me sentir o tempo inteiro à vontade. À noite tudo bem. Mas ao acordar e sentir aquele corpo masculino forte, bem trabalhado pela ginástica perto de mim, me provocava certo arrepio, um incômodo indecifrável, incontornável. Uma sensação de que eu estava desperdiçando o melhor de minha vida com uma aventura sem futuro, condenada à esterilidade. Havia ocasiões em que colocava almofadas entre os corpos na cama, pela madrugada, para não ser incomodado pela manhã com o seu calor humano provocante.

Otávio que há algum tempo só passa alguns Natais, de forma superficial, com a família em São Paulo (às vezes nem isto), com esporádicos e frios contatos por telefone, recebeu o recado de que haveria uma reunião promovida pelos pais, os irmãos, etc, enfim, toda a “parentalha” para tratar de questões urgentes, uma delas a herança em jogo. Otávio estranhou esse fato, dado que conhecia a natureza do pai, com seus sessenta e cinco anos completos, bastante saudável e este sempre manifestou a intenção de que os filhos se “virassem” depois de sua morte e não planejaria nada de antemão quanto à distribuição dos bens. A mãe segundo presumia, tinha alguns problemas de saúde, mas eram naturais para a idade com que contava. Estava forte também. Mas quem é que sabe as emoções que um coração pode suportar? O filho Otávio, autêntica ovelha negra da família, aquele de quem mais esperavam na adolescência, o mais “comportado”, estudioso, acabou se transformando no mais distante, enigmático, inacessível. Por algum tempo haviam tentado recolher a ovelha desgarrada. Vendo-a irredutível na sua vontade de viver no Rio de Janeiro, longe deles, foram vencidos pelo cansaço. A mãe, Sílvia, sempre lhe martelou que se sua vida estava evoluindo tão bem economicamente, por que não se casar, se completar enquanto homem, enquanto ser humano, tendo filhos. Para que viver sozinho? – insistia sempre. Se Otávio nunca havia assumido sua homossexualidade para eles, também nunca havia criado álibis que confundissem as suspeitas, embaralhassem as cartas. Para bom entendedor, meia palavra... (e lá estou eu, novamente, envolvido com esses ditos populares...) .E se algum intrigante enviasse à família uma correspondência amorosa particular de Otávio, estariam lhe fazendo um favor. Pelo menos era o que dizia.

Para Otávio a situação estava clara a principio. A família, mesmo não dando sinais nítidos, sabia do seu modus-vivendi. Certamente jamais o aceitariam como ele é. No entanto agora o queriam para um conselho de família? Mas por que, se tantas decisões já haviam sido tomadas por lá sem que ele tivesse tido a menor participação? Quando o pai, engenheiro da Light, aposentou-se, vendeu imóveis, montou a loja de materiais de construção e passou a trabalhar com Oscar que havia dado baixa da Marinha, Otávio só soube depois que tudo já estava consumado. Por que agora estavam interessados na sua opinião? Ao especularmos um pouco sobre a situação ele logo pressentiu que o que estava ocorrendo é que nestes turbulentos e recessivos primeiros meses de 2009, a situação econômica da família não deveria estar boa. Era isso então. Estavam interessados no seu dinheiro. Ou melhor, no capital monstruoso que imaginavam que o filho solteiro, que ganharia muito, teria amealhado nestes anos todos. O primeiro impulso dele era não ir, não fazer o jogo de”volta do filho pródigo”. Tinha o intuito de simplesmente discutir por telefone o que estaria ocorrendo, avisar que não tinha dinheiro para emprestar e ponto final.

Não acredito, entretanto, que a lembrança de que discutiriam também a herança tenha sido a mola propulsora do desejo de ir. Umas das razões mais fortes é que o arrojado Otávio, de musculatura trabalhada, decidido, apesar dos seus trinta e sete anos, era uma criança. Por mais que afirmasse que havia cortado o cordão umbilical definitivamente, se ver desterrado, “escravo de seu desejo”, tinha um banzo enorme dos tempos em que conviveu com a família. Inseguro, se sentia um patinho feio dentro aquela estrutura e percebeu naquela situação uma oportunidade de retornar ao lar de origem, “onde tudo começou”. Mas numa situação em que dado a fragilidade da família, ele se sentiria forte para se impor, se mostrar, se revelar, tirar as máscaras que lhe faziam muito mal, apesar de trabalhá-las com apuro e arte, sem apelo ao grotesco. Havia ainda, reconheço, uns laivos de esperanças de que, quem sabe, tivessem mudado e quisessem agora uma aproximação verdadeira. A rigor Otávio não tinha certeza de que havia apenas cálculo frio no convite feito pela família e assim a vontade de tirar “a prova dos nove” o aguçou.

Quando Otávio, incisivo, com um brilho alucinado nos olhos me disse “Vamos a São Paulo, os dois! Eu quero que você vá comigo!”, a princípio eu gelei e busquei um não rotundo que naquele momento me parecia realmente irredutível. Quando Otávio tentou (logo a mim!) me fazer sentir culpado por querer abandoná-lo neste momento difícil, eu tinha várias respostas contundentes para dar. Senti vontade de terminar a nossa relação naquela hora, algo estava se fechando para mim como na gestalt da psicologia. Detesto esse jogo de culpas. Mas não. Logo o meu não peremptório esvaneceu-se. Eu não reagi e acabei aceitando aquele desafio. Não era só ele que tinha o que descobrir lá, in locum. Eu também.

Ao chegarmos, Sílvia, mãe de Otávio, abraçou-nos comovida. “Este é o meu amigo Jonas. Vamos aproveitar para ver uns espetáculos na Paulicéia Desvairada” – assim Otávio apresentou-me, com os olhos bem sacanas que se reviraram nas órbitas, furtivas, com emoção controlada. A mãe lamentou que no final do ano ele não tivesse vindo para nenhuma das festas, mas visivelmente, quase que mordendo as palavras, controlou a vontade de perguntar o porquê. Fui apresentado a Oscar (aparentando ser mais moço que o irmão que eu conhecia, apesar dos seus quarenta anos), sua mulher Dulce e os filhos do casal, dois irrequietos monstrinhos, que só sossegaram ao ouvirem o grito agudo da mãe. Marta, a irmã de Otávio foi quem me olhou da forma mais intrigante, ávida, perscrutadora, denunciando mais facilmente um ar de quem sabia a importância que eu tinha realmente na vida do irmão. Ora eu a sentia solidária com vontade de aproximar-se, ora era patente certa aversão, um incômodo inegável. Clóvis, seu marido, era quem me parecia menos à vontade naquela situação. Dificilmente nos encarou. Um ar de vergonha, de pudor excessivo o contaminava de forma patente e logo tratou de dizer que precisava ir à cidade visitar seu corretor. Soube depois, que despedido da indústria de componentes micro-eletrônicos que roçava a bancarrota, estava agora em casa administrando um capital acumulado, incluindo economias e fundo de garantia, comprando dólares, euros, ações e realizando outras operações financeiras mais elaboradas. O que a princípio estava dando certo (quando não aferia lucros pelo menos mantinha o capital total original) agora se mostrava uma atividade estéril, principalmente depois que precipitações foram cometidas e houve uma grande perda de dinheiro neste contexto de crise global, além da perda natural de confiança e auto-estima.

O velho Alexandre nos encarou de forma altiva e se havia incômodo e timidez, diante de nossa presença ali (e obviamente havia) disfarçou bem, tecendo comentários cheios de orgulho, sem titubeios, sobre a “bandalheira que estavam perpetrando” com os aposentados. Mas ele não se deixaria abater por “estes inconseqüentes”.

Os Andrades moram num bonito sobrado na Vila Mariana: embaixo, na frente, a loja, nos fundos uma casa ampla com quintal, cachorros guardiões a latirem histericamente acorrentados, em cima outra casa, esta menos espaçosa, com uma pequena varanda, de onde se vê a calmaria da rua, distinta do frenesi que observo aqui na Zona Sul carioca. O habitat dos Andrades foi construído pelo patriarca Alexandre, depois de uma labuta de anos, trabalhando inclusive nos fins de semana, projetando, administrando e gerenciando as obras. Toda a habilidade que o pai tinha com os trabalhos práticos simplesmente não compareciam na menor dose sequer em Otávio, esse trapalhão. O filho sempre associara ao trabalho árduo de que o pai era capaz, o lidar com ferramentas, máquinas, um mau-humor, um espírito rude, uma afetividade reprimida, que ele desejava ao máximo evitar pela vida afora. De tal modo sempre quis ser diferente do pai que passou adquirir um verdadeiro horror até mesmo às “bricolagens” mais elementares: Otávio apanhava até mesmo na colocação de uma lâmpada. “Torce-se no sentido horário ou anti-horário?...” Quando eu o via como um personagem de Woody Allen sentia-me compelido a dizer: “Esquece Vila Mariana, esquece Vila Mariana...” A cultura física adquirida pelo pai no corpo a corpo com o trabalho, Otávio, vaidoso, procurava com obstinação na ginástica. O desejo de estar sempre “em forma” era a maior e única identificação com a imagem paterna.

Havíamos chegado pela manhã depois de um sono trepidante no ônibus leito. Apresentada a família, tomamos café e discutimos, ou melhor, roçamos questões políticas atuais. O velho Alexandre estava insatisfeitíssimo com seu candidato eleito. Aquilo que era previsível logo ocorreu: Otávio, com um prazer quase sádico no tom da voz aproveitou para lembrar ao pai “que era óbvio que tudo o que está acontecendo, aconteceria...” “Eu não votei no homem. Tenho minha consciência tranqüila! Mas vocês não aprendem! Ainda apostam em algumas raposas para tomar conta do galinheiro...”- acrescentou. Não sei o que mais me aborreceu naquela discussão estilo “diálogo de surdos”: se a teimosia do velho Andrade que apesar de se reconhecer frustrado pelo voto dado, não admitia que houvesse outras escolhas mesmo no primeiro turno ou a insistência de Otávio em se mostrar vencedor, olhos faiscantes de raiva e orgulho, como um rei em terra de cegos, numa contenda que naquele momento encobria outras questões que gostariam de aflorar, mas estavam sendo escamoteadas.

Otávio teve a oportunidade de em vários momentos conversar com seus parentes de forma mais íntima. Mas sentia nele quase que uma súplica para que em nenhum momento o deixasse sozinho com “aquela gente”. Queria que eu testemunhasse tudo e às vezes procurava no meu olhar um sinal de aprovação ou não diante da forma com que conduzia os discursos. Mas havia momentos em que se empolgava e qualquer cautela era abandonada. Diante de tentativas por parte dos parentes de deixar-me à parte, de discutirem as coisas entre eles, Otávio audaciosamente, com um prazer que misturava um componente perverso, de forma indireta e às vezes até objetivamente, lhes lembrava que “Jonas é um grande amigo meu, meu conselheiro e não tenho nada a esconder dele”. Diante do silêncio de aturdidos parentes, Otávio se mostrava mais agressivo: ”Vamos pessoal, qual a razão dessa reunião? Por que vocês me adiantaram muito pouco por telefone?” Silvia apressou-se em dizer que precisava arrematar o almoço, que teria muito tempo ainda para conversar.

Enquanto o jornal, fragmentado em inacabáveis cadernos era lido por quase todos de forma atenta (ou simuladamente atenta) conversei com Clóvis e soube dos seus atuais dissabores. O que mais me intrigava não era o encaminhamento que ele daria ao seu trabalho agora que malograva a ciranda financeira doméstica. O que eu queria entender era como alguém tinha prazer em lidar, diretamente, de forma ininterrupta com signos ligados ao “ vil metal”, que subiam, desciam ou estabilizavam em termos de valor de acordo com variáveis chamadas “de mercado”, com uma lógica para mim inapreensível. Os altos e baixos do estado de espírito dos meus clientes, a forma como suas cicatrizes se curavam ou voltavam a sangrar, os desejos que vinham à tona para depois afundarem com a força implacável de realidades particulares, os surtos que assomavam e se dissipavam, eram variáveis para mim, (por mais humanas e por isso às vezes quase que incognoscíveis) que tinham, obviamente, um sentido muito mais palpável (por mais que às vezes tateasse no escuro no consultório na escuta “dos falantes e suas falas”) que essas forças ditas econômicas, mas que são frutos muitas vezes de desejos perversos dos homens: a neurose pelo lucro abusivo, o egoísmo e a ganância que não conhece limites que reprimem quaisquer desejos que se lhe contraponham, o espírito suicida pelo alto risco.

Estava mergulhado nestes pensamentos quando o velho Alexandre convidou-nos para ver as reformas da casa. Havia muitas atividades começadas e melancolicamente à espera de acabamento. “Agora já não consigo trabalhar como antes. Minha coluna me trai. Tenho que confiar todo trabalho a essa gente preguiçosa! Eles só fazem reclamar de salário, querem aumento, ouvem o canto das sereias dos sindicatos, querem” reclamar direitos”, mas com o batente que é bom, nada!” – indignou-se o pai do meu namorado, namorado que me levou a essa insólita aventura quase que rodrigueana.

De volta à sala, um silêncio constrangedor instalou-se. Ninguém sabia o que dizer. Marta, a mais inquieta das personalidades que me foram apresentadas naquela manhã era a candidata natural à “quebra de gelo”. Seus lábios tremiam de curiosidade e logo me vi questionado sobre o meu trabalho. Disse-me que tinha amigas que faziam análise e que gostaria também de experimentar para saber o que sentiria. Senti vontade de dizer-lhe que minha atividade não lida com a “última moda exposta nas butiques”, mas contive-me. Quando percebi que todas as luzes dos diversos olhares estavam sobre mim é que me arrependi terrivelmente de ter aceito aquele passeio à “classe média baixa paulista empobrecida”. Acredito, entretanto, que tenha conseguido controlar com eficácia o incômodo. Depois de eu narrar, com ironia calculada que Freud quando foi ao EUA disse que lhes “estava trazendo a peste” e me atrever a algumas explicações adicionais sobre diferentes correntes psicanalíticas, acredito que, como reação, a televisão foi ligada! Logo, por ironia, um entrevistado efeminado irrompe num irritante talk-show. Dado que a situação que vivíamos ali era um jogo do qual esperava zarpar o mais rápido possível, depois de coletadas algumas observações, apenas registrei, não me amofinei com o fato de tentarem disfarçar que não percebiam nada entre mim e Otávio, dado que faziam comentários jocosos sobre os trejeitos que viam na tevê, como se não tivéssemos o mais remoto ponto de contato com o que se passava nela.É claro que eu reconheço essa distância, mas o que me incomodava neles é a ambigüidade sagaz: procuravam ao mesmo tempo nos lisonjear, adular como também ridicularizar-nos por via transversa. Optei por rir junto com eles um riso cínico, desconfortável, excessivo, calculado. As piadas que fizeram principalmente os irmãos Oscar e Marta eram uma forma perversa de sinalizarem que tanto compreendiam as nossas vidas que se permitiam essas gracinhas, diplomaticamente, não convenientes na ocasião, para realçarem falsamente o fato de nos enxergarem de forma diferente.

Oscar se lembrou de um jeito mais explícito que quando trabalhava na Marinha conheceu colegas que “eram machos pra burro” sem esses tiques e, no entanto eram homossexuais. “Eu até que tinha bom relacionamento com eles. Eram esquivos, mas bons companheiros”. Ao se deparar com expressões marotas do pai e da irmã, tratou logo de explicar, com um riso estrepitoso, que os relacionamentos a que se referia eram de pura amizade, profissionais. Otávio esforçou-se ao máximo para não se incomodar com o comentário do irmão. Procurou em mim algum sinal que lhe transmitisse o que dizer, se é que deveria dizer algo.Otávio optou pelo silêncio, mexendo-se irrequieto na poltrona. Sílvia convidou-nos a ir para a varanda, um canto “mais aconchegante, longe deste barulho da televisão”.

A mãe de Otávio ainda era uma bela mulher: o rosto tinha rugas que ela não disfarçava, mas a pele apresentava, de modo geral, uma suavidade aveludada que impressionava. Tive a curiosidade mundana de perguntar depois a ele se ela havia feito operação plástica, mas com o turbilhão que ali se foi formando, acabei esquecendo. Acomodamo-nos em cadeiras de palha. Graças a Deus, ficamos sem ouvir as desagradáveis notícias dos telejornais dos quais tenho horror pois longe de nos informar, simplesmente procuram nos soterrar de atrocidades cotidianas de forma tal que não reflitamos, nos sintamos medrosos, humilhados, paralisados com tantas desgraças, sem nos despertar um espírito crítico, sem análises, de forma que os novos escândalos substituem os velhos escândalos.

Senti-me na iminência de vivenciar uma dessas histórias folhetinescas que tanto abomino, numa manhã de horário nada nobre. O incômodo inicial deu lugar a certa ternura. Sílvia olhava mais a mim do que ao filho que a observava ressabiado, receoso, por mais que tentasse se mostrar dono da situação. “Eu também já gostei bastante de estudar como vocês” – começou a falar, com um sentimentalismo surpreendentemente contido, suave – “mas sabe como são as coisas, chegaram os filhos, a gente tem que optar. Eu dava aulas. Fiz o Normal, poderia ter estudado mais, mas as circunstâncias...” Otávio fez cara de enfado. A mãe recriminou-o com o olhar, contrariada. Continuou a conversa num tom mais apressado, nervoso. “Ele me acha uma velha chata. Mas eu não deixo de gostar dele por isso. Sempre foi o meu predileto, o mais carinhoso. Hoje se mostra arredio, arisco, às vezes parece até que é uma daquelas árvores cheias de espinhos que agente toca. Quase não aparece por aqui. Quando vem não conversa com a agente, se tranca no quarto pra ler ou sai mais à noite nesta cidade que é tão perigosa, como se no Rio não tivesse grandes opções. Mas a violência do Rio é pior não é meu filho?” Otávio não disfarçou a contrariedade e tratou logo de mudar o rumo da conversa. “Afinal mãe, o que vocês querem de mim?” Sílvia pediu-lhe calma e ponderou que esta era uma questão que o pai apresentaria, mas depois do almoço e levantou-se para organizar a mesa, sentindo que não era naquele momento que se tornaria mais íntima do filho. Aquela conversa, ou melhor, aquele monólogo seria bastante lembrado por Otávio com um misto de culpa e arrependimento. Foi praticamente a última oportunidade que os dois tiveram de se reencontrar. Otávio lembrava-se da conversa gesto por gesto, palavra por palavra e perguntava a mim após a celeuma já ser história, se tinha sido possível naquele momento uma interação amigável.

No almoço revivi com Otávio um dos desprazeres típicos das famílias latinas: a falação atabalhoada entre uma garfada e outra. Para completar o quadro trivial as crianças se mostravam insatisfeitas com a comida, enchiam o prato e logo se aborreciam, enjoavam. Queriam mais refrigerantes que obviamente só lhes seriam servidos com a “chantagem do prato limpo”. Como se mostrassem teimosas em seus desejos, as crianças logo se viram alvo da zanga de Dulce e Marta que com a ajuda da avó Sílvia se esmeravam em desferir pequenas ameaças.

O velho Alexandre e Oscar queriam que eu lhes explicasse melhor ali na mesa o que era inconsciente, veja só... Para completar, como era inevitável, Marta me fez a pergunta que sempre repetiu ao irmão: por que eu não tinha filhos? Otávio tratou logo de me desembaraçar: “Essas mães, doutor, são como as pessoas viciadas em drogas. Se sentem culpadas, solitárias e precisam logo de uma companhia no vício para se sentirem menos delituosas...” Marta indignou-se, estava prestes a explodir com o irmão, quando um olhar fulminante do pai, de Oscar e Sílvia a detiveram. Levantou-se da mesa em silêncio ressentido.

Na sala, enquanto tomávamos café, as crianças nos cercavam. A principio brincamos com elas com toda paciência. Aos poucos a algazarra começou a nos irritar, mais ainda a mim do que a Otávio. E ele, como alguém que não tem tempo a perder, sem cerimônia, sentindo-se em casa tratou de encerrar o folguedo. “Deixe-nos em paz agora!”. Sílvia permitiu-se comentar que o filho “nunca teve paciência com crianças, não seria hoje...” O marido encarou-a contrariado. Sílvia pediu licença a todos e admitiu querer tirar um sono rápido. Otávio impacientou-se. Queria que a assembléia logo começasse os trabalhos e manifestou mais uma vez essa vontade. Alexandre rogou-lhe mais paciência num misto de autoritarismo, rispidez e humildade e acompanhou a mulher. Clóvis chamou Oscar para mostrar-lhe um novo jogo no computador. Convidou-nos sem força, sem ênfase, para que os acompanhássemos. Recusamos o convite. Marta apressou-se em dizer que precisava lavar a louça. “Estamos sem empregada atualmente, está difícil encontrar uma que preste” – acrescentou um tanto tímida.

Ficamos a sós com Dulce. Desde que chegamos, por trás do rosto sofrido e enigmático daquela Mona Lisa de trinta e cinco anos, eu vislumbrei que se havia a possibilidade de travarmos um contato imediato de primeiro grau com alguém naquela casa, era com ela. Era visível a sua satisfação em nos ter ali, de corpo vivo, duas sombras que povoavam o imaginário da casa e que agora se permitiam definir um pouco melhor os seus contornos, apresentar algumas nuances reveladoras. Nem mesmo a mãe, apesar do indisfarçável e indescritível contentamento pela presença do filho ali, estava com o ar afável de Dulce. Em Sílvia, ódio e amor, ternura e náusea conviviam de forma intranqüila, num equilíbrio instável. Apesar da mãe se mostrar por todos os meios, atenciosa, grata, compreensiva, eu sentia na suas atitudes comigo, uma mãe que procurava agradar a alguém não porque este alguém merecesse esse agrado, mas para agradar ao outro (o filho!). Com Dulce, o clima era outro. Relutante, tímida, chegou-se até nós e declarou em voz baixa: “Eu não era nem para estar aqui. Mas eles insistiram tanto... Sabe, Otávio, eu e seu irmão estamos nos separando! Eu não agüentava mais”. Era evidente que o desabafo feito num tom forte, determinado, escondia uma vontade atroz de chorar. Dulce, entretanto, conseguiu dar o seu recado até o fim. “Eu já estava cansada de ser trocada pelo baralho e pela televisão! Até os filhos já não tinham a mesma atenção dele”. Contou-nos que um dia, fugiu com os filhos para a casa da mãe e entrou com uma ação de separação judicial de corpos. “Oscar tem um gênio muito violento. Ele saiu da Marinha, mas o comando aqui em casa continua, ou melhor, continuava!” Dulce pretendia voltar a estudar, trabalhar, não queria seguir o caminho de dependência de Sílvia e Marta. “Eu não quero me acabar, servindo um machão incorrigível!” – observou como se tivesse um brilho revolucionário nos olhos, diante de uma Bastilha derrubada. “Essa família está falida! Oscar não tem dinheiro para me indenizar pela metade dos nossos bens! Fizemos um acordo, depois de muitas brigas, senão haveria um leilão judicial e os preços seriam ridículos! Mas ele não me pagou até agora! Meu advogado deve entrar com um processo. Só vou esperar mais um pouco! Quanta baixaria Meu Deus!... Sabe que ele e o advogado dele chegaram a insinuar que eu teria um amante! O Oscar sim, eu tenho certeza. Mas agora não importa mais. Nos separamos e pronto. O processo está no fim. Eu poderia ter usado as crianças contra ele, mas não tive esse despudor. Mas bem que ele tentou...”.

Encarei Otávio e senti que por mais que ele visse confirmadas as suspeitas que já tinha quanto à finalidade da reunião familiar, ele estava atordoado, pasmo, decepcionado, arrasado. Tive o impulso de abraçá-lo ali mesmo, confortá-lo, mas logo a família voltou em peso. Dulce afastou-se, agora temerosa. Otávio voltou a apresentar o ar decidido com que havia resolvido travar o reencontro com os fantasmas familiares.

Alexandre pediu a todos silêncio e tomou a palavra. Só não estavam presentes as crianças. Era um sinal de que temiam que para elas fosse representada uma peça imprópria.Ficamos acomodados quase todos nos sofás. Oscar e Clóvis brincavam com as almofadas, olhando para quadros na parede, onde os avôs também presenciavam a reunião. Sílvia encarava receosa o marido, de pé, ao lado dele. Eu e Otávio atentos evitávamos trocar olhares. Dulce e Marta,uma diante da outra, com expressões típicas de guerra fria. A irmã de Otávio expressava a certeza de que a cunhada já havia adiantado alguma coisa, de acordo com sua própria ótica, o que poderia ser nocivo aos interesses do grupo. O velho Alexandre com voz pausadamente calculada inaugurou a sessão:

“Eu sempre me furtei a pensar em fazer um testamento. Eu achava que o melhor era deixar os filhós decidirem depois o que fazerem, como pessoas maduras que são. Mas hoje eu sei que os conflitos da sociedade em que vivemos são mais complicados. Eu sei que a família, infelizmente, já não tem força que tinha antes. Os tempos são confusos e acredito que se eu posso ajudar a resolver uns problemas hoje que são dos meus filhos, mas diz respeito a mim, à mãe de vocês (que se Deus quiser ainda durará muito... para chatear vocês...)”. Riu de forma um tanto sem graça, alegou estar brincando e continuou:

“ Eu gostaria hoje, agora, de discutir com vocês como dividir tudo, deixando tudo escrito. Mas Otávio meu filho...Eu neste momento me dirijo a você que é quem tem estado mais ausente, ou melhor, menos presente nesta casa, mas como consta nas sagradas escrituras a alegria é maior quando um filho à casa retorna e espero que eu não desperte esses mesmos ciúmes já tão velhos em você Oscar e sua irmã.O fato, Otávio, é que a situação econômica do país é preocupante e precisamos colocar ordem na casa. Nossa loja de materiais não vai bem. Quem tem dinheiro hoje para construir como nós fizemos com este sobrado? Seu cunhado está desempregado! Seu irmão Oscar além de alguns probleminhas familiares precisa da loja como meio de vida. Não há como voltar à Marinha. Minha aposentadoria... Bem... é melhor nem falarmos dela. O fato é que precisamos de um bom empréstimo seu para pagarmos duplicatas vencidas, encomendas encalhadas, para dinamizarmos a loja, acabar as obras iniciadas, enfim, colocarmos a casa nos trilhos novamente, para aí sim podermos fazer partilha. Não quero que você seja sacrificado! Você estará apenas fazendo um investimento. Nós saberemos recompensá-lo na divisão dos bens que discutiremos depois...”

Otávio se sentiu como num filme de horror que já tivesse visto ou numa ópera trágica. Confessou-me depois que as árias mais doridas lhe vieram à mente e que sentiu vontade de cantarolar algumas ali para espanto de todos, mas logo caiu em si. Queria também lhes dirigir a palavra, mas com calma, sem sentimento de raiva ou vingança, apenas com verdade. Era o que ele jurou depois a mim que estava sentindo no momento. Mas não conseguiu. Apesar de reconhecer na situação ali um drama patético,mesmo tendo consciência de que os atores ali envolvidos, de uma forma ou outra estavam associados à sua vida e por que não à lembranças também doces, ternas, a indignação por ter confirmado, que a aceitação dele ali junto com o amigo, por mais tênue e superficial que fosse, estava justamente condicionada pelo fato de precisarem dele, o fez mais do que ponderar, desabafar:

“Vocês pensam que eu não tenho vida própria? Olha, eu não ganho como vocês imaginam! E não é porque não tenho filhos que não tenho grandes despesas! Já tive relacionamentos que terminei e também dividi patrimônio, mas sem baixarias! Com toda justiça! A César o que é de César”

Eu me atrevi a interrompê-lo e a dizer que era melhor ele falar que não tinha dinheiro a emprestar e pronto! Sílvia e Marta se pudessem lançar chamas pelos olhos me carbonizariam. Otávio preferiu ignorar-me, continuando a justificar-se no seu jeito nervoso, as mãos balançando, desarvorado:

“Sabe! Eu até já fui assaltado uma vez dentro de casa. Minto. Não uma! Duas vezes! Levaram-me bastante dinheiro, meus cartões e alguns eletrodomésticos. Fiquei dias desacordado. Mas vocês não mereceram a honra de tomar conhecimento desses problemas. Já paguei também tratamentos de amigos mas... “

Mais uma vez insisti para que ele parasse. Não adiantou.

“Vocês sempre me ignoraram, agora se lembram de mim, mas é dessa forma mais torpe. Sabe mãe, pai, até mesmo vocês Marta e Oscar, seus eternos egoístas, autistas... quando recebi o chamado de vocês logo pressenti essa fria, mas eu tinha certa esperança, doida, tola, quixotesca, ingênua, mas tinha, de que o que estava aqui preparado, era reencontro noutros termos, sem essas hipocrisias”.

Se até aquele momento por mais que o jogo de esconde-esconde ali travado tivesse se mantido num tom tolerável, se as hipocrisias se restringiam a uma clave suave, ainda que com cálculos à mostra, qualquer forma de polimento foi abandonada e os ressentimentos afloraram. Oscar foi o mais incisivo:

“ Você que escolheu viver longe da gente para poder mergulhar nesta Sodoma e Gomorra que é o Rio de Janeiro, nunca deu a mínima para o que estava acontecendo aqui.Você que gasta seu dinheiro todo com esses prostitutos, o mínimo que merece é virar notícia de jornal ao ser encontrado trucidado, amarrado, esfaqueado com todo o requinte... Só espero que ao sair Andrade no jornal ninguém associe este sobrenome ao de nossa família. Graças a Deus tem muitos outros Andrades por aí...”

O velho Alexandre se mostrou indignado, por tomar conhecimento que o filho “jogava dinheiro pela janela”.

“Sua mãe é que me convenceu de que poderíamos chamá-lo. Pra mim, você era e agora confirmo isso, irrecuperável! Você foi o comido por essa cidade perdida! Eu não queria admitir que um filho meu estivesse envolvido nestas leviandades, neste submundo que vemos pela televisão. Mas agora isto está definitivamente claro para mim! Quanto à partilha...”

Antes que o patriarca Alexandre excomungasse o filho de sua igreja, Silvia desmaiou e foram todos acudi-la. Marta dirigiu-se ao irmão com gritos cortantes: “Você quer matar a nossa mãe!Você quer matar a nossa mãe!” Otávio ainda encontrou verve para responder a irmã: “De acordo com meu amigo aqui, eu quero é matar o pai, não a mãe!”

Tão logo a vimos reanimada, arrumamos apressados as coisas e fomos respirar na cidade. Confesso que São Paulo me assusta, é para mim como a língua portuguesa: esplendor e sepultura. Otávio costuma troçar que o ideal é nascer como ele em São Paulo, ter “uma formação paulista” e vir morar no Rio. Não sei. Não gosto desta disputa provinciana. Também, com aqueles acontecimentos do dia, não poderia mesmo passear à noite em São Paulo com prazer antes de pegarmos o ônibus. Por ironia assistimos “Viver Sem Tempos Mortos” depois de tanta mortificação e fomos para a rodoviária.

Um mês depois de voltarmos ao Rio, recebemos uma carta de Dulce, pobre Dulce, pedindo-nos que não os quisesse mal. No que lhe dizia respeito, não havia ressentimento. Ela nos compreendia, nos respeitava. Quanto ao seu casamento, havia desistido por hora de qualquer processo de separação. Como o marido não tinha nenhum dinheiro vivo para indenizá-la, se o processasse um leilão seria feito à revelia deles, os bens vendidos por um preço injusto e as crianças teriam pais desestruturados para educá-las.

Ainda hoje me pergunto o que fui fazer lá, por que me expus daquela forma. A explicação de que queria entender o que era minha relação com Otavio não me satisfaz. Não tínhamos o que discutir em termos de bens materiais. Minha ligação com ele tinha apenas 9 meses, o tempo de uma gestação. O que nasceu, entretanto, foi a consciência de que era necessário um ponto final. Logo fiz Otavio entender (e para tal tive que quebrar-lhe várias couraças) que só poderíamos continuar amigos. A rigor, nossa relação, nosso amor “não cozinhou por dentro” e não havia por que disfarçar mais. Compreendo a família dele, eu o compreendi mais, mas ao mesmo tempo compreendi melhor como era um equívoco, um desacerto esticado a nossa união. Havia solidariedade, companheirismo, amizade, afinidade, mas o amor é outra coisa! Quando conversei com Otávio nestes termos, quando lhe sinalizei de que os silêncios entre nós eram desesperadores, acusou-me de estar tratando-o como se ele fosse um analisado meu. Que posso fazer? Meus instintos, minhas intuições, meus conhecimentos, meu espírito crítico são aguçados, não posso mandá-los tirar férias facilmente. É uma questão de coerência entre a minha vida e o que digo, sugiro no consultório. Confesso que esse meu lado homossexual me assusta bastante ainda e eu, que quero viver realmente de acordo com meus desejos, não sei se conseguirei ainda amar um homem com todos os riscos, todo êxtase, todo ardor que isto implica. As mulheres são mais fáceis....Mas veja só que bobagem estou dizendo...

Quando me separei dele depois de choro e ranger de dentes, ele me ligou para dizer que não estava com raiva de mim. Convidou-me inclusive para irmos até “uma pessoa fantástica”, “um autentico xamã”. Depois de certa insistência, curioso, cedi. Fomos. Esse Otávio tem o dom de me levar a pisar onde jamais imaginaria. Não é que esta pessoa descreveu com acuidade meu estado de espírito atual, minha vida, de forma fantástica! Com relação a Otávio ao mesmo tempo que falou-lhe de alguém especial que surgiria em sua vida, vaticinou que ele perderia um parente próximo. Uma semana depois da carta, Dulce nos enviou um telegrama avisando-nos que Sílvia morrera (tivera um mal súbito) e que os irmãos prefeririam que ele não comparecesse ao enterro. Acompanhei meu amigo nesta hora dolorosa até São Paulo, enfrentamos olhares recriminadores e voltamos.

Já “sacudi “ Otávio de todas as formas para que não se sinta culpado pela morte da mãe. Alertei-lhe para que não caia na armadilha que a família lhe lança, pois afinal é justamente o que desejam: vê-lo ruminar-se, inferiorizar-se, corroer-se com este sentimento pequeno. A culpa. Mas de onde vem ela? Quem é? Para onde vai? A culpa, essa maldição católica, ou melhor judaico-cristã, faz realmente deste mundo um mundo melhor? Obviamente que não! Mas como nos exorcizarmos dela? Observando e analisando a culpa em Otávio é que eu percebi que ainda não resolvi todas as minhas culpas, eu que estou acostumado a lidar com as culpas de outros. Logo eu! Um profissional respeitável que já me considerava suficientemente analisado. Quanto ao Otávio, agora que se envolveu com estas questões esotéricas, por mais “loucas que sejam” está mais aliviado, mais calmo. Depois de tantas perdas, tem-se que achar alguma coisa. Freud já discutiu muito essa ilusão, não é mesmo? Mas por que será que às vezes me dá uma sensação terrível de mal-estar, uma sensação bergmaniana de fracasso, uma impressão (eu vou lhe confessar isso agora) de que todas as teorias que estudei, estudei, discuti, discuti, são insuficientes para explicar o que se passa diante de mim? Olha, eu só tenho coragem de admitir isso a você: eu desconfio que meus clientes me procuram porque não encontram coisa melhor! Eu sou o melhor entre os piores! É assim que às vezes me sinto. Mas meu Deus, porque esse mal-estar, essas culpas? Sim, culpa. A maldita culpa!

Ah! Como essa sessão de análise está longa! Você ainda vai me deixar falando sozinho por muito tempo Jorge, ou melhor, Doutor Jorge Freitas de Albuquerque, meu colega, meu par, meu analista, a pessoa que eu acredito que possa me compreender, analisar neste momento. Eu gostaria de deslocar/sepultar minhas culpas, procurando talvez, como Otávio religiões consistentes. Mas não é uma ilusão sem futuro, doutor? Fale alguma coisa, por favor, eu já estou me sentindo dostoievskianamente muito ridículo!

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Nelson Rodrigues de Souza