quinta-feira, 29 de julho de 2010

O Ódio Que Não Ousa Dizer o Seu Nome- Um Conto






O Ódio Que Não Ousa Dizer o Seu Nome

Rio de Janeiro, 1986.

Ao espiar pelo olho mágico e deparar-se com aquele rosto, que embora apresentasse já pequenas dobras na pele e fartos cabelos, ainda mostrava de forma nítida os mesmos traços de dezoito anos atrás, Fernando por instantes acreditou que o orifício de acesso ao mundo exterior cravado em sua porta cumpria literalmente os desígnios insinuados pelo seu nome.

Abrindo a porta e constatando a presença irrevogável do colega de antigas aventuras, Fernando pediu calma a si mesmo, pois já previa que a inusitada visita lhe traria revigoradas, candentes recordações que por várias vezes teimavam em vir à tona e com dificuldade eram escorraçadas para suas ineficazes masmorras. Robledo sorriu desconcertado diante do precário equilíbrio entre alegria e apreensão estampado no rosto do anfitrião. Abraços que se esforçaram por serem calorosos se seguiram e logo os dois parceiros de antigas e melindrosas aventuras se viram face a face, tensos, tentando quebrar o clima de estranheza instalado com uma torrente de informações que lhes permitisse se não recuperarem uma velha camaradagem pelo menos se enxergarem sem timidez.

Robledo voltou há pouco ao Brasil depois de uma longa temporada em Cuba, lembrou-se do endereço dos pais do ex-companheiro, veio pedir referências dele e encontrou-o já na condição de herdeiro de um modesto apartamento na Tijuca dado que o casal que daria notícias foi a primeira inquietante notícia: o Sr. e Sra. Menezes tinham já perecido. As desconfianças iniciais foram amainadas com solidariedade induzida pelas notas fúnebres. Robledo ruminava uma viuvez recente e voltara ao Brasil não só para sondar a possibilidade de aqui reinstalar-se e recuperar sua cidadania como também para distanciar-se de elementos cotidianos que lhe despertavam alucinantes lembranças. Robledo tinha consciência de adotar uma técnica perigosa que consistia em esquecer acontecimentos desagradáveis instigando o assomo de outros.

Reacendidas algumas fagulhas da velha intimidade, Robledo logo tratou de exorcizar seus mais perseverantes fantasmas e expôs, com calculada diplomacia, suas dúvidas perenes:

- Quando eu voltei para o prédio naquele dia crítico eu logo percebi a movimentação esquiva dos guardas na portaria, interrogando nossa síndica de olhos esbugalhados. Eu liguei para os companheiros no aparelho, avisei-os da presença dos tiras, mas não adiantou. Armando desligou abruptamente o telefone após gritar para os parceiros que as pancadas na porta já eram o primeiro sinal da fúria dos agentes.

Robledo prosseguiu o relato com crescente ansiedade. Encarou o colega, tentando subtrair-lhe nos menores movimentos das pupilas algum sinal, alguma confirmação:

- Você e a Letícia já estavam presos desde aquele assalto frustrado. Agora o resto do pessoal era também pego. O que sobraria de todos os planos? Não tive mais notícias de ninguém do nosso grupo. Tive de sair do país e nessa minha volta não esperava nem que você tivesse sobrevivido, quanto mais que morasse no mesmo lugar.

- Vontade de sair desse lugar não me faltou – completou Fernando com uma tensão em precário controle – mas não teve jeito até hoje. Com a contabilidade eu obtenho alguns trocados durante o dia e à noite estou livre para mergulhar nos meus livros. É o que me salva o espírito!

Robledo compôs a sua face mais séria daquela tarde e valeu-se das palavras lançando-as como setas num alvo desprotegido. Fernando sofreu silenciosamente com as espetadelas.

- Sabe que às vezes eu chego a pensar até que foi você que os entregou às feras? – fulminou Robledo com provocante impiedade.

- Acredite você ou não, a verdade é que eu nada revelei àqueles safados – reagiu indignado Fernando – Eu não vou me torturar agora só porque, com exceção de você que escapuliu para Cuba e eu, do resto do pessoal não há nem sinal! Eu tive sorte de ter um tio militar que junto com a mamãe e papai batalhou a minha soltura. Eu posso ser recriminado por isso?

O insólito visitante como se não tivesse ouvido o interlocutor deu ainda mais vazão às suas inquietações:

- Na época em que vocês foram presos eu insisti junto ao pessoal para que mudássemos de aparelho, mas como tínhamos trabalhos urgentes a fazer preferimos acreditar que vocês não sucumbiriam aos imperativos dos seus algozes. Eu temia que a Letícia não suportasse a barra pesada das torturas e cheguei até a sensibilizar uma parte do grupo. A Virginia, lembra-se? A doce e feroz Virginia ficou puta da vida com a gente porque nós estávamos desconfiados da força interior da amiga. Pelo jeito Letícia não suportou os maus-tratos...

O anfitrião, sem disfarçar o abalo com as lembranças do ex-companheiro, tratou de demovê-lo das suspeitas, exasperando o peso das palavras e tal era sua indignação, que elas ecoaram pausadas, sibilantes, com força maior que a eficácia de qualquer argumentação.

- Meu caro colega d’armas, você deve se lembrar como a síndica daquele prédio era histérica. Ela não suportava a idéia de saber que aquele apartamento tinha tantos estudantes, com homens e mulheres entrando e saindo à qualquer hora do dia ou da noite. Ela sempre olhou feio pra gente. Pode ter nos denunciado!

Robledo limitou-se a um quase cético “É...” O silêncio sobrepôs-se a qualquer nova conjectura e após tomarem um trago de conhaque, por iniciativa de Fernando, com a maior cerimônia, para terem a desculpa dos lábios e bocas ocupadas, Robledo se retratou e abraçou o parceiro, um tanto tímido no ínicio, quase efusivamente depois.

Se a tônica até então tinha sido o rolo compressor que atropelou suas vidas há dezoito anos, o que predominou após as desconfianças iniciais foram os acontecimentos após os exílios, um mais tradicional, envolvendo um país estrangeiro, o outro mais metafórico, dizendo respeito à estranheza da própria pátria, ambos empatando no páreo das mágoas, depressões, alheamentos, desesperos, revoltas e dificuldades de adaptação. Fernando mostrou acanhado entusiasmo diante dos relatos sobre a vida do parceiro no exterior. Saber que Robledo completou sem maiores dificuldades financeiras o seu curso de Medicina por lá e que logo se viu engajado no atendimento a camponeses por várias cidades do interior de Cuba, moveu-lhe apenas os músculos faciais necessários para que o expositor não se visse alvo de desdém. Fernando tratou logo de lembrar-se das esperanças aqui renovadas com as reformas econômicas e políticas e asseverou que à maneira deles, os brasileiros também iam implantando suas homeopáticas revoluções, sem o “desnecessário, anacrônico e antiético” derramamento de sangue.

- Eu vim pra cá para sondar a possibilidade de aqui voltar a morar, mas o que encontrei foi a mesma miséria de sempre, senão maior... – informou o visitante – Você me desculpe Fernando, mas não posso conceber como é que um homem com o potencial que você tem, como todos os sonhos acalentados na juventude, se conforma em passar o dia naquele lúgubre escritório, preenchendo seu tempo com infinitos cálculos mesquinhos de contabilidade... À noite você se embriaga com esses livros. Você não acha que todo esse seu aprendizado, deveria ser colocado em prática, fugindo dessa teoria estéril, paralisante?

A reação deu-se imediatamente, na ponta- da- língua, como um discurso já varias vezes ruminado, escrito, ensaiado:

- Você tem uma visão muito limitada do que seja agir. Pra mim importa muito também como é que você resolve suas questões pessoais, sua sociabilidade, sua vida afetiva, como nos enxergamos a nós mesmos...

Fernando pressentiu a saraivada de argumentos prestes a dispararem da boca do interlocutor e adiantou-se na ilustração do que acabava de teorizar:

- Pode ser que eu não mais lhe veja, que você volte definitivamente para seu país que o adotou. Pode ser que você fique aqui para sempre. De qualquer modo eu não quero desenvolver mais nenhuma amizade capenga. Desculpe-me a rudeza da introdução, mas é ainda difícil pra mim falar dessas coisas...

Robledo fez da sua face um monumento rígido e preparou-se para ser aquinhoado com indesejáveis e acabrunhantes petardos:

- Você sabe o que é homossexualidade companheiro? ... Talvez só de algumas brincadeiras quando criança. Só que pra mim deixou de ser uma brincadeira há muito tempo! É uma coisa muito séria! Um dos meus caminhos obrigatórios se eu quiser realmente fazer dessa vida uma coisa digna de ser vivida. Bem ou mal, com toda mentalidade tacanha que aqui predomina, todo machismo avassalador e esterilizante, a gente tem conseguido levar adiante as nossas naturezas. Pelo que tem chegado até a mim, na sua nova pátria nós não só somos indesejados, ridicularizados, menosprezados como aqui, como também não podemos nem passar galhardamente com a nossa caravana deixando os cães latirem. Pelo o que eu sei os cães lá não só latem como mordem e estraçalham!

- Eu me admiro de você levar a sério todas essas calúnias que essa imprensa facciosa burguesa lança sobre o governo cubano! – vociferou Robledo num tom irritado – Desde quando nós matamos os homossexuais? Pelo que me consta (são tantos os problemas à procura das melhores soluções, que eu confesso não estar bem a par deste...) os homossexuais não são exterminados como você alude. Eles apenas sofrem um processo de readaptação, reeducação, de treinamento. É muito diferente.

- E você não percebe seu fanático que esse processo de lavagem cerebral é uma violência, que suas almas são mordidas, dilaceradas? – asseverou Fernando, perdendo o autocontrole, deseducadamente até – Sabe, nessa minha casca-de-ovo em que eu me isolo agora de todas aquelas questões que fervilhavam nas nossas cabeças naqueles loucos anos, alguma coisa, com “práxis” ou não (não é assim que nós falávamos?), eu tenho aprendido. E uma deles é que a fome nossa como seres humanos é muito mais ampla do que qualquer tirano possa imaginar por nós... O que eu já li de depoimentos de homossexuais cubanos como Reinaldo Arenas, sobre os vexames, a miséria espiritual de lá...Olha, eu detesto esse caos daqui que se ameaça perpétuo mas não é por causa disso que eu vou escolher uma prisão toda estruturadinha numa Ilha Grande dessas!

Robledo balançou a cabeça a guisa de reprovação, concentrou uma elevada dose de desprezo nos lábios, limpou o suor do rosto de forma pausada, elaborando uma contra ofensiva:

- Você me constrange Fernando. É impressionante como nestes anos todos você involuiu, assimilando todos esses pruridos pequeno-burgueses. Criou uma redoma para abrigar seus desvios, suas idiossincrasias e a miséria lá fora que se dane! Você não sabe o que é, nunca viveu como um cidadão participante, engajado na construção de uma sociedade com paz, justiça social. Lá não nos sentimos uns fantasmas, uns espectros ambulantes como infelizmente, reduziram o povo daqui.

- Eu posso até concordar com você em parte, mas pelo menos não somos uns robôs programados, uns marionetes... – reagiu o atacante verde e amarelo.

- É por causa de mentalidades como essa sua que esse Brasil continua esse caso sério! – observou o ex-brasileiro.

- Aquele seu regime lá não duraria um mês mais sequer se realmente as pessoas passassem a ter liberdade de opinião e expressão e pudessem dizer o que pensam, o que sentem, o que tem vontade, o que fazem...

Se até então o jogo verbal havia se mantido razoavelmente diplomático agora os lances tornaram-se mais ousados. A fúria em Robledo atingiu um preocupante patamar:

- Ah!... Você é adepto do jogo da verdade não é? Pois então seu molenga, eu gostaria que você me contasse seriamente para eu tirar minha dúvida de uma vez por todas... Foi você que nos entregou aos tiras? Você resistiu mesmo às torturas?

O acusado fulminou o inquisidor com toda raiva que os olhos brilhantes podem irradiar: Se o satisfaz acredite no que quiser acreditar!

A dúvida semeada irritou mais Robledo do que se tivesse recebido um não categórico. – Eu quero a verdade!- gritou com elevado fôlego.

- Você quer a verdade? Ei-la: eu não sou culpado pela prisão dos companheiros! Não tenho culpa!

- Eu não acredito em você! Eu quero a verdade! – berrou a plenos pulmões Robledo, não mais se limitando a destilar sua ira através das palavras, pois agora segurou Fernando pelos braços, torceu-os até as costas e o imobilizou. – Eu quero saber a verdade! Você nos entregou? Você provocou a morte de nossos companheiros só para salvar a própria pele, não foi? Eu quero a verdade!

Fernando murmurou um ”não!” com um gemido compungido. O visitante, em represália, derrubou-o no chão, deixando-o deitado de bruços, fazendo da região glútea um assento, um ponto de apoio para poder melhor torcer-lhe os braços.

- Você é tão safado que deve ter gostado de me ver deitado sobre você! – pilheriou Robledo com uma voz cavernosa, irritada e divertida ao mesmo tempo – mas isso aqui não é uma festa não! Eu quero saber a verdade! Conte-me!

Como um não categórico continuou sendo a única resposta do corpo imobilizado, os braços foram torcidos com maior requinte. Com o rosto pressionado sobre o tapete, os murmúrios e gritos da vítima diluíram-se abafados. Se as negativas sucessivas deixaram Robledo cada vez mais transtornado, o fato de alguém tentar abrir a porta da sala, não conseguir porque havia uma chave enfiada na fechadura pelo lado de dentro e tocar de forma abusiva a campainha, deixou-o completamente fora de si. Precisava agir rapidamente. Os braços agora eram contorcidos, compulsivamente, em arabescos impensáveis até para um homem-borracha.

- A vontade que eu tenho é enfiar-lhe o meu caralho até os seus intestinos! – ruminou a possessa visita – mas você deve gostar! Esse lápis aqui, entretanto, não vai ser muito fofo... Fernando implorou-lhe então que parasse com tudo e se dispôs a contar a sua verdade:

- Eu entreguei o endereço de vocês sim! Eu não tive alternativa! Eu já não suportava mais todos aqueles instrumentos de tortura...

Fernando já solto, de pé, arrumando a camisa, dando alinho à calça amarfanhada, passou a desfiar todas as técnicas de constrangimento e dor pelas quais passou quando preso. Robledo se recompôs também e olhou-o com asco: “Você é um bibelô de vitrine. Eu queria ver é você trabalhar num canavial como eu trabalhei!

- Eu acho que devia lhe agradecer pela sua truculência – ponderou Fernando mais calmo, esforçando-se até compor um sorriso tímido com os lábios, indiferente à campainha que soava nervosa – Você me ajudou a exorcizar meus sentimentos de culpa. Eu acho que agora não sofrerei mais como tenho sofrido com essas lembranças. Eu me sinto mais aliviado. Eu devia lhe odiar pelo vexame que você me fez passar essa noite, mas não consigo! Eu não consigo!

Fernando desabou a chorar. A campainha soou com impaciente e contínua turbulência. O dono do apartamento espalhou as gotas de lágrimas pelas mangas da camisa, recuperou certa sobriedade para o rosto e abriu a porta.

Rubens entrou ressabiado. Pensou em perguntar por que o amante demorou tanto a abrir a porta, mas conteve-se ao notar a presença do estranho. Recebeu com frieza o beijo carinhoso de Fernando, mas este não se alarmou. Fernando estava quase que radiante, ainda que a rigor fosse uma alegria suspeita, abobada, própria da catatonia. Diante de dois rostos pasmos que se examinavam como escravo e comprador, o anfitrião imprimiu à sua fala uma dose equilibrada de sinceridade e sarcasmo:

- Rubens querido, este aqui é um colega meu que eu julgava já falecido. Ele veio para jantar com a gente. Precisamos comemorar esse reencontro!

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Nelson Rodrigues de Souza

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O Divino Drama Humano - François Truffaut- Cinco Filmes de Antoine Doinel








Atenção: O texto adiante contém spoilers, ou seja, detalhes fundamentais são revelados para uma análise mais aprofundada.

François Truffaut- Cinco Filmes de Antoine Doinel

O Divino Drama Humano

Carlos, sossegue,

o amor é isso que você está vendo:

hoje beija, amanhã não beija,

depois de amanhã é domingo

e segunda-feira ninguém sabe o

que será.

Carlos Drummond de Andrade

François Truffaut nasceu em Paris em 1932. Até os 8 anos foi criado com a avó e depois foi morar com a mãe e seu pai adotivo, a quem deve o sobrenome. Desde cedo se interessou por Cinema e Literatura (especialmente Balzac). Ele se refugiava na Cinemateca e a tinha como uma vida paralela. Sua relação com os pais sempre foi muito conturbada e acabou sendo enviado para um reformatório por iniciativa deles. Fugiu, abandonou os estudos, acabou trabalhando numa fábrica, envolveu-se com a militância do cineclubismo e contraiu dívidas. Seu encontro com o célebre crítico André Bazin marcou um turning point na sua vida, pois André passou a ser seu protetor e mentor, o que o salvou da marginalidade. Trabalhando no Cahiers du Cinéma, dirigido por Bazin, deu forma a idéias que estavam ali fervilhando e escreveu em 1953 “Uma certa tendência do cinema francês”, onde atacava o que chamava pejorativamente de “Cinema de qualidade francês”. Em 1959 fez seu primeiro longa-metragem, “Os Incompreendidos”, de forte cunho autobiográfico, com o qual ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Seu filme é considerado um marco da Nouvelle Vague. A partir de então dirigiu mais de vinte longas-metragens, escreveu dezenas de roteiros, para si e outros cineastas e também livros onde o mais festejado é “Truffaut-Hitchcock”, oriundo de muitas horas de entrevistas com o mestre do suspense, a quem o cineasta francês, junto com colegas do Cahiers, passou a dar o status de grande autor que merecia. Num texto-entrevista extraído do livro "O cinema segundo François Truffaut” (Textos Reunidos por Anne Gillain, Editora Nova Fronteira, 1988) suas idéias sobre o velho e o novo, podem ser assim sintetizadas:

“Os filmes dos jovens cineastas parecem bastante com quem os faz, pois são realizados em total liberdade. E realmente a liberdade é o único ponto que temos em comum. Há muito que os diretores franceses tinham perdido o hábito de escolher o assunto a ser filmado, isto é, uma concepção de filme que trouxesse dentro de si, algo que sentissem visceralmente, que existisse em suas cabeças. Ao se tornarem vedetes, os cineastas franceses passaram a ser muito solicitados. Então, passaram a escolher em função das propostas que recebiam.”

“Para nós, o importante é nossa maneira de ver a vida, é falar sobre o que conhecemos. À verdade estereotipada, marca do cinema francês, nós tentamos opor nossa própria verdade pessoal.”

De uma forma injusta, estas mesmas qualidades que Truffaut apontava nos filmes da chamada Nouvelle Vague foram por alguns críticos e cineastas (especialmente Jean-Luc Godard, para quem escreveu o argumento de “Acossado”) negadas para parte da obra de Truffaut, sendo que há até quem considere medíocre uma autêntica jóia sua que é “A Noite Americana” (1973), que chegou a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro, o que para muitos pode ser imperdoável, um atestado de rendição ao cinema mais comercial, esquecendo-se que até mesmo Bergman, Fellini, Vitório De Sica em altas doses de Oscars, também têm esta mancha em seus currículos... Críticos de prestígio como Jean-Claude Bernadet se equivocam quando afirmam que Claude Chabrol e Truffaut dão continuidade ao “cinema de qualidade” ao qual tinham se oposto. O mais amado dos diretores franceses morre em 1984 e nós, seus grandes admiradores ficamos privados da continuidade de uma obra que exalava lirismo 24 quadros por segundo.

Não é sem razão que Truffaut é tido como o cineasta que mais explorou o amor e suas várias circunstâncias em seus filmes. Dedicou muito amor às mulheres, aos livros, às crianças e por que não dizer aos seres humanos em geral? Aos seus personagens masculinos também é endereçado uma boa dose de afeto. Há o incrível e obstinado “O Homem Que Amava as Mulheres” (1977), tanto que acaba morrendo justamente por uma desatenção, ao ficar vidrado também na enfermeira que dele cuida. Mas Truffaut mostra-se também bastante carinhoso com este homem. No dilema “nem com você, nem sem você” de “A Mulher do Lado” (1981) levado a extremos, a balança emocional do cineasta não pende para nenhum dos amantes. E não se pode deixar de ressaltar o grande amor dedicado a Antoine Doinel, seu alter-ego, vivido com extraordinária química diretor-ator por Jean-Pierre Léaud em cinco filmes que já se tornaram clássicos do cinema, ainda que não sejam todos obras-primas.

“Os Incompreendidos” (1959) nos mostra o garoto de 12 anos, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud numa das mais belas e precisas interpretações do cinema já vistas para esta faixa etária) que mora com o pai não biológico Julien Doinel (Albert Rémy) e a mãe Gilbert Doinel (Claire Maurier). Antoine não suporta a indiferença dos pais, principalmente da mãe e a tirania do sistema de ensino que corrobora a idéia de Ingmar Bergman de que é estruturado na humilhação. Em casa afoga-se na leitura de Balzac e vai muito ao cinema, matando aula com seu amigo Petite Feuille (Guy Decomble), sendo que um dia chega a ver a mãe beijando um amante e esta se assusta com a presença inesperada e inconveniente do filho. Para justificar sua falta à aula chega a mentir que a mãe morreu. Descoberto é humilhado na frente de todos, como já havia acontecido antes. Dorme fora de casa numa gráfica. Os pais acabam reconduzindo-o à vida em família. Novamente humilhado na escola por ser acusado injustamente de ter plagiado Balzac (para o qual chegou até a criar um santuário num armário com vela acesa que provoca um pequeno incêndio, o que desta vez provocou a ira do pai e a contemporização da mãe), Antoine sai de casa, vai dormir escondido no apartamento de Petite Feuille. Um roubo mal sucedido de uma máquina de escrever do pai acaba conduzindo-o por iniciativa dos pais à prisão e depois a um reformatório.

O interrogatório de Antoine pela psicóloga, de forma ainda mais especial do que outras seqüências, nos mostra um jovem ator já plenamente maduro. Jean-Pierre Léaud se mostra bem jovem, um autêntico “bicho de câmera”. Seu riso malicioso quando ela pergunta se ele já dormiu com mulheres em “Os Incompreendidos” é um toque especial numa seqüência fantástica, onde sua condição perante a sociedade nos é desnudada. A fuga de Antoine do reformatório é antológica. Ele se esconde de um inspetor que o persegue. Depois corre... corre... Atinge o mar, vai em direção a ele, depois volta em direção a nós espectadores e a câmera para, seu olhar nos fixa. Tudo se passa como se nós fôssemos convidados a dar uma solução de continuidade para sua vida. Truffaut nos mostrou o que podia e nós, o que temos com aquela história, parece nos perguntar. Na vida real, fora da vivência de seu alter-ego, Truffaut encontrou André Bazin a quem é dedicado o filme. Mas e se ele não tivesse encontrado esse protetor, ficaríamos nós sem a obra desse gênio do cinema? Será que existem Truffauts por aí que ganharam a Rua da Amargura definitivamente? O filme é semi-autobiográfico, pois não se trata ali da transcrição literal dos eventos vividos por Truffaut. Este plano final surpreendente é um desafio lançado a nós para que especulemos sobre o que será a vida de Doinel doravante e um chamado à nossa responsabilidade.

“Antoine e Colette” é um episódio de “Amor aos Vinte Anos” (1962) onde Antoine num concerto aborda finalmente Colette (Marie-France Pisier) que já conhece há algum tempo e dá um jeito de morar em frente à família dela, ficando mais intímo da mãe (Rosy Varte) e do padastro (François Darbon). Numa refeição com esta família aparecerá o namorado de Colette, uma surpresa que provoca a primeira grande desilusão amorosa de Doinel.

Em “Beijos Proibidos” (1968) Antoine sai do quartel onde servia, por ”inadequação de caráter”, sendo expulso. Arruma um emprego de vigia noturno de um hotel e depois um de detetive. Ao mesmo tempo em que flerta com Christine (Claude Jade), tendo bom relacionamento com os pais dela, um trabalho extra que recebe, dentre outras tarefas bizarras, mexe com seus sentimentos: um dono de sapataria, Sr. Tabard (Michael Lonsdale), quer saber o porquê de não ser amado por ninguém e procurou a agência porque não quer saber de psicanalista. Antoine é infiltrado na loja e acaba se envolvendo com a mulher do cliente, Fabiane Tabard (Delphine Seyrig). Depois de um rápido flerte Antoine cai em si que deseja mesmo Christine. Namorando juntos num banco de rua terão a resposta para um intruso que os espiona hitchockniamente: está apaixonado por Christine e tem todo tempo do mundo para dedicar-lhe a vida.

Em “Antoine e Colette” e ”Beijos Proibidos” há uma constante que é importante ressaltar: Antoine não está em busca apenas de um grande amor, mas também de uma família, aquela que não teve e que gostaria de ter tido. De certa forma esta busca o atrapalhará na vida amorosa.

“Beijos Proibidos” começa com a cinemateca de Paris fechada e Christine vê cenas das lutas de maio de 1968 no final, antes que a televisão encrenque e ela tenha que chamar Doinel, depois de detetive trabalhando como técnico. O que se vê com clareza em “Os Sonhadores” (2003) de Bernardo Bertolucci, que é a demissão de Henri Langlois da diretoria da Cinemateca, os protestos e depois os movimentos nas ruas, aqui neste filme de Truffaut feito em 1968 nos é mostrado de forma bem elíptica. É uma forma de Truffaut afirmar o que sempre mostrou: os sentimentos humanos interessam-lhe muito mais que a política. Até mesmo em “O Último Metrô” (1980), onde se trata da resistência da classe teatral à ocupação nazista, as relações de amizade ou sentimentais entre os personagens estão em primeiro plano.

“Domicílio Conjugal” (1970) nos mostra Antoine e Christine casados e logo tendo um filho, Alphonse. Ela dá aula de violino. Ele trabalha de início tingindo flores e depois com manobras de pequenos petroleiros para uma maquete de uma empresa. Lá ele conhece e se encanta por Kyoto (Hiroko Berghauer), promovendo a sua separação.

Nesta obra como na anterior há também um homem misterioso que volta e meia se aproxima deles. Mas agora bem antes do fim se revela. É um comediante de televisão e nela é visto imitando a voz em off de “O Ano Passado em Marienbad“ de Alain Resnais. Depois é reconhecido na rua e o temor instalado se dissipa. Mais uma vez Truffaut brincou como Hitchcock.

Em “Domicílio Conjugal” depois de alguma discussão a separação passa a ser amigável. Antoine está escrevendo um livro. Há então uma longa e belíssima seqüência que vai do apartamento até a rua. Ele tenta beijá-la na escada, ela não permite. Na rua, Christine a propósito do trabalho dele como escritor, comenta que não entende bem de arte, mas considera que esta não pode ser um ajuste de contas com o passado. Ele diz que está se esforçando para que assim não seja. Ela reconhecendo que tem baixa auto-estima diz que o ama. Ele fala da chatice que está sua vida com a japonesa. No carro ela pede um beijo. Ele diz que ela é como irmã, como mãe para ele (confirmando a busca que ele tem por uma família). Ela diz que a ele faltou, a ter como sua mulher e o carro vai embora depois deste diagnóstico preciso.

No restaurante com Kioto à mesa, ele a todo o momento vai telefonar para a mulher comentando que não está suportando mais a companhia dessa pessoa estranha que a japonesa revelou ser: não suporta mais seus insistentes sorrisos. Chega um ponto em que ao voltar à mesa encontra uma mensagem de adeus bem simples, definitiva, com um necessário baixo calão. A partir daí os protagonistas de “Domicílio Conjugal” reatam a relação. O olhar duvidoso de um vizinho ao conversar com a mulher a respeito deste idílio vai colocar em dúvida a permanência dessa união.

Em “O Amor em Fuga” (1978) Antoine está com 35 anos e o vemos logo de início namorando Sabine (Dorothée). Saberemos depois que o incorrigível namorador chegou até ela através de uma foto despedaçada que recompôs e pela qual se apaixonou, depois que alguém numa cabine telefônica rompeu com ela a ponto de rasgar a foto. Está tão aparvalhado que sua mulher Christine (Claude Jade) é quem o avisa que o dia e a hora da assinatura do divórcio amigável chegaram. A advogada Colette (Marie-France Pisier) o reconhece. Ela compra o romance que Antoine escreveu. Numa viagem de trem Antoine e Collete relembram fatos do passado e discutem sobre o livro: o que ele teria de real ou de ficção. Desafiado a narrar um romance que não tenha nada a ver com sua vida ele mente, contando a história da foto como se ela se referisse a outra pessoa. Mas no livro seu que ela lê, ele escreve que por coincidência a família de Collete veio morar perto dele. Ela lembra que ele está mentindo: foi ele que veio morar perto deles. São os ardis da ficção de cunho autobiográfico que deve haver em muito mais alto grau em “Os Incompreendidos”, mesmo sendo a obra mais obviamente próxima do que Truffaut viveu, mas que tem uma autonomia artística forte. Se terminássemos a história com o encontro com alguém com a generosidade de André Bazin, o filme não teria a força que tem. Em “Oliver Twist” (2005) de Roman Polanski (para ficarmos nesta última e subestimada versão para o cinema deste clássico de Charles Dickens) o protagonista encontra um senhor rico que lhe dá ajuda. Mas este encontro se dá logo no primeiro terço do filme e está sujeito a recuos e mal-entendidos.

O jogo fascinante proposto por “O Amor em Fuga” é que além de flahsbacks da relação mais recente de Antoine e Christine temos aqueles que são cenas extraídas de “Beijos Proibidos” e “Domicílio Conjugal”, quando eles eram bem mais jovens. Estas seqüências aliadas às pertencentes ao curta-metragem “Antoine e Colette” e a “Os Incompreendidos” trazem uma graciosa originalidade ao filme. A estrutura da obra é tal que se não conhecemos os filmes originais não há perda maior de sentido, mas se já os tivermos vistos, um grande prazer adicional teremos ao acompanhar as transformações por que passam os personagens.

Em “Os Incompreendidos” Antoine flagra sua mãe com um amante na rua, num belo beijo. Em “O Amor em Fuga” este homem o procurará no trabalho e depois de certo estranhamento se reconhecerão. Trata-se de Lucien (Julian Berthau). A idéia que Lucien nos passa em “O amor em fuga” de que Antoine no fundo é muito parecido com a mãe faz sentido: ambos têm uma relação bastante conflituosa sobre o que é o amor a ponto de não amadurecerem e estarem sempre em busca de algo que não os satisfaz. O velho nos é apresentado como aquele que foi o amante mais importante da mãe de Antoine. Ele leva Doinel ao cemitério para visitar o túmulo da mãe. Quando do falecimento dela, Doinel estava preso no exército. Não se pode deixar de especular, extrapolar esta cena e enxergá-la como uma resolução para um possível drama que o próprio Truffaut poderia estar vivendo. Pode ter feito um ato de misericórdia e perdão através de sua arte.

“Os Incompreendidos” é a grande obra-prima deste conjunto de filmes sobre a saga de Antonie Doinel. Os demais são filmes de vários grandes momentos. “O Amor em Fuga” parte de uma idéia genial que é aproveitar o que já foi filmado de Doinel em outras fases de sua vida. O que é mostrado do passado mais distante tem um frescor, uma beleza que o que é filmado para o presente e passado recente de “O Amor em Fuga” se ressente.

Em “O Amor em Fuga” o retrato de Sabine todo rasgado e depois reconstituído é a representação do que as mulheres passaram a significar no imaginário do protagonista. Para quem o amor está em fuga, a mulher que procura está estilhaçada: no final do filme Sabine e Antoine se beijam num canto, como o casal que ouve a faixa “O Amor em Fuga” mais ao fundo na loja de disco. Antoine terá finalmente redescoberto o amor que lhe escapulia? Se Truffaut tivesse vivido mais, certamente nos brindaria com pelo menos mais um filme sobre este personagem tão fascinante: um dos maiores da História do Cinema.

Neste irregular, mas fascinante “O Amor em Fuga”, Collete é mostrada com a filha e o marido em “Beijos Roubados” encontrando-se casualmente com Doinel. Christine conta à advogada, mais uma da turma das ex-Doinel, conforme brincam elas, que soube deste encontro. A advogada diz que a filha morreu atropelada. Ela em flashback é vista em sua dor e desespero. Depois se separou do marido, não quis mais ter filhos e decidiu terminar o curso de Direito. Atualmente está sendo advogada de um cliente que matou o próprio filho. Este cliente tentou o suicídio e ela tem uma semana livre. O lado fatalista de Truffaut, mola mestra de alguns de seus filmes, comparece aqui.

Em “Beijos Proibidos” há o beijo que Antoine rouba de Christine na escada, segurando bem seu pescoço. Em “Domicilio Conjugal” é ela quem rouba o beijo dele, neste mesmo local. Estas duas seqüências de uma beleza sui generis são evocadas em “O Amor em Fuga” em reminiscências dela, quando estão a caminho da assinatura do divórcio.

Em “O Amor em Fuga”, Antoine é flagrado traindo a mulher com uma aluna dela. A mulher conta depois à Colette que ele alegou que foi por causa da amante ter colocado uma capa em seu livro. O personagem é capaz disso mesmo. Não há cinismo aí. Criando um personagem já adulto, sem nenhum machismo, com muita sensibilidade, inquietação, um romantismo gauche, uma melancolia disfarçada de bom humor, docemente revoltado, Jean-Pierre Léaud tem uma afinidade extraordinária com a câmera de Truffaut. Este encontro dos dois é algo mágico. Não poderiam imaginar que fariam tantos filmes juntos depois do trabalho em “Os Incompreendidos”. Jean Pierre com seu personagem nos passa muito bem uma idéia admitida por Truffaut: “eu sou um romântico que desconfia do romantismo”.

Nas obras de Truffaut costumamos ter um distanciamento do que é narrado, mas paradoxalmente não deixa de ser algo sempre caloroso. É um clichê crítico, mas nunca é demais repetir. Nenhum cineasta que eu conheça colocou tanto sua afetividade, seu coração nos filmes que fez. Não é à toa que Spielberg o chamou para ser o cientista que vai se comunicar com os extraterrestres em “Contatos Imediatos do Primeiro Grau”. Esta alquimia entre distanciamento e sentimentos aflorados sem frieza é realizada à perfeição por Truffaut

Seus filmes com Doinel começam e já temos de imediato a sensação de que é a vida que está continuando, fruto das ações de seus personagens e dos mistérios dos encontros. De imediato instala-se uma familiaridade mesmo para quem não tenha visto os outros filmes.

Nos trabalhos com Antoine se fala muito de amor, mas se tivesse que escolher apenas uma obra de Truffaut em sua filmografia, onde este tema reinasse soberano, seria a obra-prima “Duas Inglesas e o Amor” (1971). É aonde Truffaut vai mais fundo na abordagem deste sentimento e suas intermitências. O triângulo amoroso composto por Claude (Jean-Pierre Léaud), Anne e Muriel atinge nuances que a saga Doinel inteira não logra. “Os Incompreendidos” também é uma obra prima, mas o que nos mostra é a falta de amor na infância/pré- adolescência no meio familiar e escolar. Este meu culto particular de forma alguma desmerece o empenho dos filmes expostos neste texto, mas sim nos alerta para o quão excepcional “Duas Inglesas e o Amor” é.

Vistas em 2010 numa era em que há o mercado de partes do corpo humano na Internet como iscas para um relacionamento supostamente amoroso, as inquietações, angústias e hesitações de Doinel podem parecer naifs, mas não são. Truffaut vai fundo na questão amor/sexo, seus embricamentos, intercâmbios e de tal forma, que atinge camadas de afetividade do ser humano que podem estar soterradas. Este rendez-vous virtual de hoje é o equivalente dos encontros com as prostitutas de “Beijos Proibidos” e “Domicílio Conjugal”: é o sexo fácil sem amor, com raras exceções. Não vai aqui nenhuma apreciação de ordem moralista ou ética, mas a constatação de algo que pode representar uma banalização perigosa dos afetos, ferindo as pessoas mais do que promovendo autênticos e valiosos encontros, em mais uma conquista da modernidade que se transforma num tiro pela culatra. Doinel quer ir muito mais além destes encontros fortuitos. Os que estão estacionados na virtualidade não têm a coragem que Doinel mesmo com suas errâncias apresenta. Daí o grande interesse da saga, sua atualidade e perenidade.

Ps Este texto foi publicado originalmente no jornal eletrônico Montblãat. Aqui surge com cortes, correções e acréscimos.

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Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 27 de julho de 2010

O Amor dos "Fora-da-Lei" do Desejo Hegemônico em Tempos de Cólera







Atenção: Texto com spoilers, ou seja, detalhes fundamentais dos filmes “O Segredo de Brokeback Mountain”,“Capote” e “Crash-No Limite” são antecipados.

O título em português acrescenta o clichê ridículo “O segredo de....”. No texto sobre o filme, este será simplesmente “Brokeback Mountain”, título original.

O Amor dos "Fora-da-Lei" do Desejo Hegemônico em Tempos de Cólera

Ennis Del Mar (Heath Ledger) em "Brokeback Mountain"(EUA/ Canadá/2005) de Ang Lee, em sua infância foi levado pelo pai para ver um "homem que vivia com outro homem" assassinado da forma mais bárbara possível, com estraçalhamento até do pênis ( seu pai provavelmente havia tomado parte no justiçamento). Quando a mulher (Anne Hathaway) de Jack Twist (Jack Gyllenhaal) narra a morte do marido por telefone, que "teria se afogado no próprio sangue" antes de ser socorrido num suposto acidente, vem imediatamente à mente de Ennis, flashs da violência que o amante sofreu e que é análoga à que imagina que aconteceu na sua infância, cuja conseqüência final foi a hedionda cena traumática que presenciou. A ficha cai: seu parceiro da montanha foi assassinado, a mulher dele está mentindo. No encontro com os pais de Jack, Ennis toma conhecimento que o amante freqüentava o sítio deles com um amigo. O sonho que Jack não conseguiu realizar com Ennis, com amor, tentou desesperadamente com outro. Talvez com aquele "bonitão" casado que se mostrou entediado com a mulher no baile e sentado junto a Jack lembrou que tinha um lugar acolhedor. Quem pode afirmar ou negar?

Se Ennis tivesse vencido seus traumas e resistências (homofobia internalizada) e decidido acompanhar Jack em seu projeto "de terem um lugar só deles" o desfecho não teria sido muito diferente. A diferença é que provavelmente os dois morreriam e não só Jack, ao menos que tivessem se deslocado para bem longe do Wyoming( onde se passa o filme), num lugar que não seria um rancho mas menos homofóbico, algo que estava fora das possibilidades dos dois amantes.

Com todo este quadro de eventos bastante pertinente para o contexto hiper-repressor do Wyoming, há quem ainda desqualifique o trabalho como mais um "martirológio gay". Um ditado popular é a melhor resposta: “pimenta nos olhos dos outros é refresco...”.

Há quem aponte no trabalho de Ang Lee mais um retrato clichê de gays infelizes ("como se não houvesse gays felizes no mundo"). Basta aqui lembrar Jorge Coli na Folha de São Paulo: dois caubóis vivendo felizes num rancho dificilmente geram um bom filme; seria mais um conto da carochinha... E mais: os acontecimentos do filme evoluem de acordo com uma percepção clássica de se fazer cinema, onde um jogo de xadrez emocional intrincado vai sendo construído de acordo com os lances dos personagens ( há uma coerência dramatúrgica interna possante).

Há ainda quem de uma forma mais sofisticada considera o caubói Ennis Del Mar, reduzido à solidão e à pobreza do trailer onde passa a morar, "sem armas e sem vilões a combater, representando o tempo que já passou", um homem que sem projeto, "ilustra o arcaísmo desse pensamento que de certo modo continua a pautar o ideário norte-americano, em especial o governo Bush". Trocando em miúdos: quem seria uma representação da "vítima" de um estado de coisas passa a ser "algoz"... Saindo do tema da homossexualidade, é como se o caixeiro viajante de Arthur Miller em “A Morte do Caixeiro Viajante”, iludido com o sonho americano tornado pesadelo, fosse o único responsável por sua encruzilhada existencial e não uma sociedade forjada em mitos de pés de barro. Para quem quiser personagens realmente emblemáticos desse pensamento arcaico que em sua evolução criou este nosso mundo caduco e truculento, é essencial uma visita a "As Pequenas Raposas", peça de Lilliam Hellman (transformada no filme “Pérfida” de William Wyler com Bette Davies), onde uma elite americana do algodão (os Hubbards), atormentada em trapaças mútuas e fracas resistências, em 1900, à sua maneira choca seu “ovo da serpente” (“Há centenas de Hubbars sentados em salas como esta, em todo o país. Não se chamam Hubbard, mas são todos Hubbards. Eles vão mandar e conduzir o país algum dia. E nós iremos com eles.”- comenta o mais velho, o solteirão Ben).

Ang Lee não cansa de enfatizar que seu filme no fundo é uma grande história de amor. Não deixa de ser verdade: é uma das mais belas histórias de amor do cinema. Mas o que não se pode afirmar é que tanto faz: que poderíamos imaginar personagens heterossexuais naquela situação. Uma idéia capenga, pois todo o roteiro é estruturado de forma a nos mostrar a evolução de uma história de amor ENTRE HOMENS, que só tem os desdobramentos que tem porque são homens! Em “A Filha de Ryan”, grande épico subestimado de David Lean, a adúltera Rosy vivida por Sarah Miles é apedrejada, mas os requintes de crueldade contra Rosy, não se comparam aos sofridos por Jack Twist, que as reminiscências de Ennis nos fazem prever, dentre outras evoluções da narrativa.

A explosão de Alma (Michelle Williams) na cozinha com Ennis, estando o novo marido na sala, depois de anos contida, não teria a força que tem se o flagra silencioso que deu não tivesse sido num beijo de seu então marido com outro homem.

Para quem se incomoda com a idéia de filmes que abordam ao seu modo a temática do homoerotismo pode-se apelar para álibis como: “Morte em Veneza” é um filme sobre a busca inatingível do belo; “O Banquete de Casamento” é uma visão questionadora de laços de família; “Traídos Pelo Desejo” é uma obra sobre a persistência de caráter (no caso sob o signo de Escorpião); “Maurice” é um retrato do puritanismo e do preconceito; “Querelle” é um ritualístico jogo de transgressões e quebra de tabus; “A Faca na Água” é um retângulo amoroso (dois homens, uma mulher e uma faca....); “Priscila, a Rainha do Deserto” é uma ode bem humorada à diversidade; “Da Vida das Marionetes” é um passeio em abismos da alma humana; “A Lei do Desejo” é uma temporada no inferno do desejo; “Trinta Anos Esta Noite” (um filme onde a sexualidade do protagonista é um mistério) é uma visão de uma situação limite que é o suicídio; “Deuses e Monstros” é um retrato dos fantasmas da solidão na velhice; “Pacto Sinistro” é uma história de obsessão psicótica; “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant” é um agudo diagnóstico sobre o poder corruptivo do dinheiro; “Plata Quemada” é uma visão radical da marginalidade; “Memórias de um Espião” é uma história suis generis de vingança; “O Beijo da Mulher Aranha” é uma celebração do poder da imaginação; “Madame Satã” é uma poética apreensão das cicatrizes da exclusão; “Aimée e Jaguar” é um cântico do sacrifício humano; “Mulheres Apaixonadas” é um irônico inventário da alienação que as mulheres podem ter em relação aos mais íntimos sentimentos dos homens; “Coronel Redl” é uma obra sobre a ruína humana em pactos mefistofélicos; “Festim Diabólico” é um suspense com condimentos da perversidade reativa de minorias discriminadas; “O Pecado de Todos Nós” é um painel de desejos subterrâneos num ambiente tradicionalmente machista (que é o militar), etc., etc. Mas com “Brokeback Mountain” não tem jeito, pois temos aqui um close temático muito forte: UMA GRANDE HISTÓRIA DE AMOR ENTRE DOIS HOMENS!

Agora que vivemos a síndrome da crítica fácil a qualquer vestígio de “correção política” fica temeroso lembrar que naquela sociedade de Wyoming, tanto Jack quanto Ennis são de certo modo párias, que vivem de subempregos. O trabalho que os caubóis arrumam como pastores de ovelhas não passa disso. Ennis irá depois trabalhar numa fazenda que não é dele e para a qual tem às vezes de correr, deixando até, apressadamente, os filhos com a mulher que trabalha num supermercado. Jack depois de ganhar uns trocados como peão de rodeios acaba num quase que “golpe do baú”: casa-se com uma mulher rica e argentária, com a qual se relaciona sexualmente com a mesma emoção como se estivesse conversando por telefone, segundo suas próprias palavras. É bom reiterar que fossem outra as condições econômicas dos personagens, eles poderiam com o tempo escapulir daquela arapuca hiper-conservadora do Wyoming e procurar sua “Brokeback Mountain” no dia a dia vivido em regiões de mentalidades tolerantes ( ou menos intolerantes), pois se passam vinte anos desde que se conheceram em 1963, o que não significaria nenhum mar de rosas, mas inegavelmente uma sensível melhora.

Há quem considere “Capote” (EUA/2006) de Bennett Miller, um filme muito mais importante para os que querem ver o movimento gay avançar, pois Truman Capote ( Philiph Seymour Hofman, em extraordinário desempenho) é mostrado com toda sua exuberância intelectual e o fato de ser gay acaba não tendo importância, o que em “Brokeback Mountain” é fundamental. Nada mais falacioso. Capote nos é mostrado como um gay um tanto perverso, sibilino, melífluo, capaz de camuflar sentimentos sórdidos com ar de candura para conseguir seus objetivos, ainda que estes consistam em construir uma obra de arte definitiva. Sua homossexualidade não nos é mais mostrada, por pudor e estratégia do roteiro, mas fica no ar se a identificação de Truman com o criminoso Perry é apenas uma questão de que eles tiveram infância e adolescência com dissabores análogos, pois “os dois nasceram na mesma casa, mas enquanto Truman saiu pela porta da frente, Perry saiu pela porta dos fundos”...ou se há realmente uma atração homoerótica entre os dois. Os caubóis, entretanto, com seu amor genuíno, ainda que desprovidos de um aparato intelectual que seja invejável, vivem uma emoção intensa que talvez o auto-destrutivo Capote nunca tenha experimentado. Desnecessário então concluir que personagens têm mais a dizer às questões que os movimentos gays têm levantando mundo afora...

“Brokeback Mountain” está longe de ser um western tradicional, mas no plano simbólico ( com as vestimentas que os personagens utilizam, a exploração das paisagens em grandes panorâmicas, o registro de uma região onde leis do desejo podem ser “fora-da-lei” hegemônica, onde o outro que incomoda pode ser eliminado com a mesma crueldade com que um olhar atravessado num saloon já provoca um tiro na cara, conforme visto em alguns faroestes, etc.) não deixa também de ser western. O mito do caubói machão já foi desconstruído de forma sutil em alguns westerns. Mas insinuações como “mostra o seu revólver que eu mostro o meu” é uma brincadeira perto do que vemos em “Brokeback Mountain”. Assim se a expressão “western gay” não nos ajuda a entender de imediato o filme, pois ele é muito mais complexo do que isso, não deixa de ser uma síntese interessante: não é nenhum absurdo.

Há quem considere uma “patada de elefante” a cena em que Ennis se esforça para fazer sexo anal com a esposa. Mas o que está em jogo aqui é a necessidade que Ennis passa a ter de reviver, ainda que de forma quase que patética, os jogos amorosos que manteve com o parceiro na temporada de trabalho na montanha. Não se trata então de falta de sutileza, mas de uma construção visual de um estado de espírito. Mas será que há papéis sexuais de “ativo” e “passivo” já definidos para toda as temporadas na montanha durante anos? O que sabemos das relações íntimas dos dois neste período todo, depois da explicitação dos contactos iniciais? Nada. Desta forma quando Ennis ao final coloca sua camisa sobre o casaco do parceiro num cabide no guarda-roupa não está reiterando, de forma machista, que ele foi sempre o “ativo” da relação, conforme já especularam. Quando ele diz “eu prometo..” e interrompe a fala, pode estar querendo dizer, é que tem sim “um projeto de vida”: guardar eternamente dentro de si a memória dos momentos felizes que viveram na montanha. Não é simplesmente um casaco que está sendo coberto por uma camisa. É um ser que de uma forma desesperadamente doce tenta reter para si (o casaco coberto, simbolicamente, é o outro que morreu), o que lhe deu sentido à existência. Não foi um amor vivido com a plenitude que poderia ter tido, mas foi um sentimento que ainda preencherá o restante de seus dias. O livro que Jack Twist escreveu no coração de Ennis é uma obra-prima que poderá salvá-lo da autodestruição. A fortuna existencial de Ennis é muito mais poderosa que a atingida pelo aclamado Capote com o sucesso de “A Sangue Frio” e sua conseqüente autodissipação. Capote começa a morrer quando o criminoso Perry é enforcado. Ennis tem na recordação proustiana dos momentos felizes que viveram na montanha, uma possível alavanca para o enfrentamento dos segundos, minutos, horas, dias, anos da “vida que segue”....

De acordo com a matéria “Conservadores americanos queixam-se de guinada à esquerda do Oscar” (AFP-7/03/2006) temos:

"Syriana - A Indústria do Petróleo", filme que rendeu a Clooney o Oscar e que critica as corporações e a intrincada geopolítica do petróleo, não foi precisamente o que mais causou escândalo nos rincões dos Estados Unidos. Esta honra correspondeu a "O Segredo de Brokeback Mountain", sobre o amor homossexual entre dois caubóis.

Segundo os conservadores, esta é uma história que os americanos do centro do país provavelmente nunca chegarão a ver.”

"Não acho que os Estados Unidos estejam prontos para uma história de amor como esta", disse há pouco Peter Sprigg, vice-presidente de política do FRC (Conselho de Investigação Familiar) ao jornal Los Angeles Times.”

Num país em que cenas de violências explícitas no cinema sempre foram muito mais filmadas sem pudor e toleradas do que cenas de sexo (como é puritano o considerado tórrido “Corpos Ardentes” de Lawrence Kasdan!; neste sentido o cinema brasileiro mesmo com muitas vulgaridades, dá um banho no cinema americano) não é surpreendente que um filme que nos mostra homens viris em ato de sodomia, se beijando e com olhares e gestos de carinho (sendo que as cenas de violência são mostradas de forma elíptica), tenha assustado mais Hollywood e os acadêmicos que deram o prêmio de melhor filme a “Crash-No Limite”, onde há roubos, assassinatos, explosões de carro, acidentes, racismos de todos os matizes e etnias, constrangimentos psicológicos e onde a cena erótica mais ousada é uma apalpadela safada que um policial branco (que depois se mostrará um filho dedicado ao pai doente) faz numa revista a uma negra na presença do marido, suspeitos de um assalto (mais tarde este policial se redimirá salvando esta mulher de um acidente...)....Não se trata aqui de querer dar mais importância ao Oscar do que ele tem e mereceria, mas um filme distribuído mundialmente com a chancela de ”Oscar de melhor filme de 2005”, num mundo onde a homofobia grassa como uma pestilência, com a força e comunicabilidade que Ang Lee atinge em seu apogeu até aqui, seria muito bem vindo. Autoridades chinesas sinalizaram que não aprovarão a exibição do filme neste país que tem causado inveja pelas suas altas taxas de crescimento econômico, mas cuja mentalidade autoritária criada por uma gerontocracia, trata seus cidadãos como crianças. Mas os DVDs piratas pululam por lá. Há muita vida ainda latejando “do outro lado da cidade proibida”...

Não há saída para os movimentos de emancipações dos grupos GLBT do que a antropofagia oswaldiana: “comer o que vem de fora”, “mastigar” e devolver uma coisa nova. Noutras palavras: “corroer o sistema por dentro”. Uma operação arriscada sem dúvida. Mas é a única que nos permite sair da inação e do desespero. Ganhar o Oscar principal e usufruir de seu prestígio não seria uma atitude cínica, mas sim um ato legítimo de luta. Não veio. Paciência. Combateremos nem que seja nas sombras, como os heróis de “Spartacus” de Stanley Kubrick.

Histórias de gays em que a felicidade “corre solta” também podem ser criadas. Mas tem de ter um trabalho de dramaturgia muito poderoso por trás, pois não há obra de arte sem conflitos. A realidade, entretanto, teima em conspirar contra estas histórias coloridas conforme se pode depreender das notícias sobre violência homofóbica, seja contra militantes gays em Curitiba (com descaso e mais violência da polícia), o assassinato por um bando facínora de um gay de 14 anos em São Gonçalo, espancado até a morte, dentre vários casos que podem ser enumerados, nos imprimindo o desconfortável sentimento de que “o Wyoming é aqui e agora”....

Para os que porventura desconfiem que eu esteja “legislando em causa própria”, lembro que gosto muito de todos os filmes citados, principalmente as obras-primas “Morte em Veneza” e “Mulheres Apaixonadas” (esta adaptação sensacional de Ken Russel para o cinema do romance homônimo de D.H.Lawrence é o filme com maior tensão (homo) erótica que já assisti), mas ainda que não seja um espectador exemplar das Mostras Mundo Gay do Festival do Rio de Janeiro e da Mostra da Diversidade Sexual (Mundo Mix), organizada por André Fisher anualmente, atrevo-me a dizer que, do que tenho visto, pouco tem me agradado. Ainda que tematicamente muitos deles sejam atraentes, os roteiros são precários e em termos estéticos propriamente ditos deixam muito a desejar*. Daí o espanto e o prazer quando surge uma obra como “Brokeback Mountain”, com sua pujança em todos os níveis e com uma aura de filme alternativo mainstream. Biscoito finíssimo para as massas. Aleluia!

Ps. Este texto foi publicado originalmente no jornal Montblãat, sendo feito então correções, cortes e acréscimos.

* Recentemente foram exibidos dois filmes do selo Festival Filmes que tratam de diferentes formas da questão homessexuais X adoção&convivência com menores de idade. Tanto “De Repente, Califórnia” (EUA/2007) de Jonah Markowitz, exibido em 2009, como “Patrik 1.5” (Suécia/2008) de Ella Lemhagen, exibido em 2010, são filmes descolados que tratam as relações homoeróticas de frente, sem culpas, apresentando argumentos interessantes. O problema é que estes filmes passam pelos conflitos envolvidos como quem anda rápido pelas brasas, ou seja, há uma decepcionante e redutora simplificação e as coisas se acertam de forma previsível e um tanto sem graça. Filmes como estes reforçam a excepcionalidade do trabalho de Ang Lee em “Brokeback Mountain” no que diz respeito a homoerotismo no cinema.

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Nelson Rodrigues de Souza

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Vertiginoso Castelo com Labirintos da Ética Humana/ Uma Viagem de Eastwood ao Outro que Mora no Inimigo: Um díptico de Clint Eastwoood







“A Conquista da Honra” de Clint Eastwood

Vertiginoso Castelo com Labirintos da Ética Humana

Uma das mais sangrentas e importantes batalhas da Segunda Guerra Mundial travou-se no Pacífico, na Ilha de Iwo Jima. O hasteamento da bandeira americana no Monte Surubachi em fevereiro de 1945 gerou uma das mais famosas fotos de todos os tempos, realizada por Joe Rosenthal da Agência Associated Press, premiada com o Pulitzer, onde se vê seis soldados, não só com grande apelo patriótico mas com inegável beleza estética. Um dos homens que hastearam a bandeira foi o enfermeiro da Marinha John Bradley. Como seu filho James Bradley cresceu com esta história na qual o pai mal queria tocar, após a morte deste, resolveu escrever junto com o jornalista Ron Powers o livro “A Conquista da Honra” (lançando no Brasil pela Ediouro), onde esmiúçam tanto os acontecimentos da batalha como uma história emblemática da cultura americana, pouco conhecida que é a da mitologia que envolve a bandeira hasteada. Para começar, o marco histórico foi outra bandeira hasteada antes. Um general a quis para si e outra foi fincada, com um enfermeiro e cinco fuzileiros navais. Foi uma foto deste outro momento, já digamos, com pathos um tanto forjado, que correu o mundo. O que também foi escondido na época é que a ilha ainda estava longe de ser conquistada, sendo que mais um mês de lutas ocorreu com baixas significativas dos dois lados, com três dos soldados que se constituíram na encarnação de uma gloriosa vitória fake morrendo depois. Em 40 dias de batalhas morreram por volta de 7000 soldados americanos e mais de 20000 soldados imperiais japoneses.

A paciência dos americanos com os esforços de guerra estava acabando. Os recursos para tal também. Uma forma encontrada para convencê-los a comprar bônus de guerra foi um circo midiático montado, onde os três soldados sobreviventes, vinculados à foto famosa, que insuflava patriotismo, percorreram os EUA. O diretor Steven Spielberg detinha os direitos autorais da obra desmistificadora de James&Ron. Num encontro com Clint Eastwood ofereceu-lhe o projeto enquanto diretor e reservou para si o papel de co-produtor. Uma decisão sábia, pois as histórias que “A Conquista da Honra” (EUA/2006) nos conta se apóiam em sofisticadas camadas de flashbacks e flashforwards, numa direção de arte extraordinária, batalhas de intenso realismo filmadas em sépia nos lembrando um mundo já histórico, cuidados de produção que remetem ao “O Resgate do Soldado Ryan” do próprio Spielberg e principalmente num aprofundado carinho por personagens marginais da cultura americana bem como numa corajosa desmistificação de tabus patrióticos. Estes principais elementos combinados estão mais próximos do cinema que Clint Eastwood tem praticado do que do seu poderoso co-produtor.

O enfermeiro John “Doc” Bradley (Ryan Phillipe), o fuzileiro naval de origem indígena Ira Hayes (Adam Beach) e o fuzileiro Rene Gagnon (Jesse Bradford) reagem de forma diversa à missão que recebem de fazer marketing da suposta heroicidade estampada na foto. John é mais discreto. René que a rigor não lutou, pois era um mensageiro, é bonitão e vaidoso e é o que procura tirar proveito de sua celebrização instantânea. Ira sente uma culpa enorme por sentir que os verdadeiros heróis não estão ali, ao mesmo tempo muita dor pelos companheiros perdidos e pelas atrocidades que teve que praticar. É em Ira, descendente de índios massacrados pelos colonizadores que a dor da guerra bate mais forte e para suportar a maratona de hipocrisias oficiais tem de se embebedar.

Numa cerimônia com os três soldados, sorvetes com a forma da bandeira hasteada com os seis heróis são oferecidos. Ao perguntarem a Ira se ele quer creme de morango ou chocolate ele prefere o primeiro. O morango sobre o sorvete evoca sangue derramado. Um fhashback de situações árduas da guerra irrompe na narrativa. À medida que os soldados sobem num monte de papel maché, em que se mimetiza o grande feito do hasteamento, em um estádio lotado, cada um ao seu modo vai se lembrando dos companheiros perdidos e de cenas cruas que presenciaram. Em suas idas e voltas no tempo, o filme exige uma atenção não rotineira do espectador. A base da narrativa do filme vem das pesquisas que o filho de John Bradley, James, faz para entender o que de fato aconteceu com o pai. Desta forma, como bem observou Ricardo Calil no antigo blog Olha Só-No Mínimo, há uma evocação de “Cidadão Kane” de Orson Welles onde o Rosebud pesquisado, o qual se tenta decifrar, é a foto e o tempo narrativo é fragmentado ao sabor de evocações com afinidades eletivas. Calil destaca que, como na obra-prima de Orson Welles uma aura de mistério será sempre incontornável.

Em “O Homem que Matou o Facínora” (EUA/1962), uma das grandes obras primas de John Ford, a história da morte do bandido Liberty Valence (Lee Marvin), da ascensão profissional do advogado Ranson Stoddard (James Stewart) e sua disputa amorosa com o caubói enigmático Tom Doniphon ( John Waune) por Hallie (Vera Miles), se dá num contexto em que Ranson só acredita no poder das leis e Tom não acredita que se possa dispensar do poder das armas naquela cidade Shinbone, do Velho Oeste, ameaçada constantemente por Liberty, ainda muito longe de representar um marco civilizatório. Uma frase antológica do desfecho do filme possui diversas conotações: “Quando a lenda é mais forte que a verdade, imprima-se a lenda”. No filme de Ford, não há nenhum vestígio de cinismo nesta colocação. É uma constatação dos fatos ocorridos, suas repercussões e uma forma em que justiça se fez por vias transversas. A frase de certa forma pode ser também interpretada, como a essência da operação de criação das obras de arte cinematográficas de ficção. Este passo que vai da verdade estrita à lenda pode ser tido como uma transposição poética. Mimetizar simplesmente a realidade não é função da arte (pelo menos da ficção). Mesmo o neo-realismo italiano se nutria de invenções. Fellini, já distante do movimento que ajudou a criar, confessou: “Minto, mas sou sincero”. Entretanto, em “A Conquista da Honra” esta frase possui ainda outra conotação.

A farsa montada em torno da suposta força patriótica da bandeira, desnudada pelo filme, é uma lenda que se imprime em detrimento da verdade, com muito cinismo. Um dos sintomas eloqüentes disto é o racismo contra o índio Ira que volta e meia dá as caras até mesmo por parte de seus superiores que o constrangem a se exibir como o herói que ele não se enxerga junto a seus dois companheiros. O destino dos três ainda vai tornar mais crítico a ética da criação desta lenda. Com sua narrativa clássica, mas ao mesmo tempo moderna, Eatwood dialoga de uma forma não imediata e melancólica com o clássico de John Ford.

Conforme operação também vista, por exemplo, no pouco visto mas muito bom “Crime Verdadeiro (EUA/1999), nos belíssimos e celebrados “Os Imperdoáveis” (EUA/1992), “Sobre Meninos e Lobos” (EUA/2003) e no magistral “Menina de Ouro” (EUA/2004), Clint Eastwood em “A Conquista da Honra” é tremendamente solidário com seus personagens de certo modo marginais numa sociedade violenta e hierarquizada e não os demoniza, por mais desvios da ética dominante que eles cometam. A descontrução do mito da bandeira que se prestou a patriotadas está clara no filme. Neste sentido ganha paralelos com o que foi feito nos EUA em que “Bush filho”, ainda queria mandar milhares de soldados americanos ao Iraque, mesmo que esta operação tenha se mostrado um grande equívoco, uma guerra que nunca deveria ter começado. Mas o filme não se reduz a isso. É muito mais complexo. Eastwood não está evocando algo como a loucura da guerra do Vietnã como os cáusticos Francis Ford Coppolla e Stanley Kubrick nas obras-primas “Apocalipse Now” e “Nascido para Matar” respectivamente, para nos falar da loucura de todas as guerras. Por mais que nos mostre de certa forma estes vetores, não glamurizando em nenhum momento a guerra, realçando todo o inferno a que são submetidos os combatentes que perdem a vida na flor da idade, há um tom carinhoso ao mostrar as agruras e os esforços dos soldados, sem os configurar como cínicos, o que para um olhar desatento pode soar como belicismo, mas que é a rigor, uma forma de homenagear aqueles que foram peões num tabuleiro de xadrez complexo em que os que ditam seus destinos estão seguros em seus bunkers.

Tanto o olhar de Eastwood é generoso para os que participaram da batalha nesta ilha sulforosa, tradução de seu nome, que este extraordinário diretor teve a idéia de rodar também, formando um díptico, “Cartas de Iwo Jima”, uma versão da mesma luta, agora com atores japoneses, em japonês ( Clint dirigiu com um intérprete) para mostrar o ponto de vista do inimigo. É este filme, que angariou melhor fortuna crítica, tendo recebido o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, alguns prêmios de associações de críticos com melhor filme de 2006 e concorreu ao Oscar de Melhor Filme e Diretor. “A Conquista da Honra” concorreu só a dois prêmios técnicos. Uma flagrante injustiça, pois se trata aqui de um díptico extraordinário. Clint Eastwood com 76 anos na época está cada vez melhor enquanto cineasta. Com “A Conquista da Honra” constrói mais um castelo cinematográfico, onde o ser humano se vê mergulhado em labirintos éticos. Uma obra-prima do cinema contemporâneo a ser partilhada com o público, com grande emoção, desde o início em que vemos um soldado correndo, até o final dos letreiros de apresentação.

Ps. O título ideal para o filme no Brasil deveria ser a tradução literal “Bandeiras de Nossos Pais” (“Flags of Our Fathers”). “A Conquista da Honra” traz um tom triunfalista que o filme não tem.

“Cartas de Iwo Jima” de Clint Eastwood

Uma Viagem de Eastwood ao Outro que Mora no Inimigo

Em “A Conquista da Honra” a foto histórica de Joe Rosenthal, com o hasteamento da bandeira americana no Monte Suribachi de Iwo Jima, desencadeava uma discussão sobre a verdade do que se considera autêntico heroísmo, por trás de um festival midiático montado por todo EUA para vender bônus de guerra. Em “Cartas de Iwo Jima” (EUA/2006), filme complementar de Clint Eastwood, rodado simultaneamente, numa façanha sem precedentes na história do cinema americano dentre os grandes autores, temos uma maior concentração na guerra propriamente dita, só que vista pelo lado das desventuras dos japoneses. Não se pode dizer, a rigor, que seja uma visão japonesa do conflito de Iwo Jima, pois temos um diretor americano à frente de um projeto que surgiu de um argumento de Paul Haggis e Iris Yamashita, com roteiro desta última. Mas é inegável a generosa tentativa, lograda com louvor, de entender o universo do outro com o qual os americanos lutaram. O confronto com cartas do General Tadamichi Kuribayashi à sua mulher, recentemente descobertas em escavações, publicadas em livro, foram o estopim definitivo para a realização da obra.

Desta vez temos um filme que se estrutura com pausas em cartas que oficiais e demais patentes japoneses mandavam à suas famílias, quando estavam envolvidos num conflito do qual sabiam que tinham pouca ou nenhuma chance de vitória. O que podia ser feito e aconteceu, foi dificultar ao máximo a vitória dos americanos, estendendo os combates por 40 dias. O filme começa em 2005 quando cientistas japoneses perscrutando cavernas na Ilha de Iwo Jima, com canhões e armas enferrujados do lado de fora, descobrem algo enterrado. Não será difícil ao espectador imaginar o que seja. A emoção se mantém mesmo assim forte. O filme recua no tempo.

Em junho de 1944 chega à ilha de Iwo Jima o general Kuribayashi (Ken Watanabe) que tinha sido adido militar nos EUA e conhecia bem o inimigo com o qual se defrontaria como comandante geral nas operações na ilha. De cara descarta a idéia de escavar trincheiras na praia e investe na construção de ligações entre cavernas, de onde surpreenderiam os americanos. Suas ações tentam a se pautar pela moderação. O jovem padeiro Saigo (Kazunari Niromyia) que foi para a guerra sem convicções e forçado, com sua lúcida covardia diante de um espírito guerreiro imperial que chega a encarar o suicídio coletivo diante da derrota iminente como uma honra, é um forte contraponto ao tenente Ito (Shidou Nakamura), defensor implacável destes ideais. O tenente coronel, Barão Takeishi Nishi (Tsuyoshi Ihara), que conquistou uma medalha de hipismo nas Olimpíadas de Los Angeles em 1932 é um outro estrategista moderado. O melancólico soldado Shimizu (Ryo Kase) é tido como um espião.

Em 19 de fevereiro de 1945 ocorre o desembarque dos americanos e cenas vistas em “A Conquista da Honra” passam agora a serem mostradas por outros pontos de vista. Daí a força extraordinária deste díptico único no Cinema Contemporâneo. Os suprimentos dos japoneses vão cada vez mais se tornando escassos e as ajudas externas desaparecem, mas instigados por um código de honra imperial que a nós ocidentais soa estranho, vão de modo geral às últimas conseqüências, estoicamente. O curioso e fascinante é que nas cartas que mandam aos seus familiares, independentemente da patente, atos cotidiano é que são ressaltados. Uma das mais belas seqüências se dá quando um jovem soldado, um prisioneiro americano bastante ferido capturado, tem uma carta sua lida e todos se dão conta que em essência os que podem ser considerados os inimigos, são muito próximos. O que aprenderam sobre os inimigos, considerados antes de tudo covardes, estava deturpado por um fanatismo guerreiro.

Em “Glória Feita de Sangue” (EUA/1957) proibido na França durante vários anos, Stanley Kubrick nos mostra um vergonhoso episódio da primeira guerra mundial em que um general francês para receber mais insígnias conforme acordado com um superior, obriga seus soldados a enfrentaram uma missão suicida, sem chances de vitória na captura de um ponto estratégico, tido com o “Formigueiro”, de posse dos alemães. Os soldados avançam até certo limite. Ele por telefone obriga o capitão a atacar as próprias trincheiras, o que lhe é negado. Inconformado, em represália, acaba depois de negociações, para dar exemplo, levando três soldados à corte marcial onde são condenados à morte. Kubrick em econômicos 87 minutos, com mise en scène magnífica com é de seu estilo, com planos perfeitos, retrata os interesses, a hipocrisia e o sadismo que está por trás das ações de oficiais superiores. O coronel Dax (Kirk Douglas) tenta num tribunal precário e sumário advogar em nome das vítimas do poder que não enxerga limites. É um dos grandes filmes de guerra de todos os tempos.

Por que nos lembrarmos de “Glória Feita de Sangue” aqui? Porque por mais que os soldados de “Cartas de Iwo Jima” sejam levados a missões que de antemão sabe-se que são suicidas não há aqui o menor vestígio do arrivismo e cinismo desenfreados do primeiro filme, mesmo por parte do cruel e trágico tenente Ito, disposto até mesmo ao gesto de, com sua espada de samurai, cortar a cabeça de soldados que se recusam a morrer explodindo granadas no próprio corpo. O que move a todos, com as exceções como o padeiro, é um código de honra arraigado e particular, em defesa de sua pátria. Eastwood nos apresenta estes comportamentos todos, sem julgamentos e moralismos.

Nagisa Oshima no extraordinário “Furyo - Em Nome da Honra” (1983) tenta apreender em imagens e compreender as diferença entre Oriente e Ocidente, dentre outros temas, ao nos mostrar prisioneiros ingleses nas mãos de japoneses num campo de concentração na Ilha de Java em 1942, captando também as noções divergentes de honra entre os inimigos. Numa cena exemplar, Sargento G.Hara (Takeshi Kitano) diz ao Coronel Lawrence (Tom Conti), que em meio a muita violência, se tornou seu amigo, algo deste teor: “Por que é que você não se suicida?”. É pela admiração ao amigo que o sargento faz esta proposta. Não há nenhum cinismo.

“Cartas de Iwo Jima” é fotografado praticamente o tempo todo em sépia. O vermelho irrompe quando há sangue dos corpos feridos ou mutilados ou então o fogo atinge o corpo dos soldados. Sabemos de antemão que tudo ali pertence ao passado e a fotografia combina perfeitamente com o tom nostálgico pelas vidas que se foram e com o tom encantatório, pungente e simples das cartas.

Com uma estética totalmente diferente, com um colorido exuberante onde se realça a força da natureza, “Além da Linha Vermelha” (1998) de Terrence Malick nos mostra soldados americanos em batalhas contra os japoneses em Guadalcanal no Pacífico, em que a perda de vidas humanas em missões arriscadas é cada vez maior. O tom reflexivo e metafísico vem das lembranças e divagações dos soldados e oficiais americanos. Estes se angustiam por dúvidas cruciais: há algo além da tênue linha vermelha que separa a vida da morte e que sentido há em lutar? Já em “Cartas de Iwo Jima” a força da educação militar imperial, para o bem ou para o mal, move os japoneses, com algumas exceções, a acreditar que possa haver algo além que os recompensará. Isto não quer dizer que esta entrega não seja feita com incomensurável dor. O filme ressalta este aspecto com grande pungência.

Numa época em que a guerra do Iraque se arrasta há anos e há agora até a ameaça de conflitos com o Irã, dentre vários despropósitos associados, há uma terrível miopia dos EUA em relação ao que significa o outro, o que era acirrado na Era Bush e ainda tem seus tentáculos na era Obama em que o Afeganistão ainda está sob ocupação. Assim, por mais que Clint Eastwood diga em entrevistas que teria feito estes dois filmes, mesmo sem os acontecimentos decorrentes de 11 de setembro de 2001 (e há sinceridade no diretor), além das suas qualidades estéticas e humanas extraordinárias, “Cartas de Iwo Jima” e “A Conquista da Honra”, indiretamente comentam, inequivocamente, estes conflitos contemporâneos.

Ps1 Atentemos para uma parte da perspicaz crítica de Marcelo Lyra no site Cinequanon, “O Enxadrista Clint Eastwood”:

“O filme levanta um ponto delicado dessa guerra. Em vários momentos, os diálogos entre oficiais japoneses dão conta que o Japão estava praticamente derrotado. Num deles, fica claro que, depois da batalha de Mariana, o Japão praticamente não tinha mais navios para combate e a força aérea mal era suficiente para defender Tóquio. Ou seja, ao contrário do que a história oficial divulga, as bombas de Hiroshima e Nagasaki não eram fundamentais para a vitória. Talvez não fossem sequer necessárias. Fica no ar a sensação amarga de que os EUA aniquilaram as duas cidades para testar o poderio de seu novo brinquedinho nuclear ”

Algum especialista em estratégia militar teria alguns argumentos em contrário, a favor das bombas? Eu não tenho. Digamos por redução ao absurdo que uma delas fosse necessária. Pois então pra quê a outra?... Para mim o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki são acontecimentos tão terríveis e abomináveis quanto o Holocausto. O tribunal de Nuremberg de 1946/1947 foi manipulado e insuficiente, nos valendo de eufemismos.

Ps2 Estes dois textos foram publicados originalmente no jornal eletrônico Montlblãat. Agora surgem aqui com correções, cortes e acréscimos.

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Nelson Rodrigues de Souza