quinta-feira, 25 de junho de 2009

A Vida Enquanto Filme de Almodóvar





Da interessantíssima entrevista adiante dada por Almodóvar ao jornal El Pais reproduzida pela Folha, que nos permite conhecer um pouco do processo criativo do cineasta, destaco o seguinte trecho:

"ALMODÓVAR - A história do filho de Arthur Miller, assim como a do filho de Hemingway, me serve para falar desses pais poderosos e importantes que sufocam seus filhos.Na criação do personagem de Ray X, há ecos da história de Ernest Hemingway e seu filho Gregory.

Quando era criança, Gregory gostava do contato com seda e tafetá. Depois de beber mais que seu pai, caçar elefantes maiores que os dele e ter mais filhos do que o escritor teve, acabou mudando de sexo quando tinha quase 60 anos, 15 anos após a morte de seu pai.

A história do filho de Arthur Miller também me parece terrível -esse garoto com síndrome de Down cujo pai nunca quis vê-lo e que anos depois o procurou, depois de uma conferência, para se apresentar. É assombroso."

A história de Gregory, filho de Hemingway confirma aquela idéia de que “a pessoa é para o que nasce”. Quando li jovem várias obras do escritor, fiquei tomado de um sentimento bastante ambíguo: ao mesmo tempo que admirava muito a grandeza dos textos, especialmente “O Velho e o Mar”, não me identificava em nada com seu machismo, o gosto forte pelas touradas, as bebedeiras.Até mesmo sua coragem imperiosa de ir lutar na guerra civil espanhola me era ambivalente. Seu filho Gregory depois de anos de opressão precisou que o pai morresse para poder anos depois, nascer como desejava.

Já a história do filho de Miller com síndrome de Down é igualmente impressionante. Artur Miller transmitiu muita grandeza em suas peças, mostrando as vísceras incômodas dos EUA que se julgava onipotente e exemplar. O desfecho de “As Bruxas de Salém” (obra que remete metaforicamente ao período macartista), com bela montagem de Antônio Abujamra e João Fonseca em 2003, transformada em grande filme por Nicolas Hytner em 1996, com notáveis desempenhos de Daniel Day-Lewis, Joan Allen e Winona Ryder, é uma ode à dignidade humana ao mostrar com grande impacto emocional um personagem que prefere a morte a admitir o que não era verdadeiro, o que lhe imputavam com grande preconceito e histeria persecutória: um suposto pacto com forças demoníacas. Já o homem Artur Miller não foi capaz de reconhecer um filho com problemas mentais...

De tudo nos fica cada vez mais a lição de que, para o bem ou para o mal, devemos separar o artista da obra, conforme já foi comentado aqui num post sobre Clint Eastwood e sua atração fatal pelo Partido Republicano. Caso contrário, faremos muitas confusões e injustiças. Nada do que se possa dizer da vida desperdiçada em idiossincrasias excessivas e escândalos de Michael Jackson, falecido hoje aos 50 anos, pode ofuscar o fato incontornável de que foi um grande artista pop.

No caso de Gregory fica patente o quanto a obra de Almodóvar, enfatizando muitas vezes os imperativos do desejo, tem sintonia com o que há de mais secreto e profundo no ser humano. O caso do filho de Miller aponta também para a complexidade dos comportamentos humanos e as relações familiares tortuosas que ele aborda. Seu último filme, “Os Abraços Partidos”, não teve grande repercussão em Cannes 2009, onde foram exibidas obras de vários grandes cineastas já consagrados ou emergentes. O filme se perdeu em prestígio em meio à enxurrada de grandes medalhões. Isto não impede, pelo menos para mim, de que seja um dos filmes mais aguardados este ano. Almodóvar atingiu um patamar de qualidade que torna qualquer filme seu hoje, algo obrigatório, mesmo que na comparação irrefreável reconheçamos outras obras dele que sejam mais potentes.

Quanto à vida, não sei se ela é às vezes almodovariana ou sempre é, pois Almodóvar teria captado um tanto de sua vasta essência. Daí venha a crítica, provavelmente injusta, de que ele anda se repetindo. Bergman e Fellini também se “repetem”, mas como são sublimes essas variações em torno dos mesmos temas.

Folha de São Paulo, domingo, 5 de abril de 2009-Caderno Mais!

+Cultura

O garoto enxaqueca

PEDRO ALMODÓVAR EXPLICA COMO UMA DOR DE CABEÇA INSISTENTE INSPIROU SEU NOVO FILME, "OS ABRAÇOS PARTIDOS", RECLAMA DO PESO DA FAMA E FALA DO FUTURO DO CINEMA E DAS NOVAS TECNOLOGIAS

ÁNGEL S. HARGUINDEY

ELSA FERNÁNDEZ-SANTOS

Um cineasta paralisado por uma cegueira acidental, uma mulher perseguida pela fatalidade, o amor louco, a morte e o cinema, essa paixão misteriosa, capaz de redimir quase tudo.

Com "Los Abrazos Rotos" [Os Abraços Partidos], Pedro Almodóvar [1951] volta ao cinema noir, o gênero no qual, segundo ele, cabem o suspense, o drama e o humor.

"Os Abraços Partidos" é seu 17º longa-metragem e um dos mais complexos de toda sua obra. "Um drama seco", diz o diretor. "Aqui os personagens já choraram o que tinham que chorar, mas foi antes de o filme começar." Amor louco em três ou quatro faixas.

E, no eixo de tudo, Penélope Cruz em sua primeira estréia desde que conquistou o Oscar de melhor atriz coadjuvante, em 22 de fevereiro [por "Vicky Cristina Barcelona"].

Ela é Lena, pela qual estão loucamente apaixonados seu marido, o magnata Ernesto Martel (José Luis Gómez), e o cineasta Mateo Blanco (Lluís Homar), também conhecido como Harry Cane.

Entre eles, um passado reduzido a um quebra-cabeça de pedaços partidos escondido em uma gaveta que apenas Judith (Blanca Portillo) conhece.

Na entrevista abaixo, fala de suas enxaquecas (uma dor obscura da qual nasceu este novo filme), do futuro do cinema, da Espanha das maracutaias e da paralisia da fama: "Soa estranho, mas hoje não posso mais ficar parado na rua".

PERGUNTA - "Os Abraços Partidos" nasceu de dores de cabeça terríveis, algo de que o sr. não gosta muito de falar.

PEDRO ALMODÓVAR - O que não gosto é de me queixar. Minhas dores de cabeça vêm de longe, mas a coisa piorou durante as viagens que fizemos para divulgar "Volver", em 2006.

Eu tinha essas dores quase todos os dias e as combatia com um coquetel de analgésicos chamado Migral, que me traziam da Argentina. Fiquei sabendo depois que, se você abusa do coquetel -e eu abusava-, ele tem o efeito contrário: o problema se torna crônico.

PERGUNTA - Como essas dores se manifestam?

ALMODÓVAR - Não tem nada a ver com uma cefaléia comum; é como comparar uma anchova com um tubarão. Quando está muito intensa, ou mesmo quando é de intensidade média, você não suporta a luz.

Assim, torna-se impossível assistir à televisão, usar o computador ou até mesmo ler. E, claro, escrever. Ela tampouco lhe permite falar. Sua sensibilidade fica totalmente dominada pela dor. Não existe mais nada.

PERGUNTA - O personagem do cineasta cego, interpretado por Lluís Homar, nasce dessa dor...

ALMODÓVAR - A enxaqueca é uma doença misteriosa. São tantas as causas que a provocam, e dependem de tantas circunstâncias, que acertar é pouco menos que casual.

Pouco a pouco fui me acostumando à ideia de que meus problemas não teriam uma solução imediata. No silêncio e na escuridão, sem me dar conta, comecei a imaginar situações e personagens.

Assim surgiu Mateo Blanco, nesse momento claramente meu alter ego -um diretor de cinema que vive na escuridão. Cego. Comecei a fazer anotações a lápis no apartamento. É interessante descobrir que a dor não anula a imaginação.

No final de 2007, senti uma ligeira melhora e, sem me dar conta, havia terminado o roteiro de "Os Abraços Partidos".

PERGUNTA - A fotofobia decorrente das enxaquecas não foi um problema na hora de filmar?

ALMODÓVAR - Suportei a fotofobia diante dos mil quilowatts com que o diretor de fotografia, Rodrigo Prieto, decidiu nos incendiar. Eu me protegia com chapéu e óculos escuros, fazendo todo o possível para que a luz não me atingisse.

Minha vida sempre foi cheia de paradoxos, desde a mais tenra infância. Não me parecia estranho sofrer de fotofobia e trabalhar com a luz. Porque o cinema é luz.

Já o dizia Joseph von Sternberg a Marlene Dietrich, antes de ela entregar-se a uma dieta devastadora para oferecer o rosto mais anguloso possível a seu criador.

Sternberg a convenceu de que não precisava se sacrificar -que os ângulos que a tornariam imortal, ele os criaria com a luz. E conseguiu!

PERGUNTA - Um dos personagens principais é um milionário, um magnata que vira produtor de cinema para realizar o capricho de sua mulher de ser atriz. É um protótipo da "cultura da maracutaia".

ALMODÓVAR - Há tantos magnatas que já pagaram filmes para suas queridas! Minha experiência com homens poderosos, esses ricos que se metem a fazer cinema, tem sido nefasta.

Não deixa de me parecer comovente que, de "Cidadão Kane" até hoje, continuem a existir esses homens, diletantes, amantes da arte, mas basicamente toscos, capazes de financiar o capricho de uma mulher de ser atriz, se com isso conseguem conservá-la a seu lado.

São homens que se condenam a um duplo fracasso: primeiro, porque a pessoa que amam não tem talento; segundo, porque essa pessoa vai deixá-los da mesma maneira.

Em "Abraços Partidos", a personagem de Penélope não se sente realizada vivendo num palácio, amarrada por correntes de ouro.

Nesse caso, além de ser atriz, é boa e tem escrúpulos.

De qualquer modo, embora os personagens possam ser inspirados em pessoas que já conheci, não se trata de cinema terapêutico nem de revanche ou ajuste de contas com ninguém. Nem sequer é um filme tão anticlerical quanto "Má Educação" foi antirreligioso.

A tecnologia está deseducando o gosto dos jovens e degradando o produto cinematográfico, do mesmo modo que os iPods degradaram a música

PERGUNTA - Essa Espanha das maracutaias, na qual transcorre parte da trama do filme, parece que virou atual outra vez.

ALMODÓVAR - Ela nunca deixou de existir. É incrível como se repetem esses tipos, e o que mais me surpreende é que não tenham sido feitos mais filmes sobre eles. Em outros países, como a Itália, já haveria vários.

Ainda que o que me interessa seja a magnitude dos sentimentos desse homens.

PERGUNTA - Sentimentos esses que giram em torno da personagem de Penélope Cruz, num papel que provavelmente é o mais maduro de sua carreira.

ALMODÓVAR - É um papel que teoricamente não combina com ela e que, por isso, lhe custou muito fazer.

Mas ao mesmo tempo é uma oportunidade para mostrar mais versatilidade, e eu não poderia ter ficado mais contente. Eu queria, de algum modo, forçá-la a trabalhar num registro novo, nesse de heroína de filme noir, que tanto me agrada.

Penélope é jovem para entender plenamente esse tipo de mulher -uma mulher de 38 anos muito experiente, que já viu de tudo na vida e que, por sua beleza, já caiu em muitas armadilhas. Uma mulher que sempre quis ser atriz, mas que não teve sorte.

Ela trabalha como secretária e, de vez em quando, como prostituta, mas não quer subir na vida, não é uma arrivista. É um anjo caído, uma mulher endurecida pela vida.

Penélope já sofreu, é claro, mas nunca teve contato com algo tão difícil quanto a personagem. Mas eu estava certo de que ela poderia fazer o papel, e ela confia plenamente em mim.

Neste momento, depois de mostrar a ótima comediante que pode ser no filme de Woody Allen ["Vicky Cristina Barcelona"], essa personagem lhe caiu muito bem.

PERGUNTA - É uma personagem muito triste.

ALMODÓVAR - Sim, eu sentia muita pena dela, porque não podia fazer nada para salvá-la.

PERGUNTA - O ano de 2008 foi muito ruim para o cinema espanhol. Em 2009 estão previstas cifras melhores, graças à estréia de seu filme e os de Alejandro Amenábar, Isabel Coixet, Fernando Trueba etc.

ALMODÓVAR - A crise está afetando o cinema positivamente. As pessoas deixam de ir jantar fora, mas querem continuar saindo às ruas, e o cinema é um entretenimento acessível, bom para estes tempos.

Sobre a redução no número de espectadores, acho que a pirataria tem muito a ver com isso. Vivemos uma fase de mudanças muito grandes em tudo o que diz respeito ao consumo de imagens, e só existe uma saída: estruturar esse consumo.

Não acredito que o cinema visto nas salas de cinema esteja morto, assim como não acredito que os jornais estejam mortos. Não vou a um café para ler o jornal no meu computador, e, como eu, há muitas pessoas.

Existem muitas coisas paradoxais, como o fato de que vejo os filmes muito melhor em meu televisor de plasma do que numa sala de cinema.

Isso me dá calafrios, porque aquilo de que gosto é justamente ir ao cinema, me sentar com pessoas que não conheço.

As novas tecnologias proporcionam uma qualidade extrema para assistir a filmes em casa, mas, ao mesmo tempo, essas mesmas tecnologias e a quantidade de janelas possíveis estão deseducando o gosto dos jovens e degradaram o produto cinematográfico, do mesmo modo que os iPods degradaram a música.

PERGUNTA - Este filme é uma história de amor louco, mas o sr. inclui uma sequência de "Viagem à Itália", de Rossellini, em que Ingrid Bergman não poderia estar mais longe desse tipo de amor -uma mulher que, ao contemplar um casal que morreu carbonizado e abraçado, pensa na decadência e na mesquinhez de seu próprio casamento.

ALMODÓVAR - Há duas emoções nessa cena que me interessam. Uma delas é a de Ingrid Bergman, ao ver que seu casamento não se parece em nada com esse casal carbonizado pela lava de um vulcão; essa emoção coincide com a de Magdalena/ Penélope, ao ver um casal a quem a morte surpreendeu dormindo juntos e abraçados.

E há também a de Lluís Homar, que quer congelar numa foto esse abraço seu com Penélope e cuja voz também nos recorda seu desejo não realizado de morrer abraçado com ela.

Diante de tudo isso, o que fica subjacente nesse filme é o azar, uma má sorte que contagia todos os personagens, embora recaia especialmente sobre ela.

Apesar de tudo, acho que é um dos filmes que fiz com final mais feliz.

PERGUNTA - E aí entra o cinema, com sua capacidade redentora. O cinema ordena tudo e também cura tudo. Talvez o grande amor retratado neste filme seja o cinema.

ALMODÓVAR - O cinema é uma paixão irracional; todos os meus filmes são impregnados de cinema e, para mim, o cinema é a realidade. O filme todo é um canto de amor a essa profissão, que é mais que um trabalho: é uma forma de vida.

Mas isso não estava presente quando escrevi o roteiro -foi surgindo pouco a pouco. As intenções nem sempre estão presentes desde o início -elas vão saindo...

E sim, sinto que é a primeira vez em que faço uma declaração tão expressa de amor pelo cinema -não com uma seqüência em concreto, mas com um filme inteiro.

John Huston filmou "Os Vivos e os Mortos" numa cadeira de rodas, ligado a um cateter. Essa não é uma imagem patética, mas harmônica, de grande beleza. Eu me vejo exatamente assim na idade dele.

PERGUNTA - "Os Abraços Partidos" é um drama com toque de filme noir. É um gênero que o sr. já abordou em "Carne Trêmula" e depois em "Má Educação". Por que o fascínio por esse gênero?

ALMODÓVAR - Na minha maturidade, venho me interessando pelos gêneros, e um tem me levado a outro.

Por exemplo, nunca assisti a um faroeste quando era criança, mas mesmo assim fui me interessando mais e mais por eles, até que o western se converteu em meu gênero favorito. Não faço um porque a ideia não me vem à cabeça.

PERGUNTA - O sr. teve uma ideia -sobre dois caubóis homossexuais-, mas foi atropelado.

ALMODÓVAR - (ri) Bem, bem, isso já é outra história. O fato é que sempre gostei de drama e de melodrama, desde muito jovem. E cheguei ao cinema noir exatamente daí. O cinema noir é drama com um pouco mais de obscuridade, com alguma arma e algum morto.

Quando o drama e o noir se esbarram, convivem perfeitamente, e o drama se converte em algo muito duro. O gênero noir se permite ter sentimentos. Sempre cito "Amar Foi Minha Ruína", de John M. Stahl, como a união perfeita de melodrama e thriller, e a convivência desses dois gêneros é tremendamente atraente, como diretor e como espectador.

PERGUNTA - Mas seria preciso acrescentar um terceiro gênero: a comédia.

ALMODÓVAR - É que o thriller admite muita ironia; o que ele não admite tanto é a carga sentimental. Mas "Laura" [de Otto Preminger] é uma grande história de amor, como também o é "Fuga do Passado" [de Jacques Tourneur]. Esse thriller me encanta, pois não apenas evita os sentimentos como os torna mais evidentes.

Vendo os grandes filmes noir de John Huston ou Howard Hawks, os diálogos são pura ironia, os deles e os delas. Para mim, "O Falcão Maltês" é alta comédia. Com essa mulher, Mary Astor, que mente cada vez que abre a boca!

Portanto, é claro que o thriller admite o humor

PERGUNTA - José Luis Gómez interpreta o magnata apaixonado por Lena (Penélope Cruz) e que é o pai de Ray X (Rubén Ochandiano). O filme fala muito de paternidades conflitivas. O personagem interpretado por Homar chega a contar o episódio do escritor Arthur Miller e seu filho secreto, Daniel.

ALMODÓVAR - A história do filho de Arthur Miller, assim como a do filho de Hemingway, me serve para falar desses pais poderosos e importantes que sufocam seus filhos.

Na criação do personagem de Ray X, há ecos da história de Ernest Hemingway e seu filho Gregory.

Quando era criança, Gregory gostava do contato com seda e tafetá. Depois de beber mais que seu pai, caçar elefantes maiores que os dele e ter mais filhos do que o escritor teve, acabou mudando de sexo quando tinha quase 60 anos, 15 anos após a morte de seu pai.

A história do filho de Arthur Miller também me parece terrível -esse garoto com síndrome de Down cujo pai nunca quis vê-lo e que anos depois o procurou, depois de uma conferência, para se apresentar. É assombroso.

PERGUNTA - No filme há uma homenagem explícita a quase todas as "garotas Almodóvar": Chus Lampreave, Kiti Manver, Mariola Fuentes, Lola Dueñas, Blanca Portillo e, é claro, Penélope Cruz. O sr. diz que a maior parte dos papéis femininos que escreveu é uma mistura de sua mãe e de suas vizinhas de La Mancha, com pitadas de Holly Golightly [personagem de Audrey Hepburn em "Bonequinha de Luxo"], da Giulietta Masina de "A Estrada da Vida" e da Shirley MacLaine de "Se Meu Apartamento Falasse".

ALMODÓVAR - Falta uma, Blanca Sánchez, que morreu recentemente e da qual, por pudor, tenho falado pouco.

Na realidade, minha grande fonte de inspiração tem sido minha mãe, suas vizinhas e Blanca. Ela representava todas essas mulheres modernas e urbanóides, de pensamento voltado para o futuro, sem preconceitos e dotadas de tremenda vitalidade.

Em termos de cinema, eu acrescentaria a Gena Rowlands de "Opening Night" e Romy Schneider, à qual faço uma pequena homenagem no filme. Mas Blanca era mais do tipo Holly Golightly, sem ser prostituta, é claro.

PERGUNTA - Como ela era?

ALMODÓVAR - Era muito sofisticada e moderna e, ao mesmo tempo, tremendamente ingênua para o amor. Representa essas mulheres que se desenvolvem por igual em todos os ambientes, dos mais humildes aos mais sofisticados.

PERGUNTA - Ela inspirou Candela (María Barranco) de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos"?

ALMODÓVAR - Sim. Ela se apaixonou por um homem sem saber que era terrorista e que a estava usando. Ele colocou outras pessoas do ETA em sua casa, porque Blanca era muito generosa, e ali, sem que ela soubesse, planejaram um ataque ao presídio de Carabanchel para libertar outros presos.

Aquilo custou a Blanca, que era inocente, nove meses de prisão. Depois que saiu, nunca mais foi a mesma. Eu ia visitá-la e voltava arrasado. O que era incrível era sua ingenuidade para com o amor.

Quando a história dos membros do ETA veio à tona, o que ela não conseguia entender e o que a deixou arrasada era o fato de que aquele homem não tivesse confiado nela.

O que a fazia sofrer era o fato de que seu amante nunca confiou nela o suficiente para lhe dizer a verdade, na cama. Eu não acreditava naquilo e lhe dizia: "Mas, Blanca, ele era do ETA!".

Aquilo mudou radicalmente a relação dela com os homens, e a prisão a deixou marcada.

Lembro que, antes de se entregar ao juiz, me telefonou e pediu para tirar da casa, da minha casa antiga -porque vivi bastante tempo com ela-, as caixas e caixas de torrones e chocolates que o pessoal do ETA tinha comprado para levar no Natal.

Só me dizia para não me preocupar com ela, mas para, por favor, tirar tudo aquilo de sua casa.

O absurdo, os paradoxos que me acontecem na vida, é que eu não sabia o que fazer com aquele arsenal de doces natalinos, então os dei a meu cunhado, que era guarda civil e que passou o Natal devorando os torrones e chocolates que os homens do ETA tinham comprado.

PERGUNTA - Por que era uma amizade tão forte?

ALMODÓVAR - Ela era mais consciente de mim do que eu mesmo. Tinha uma fé cega em mim. Conheci Blanca 100% e por isso tantas vezes minha referência tem sido ela. Sua generosidade sem limites, sua inteligência, sua capacidade de correr riscos na vida, sua enorme discrição -nunca fez alarde de nossa amizade.

PERGUNTA - O sr. já se queixou algumas vezes de como a fama modificou sua relação com o mundo.

ALMODÓVAR - A fama me afeta, na medida em que não posso ficar tranqüilo na rua. Se tenho um encontro marcado com alguém, não posso ficar esperando em nenhum lugar.

Não me importo de falar com as pessoas que se aproximam de mim na rua, mas não posso com as fotos feitas por celular -essa é a pior invenção que existe. Já renunciei faz tempo a me manifestar tal como sou nas ruas ou num bar. Se você tem um problema, não pode chorar... Essa é sem dúvida uma perda enorme.

O único hábito que não mudei é o de ir ao cinema duas ou três vezes por semana. Mas apenas vou a bares, sobretudo por causa das enxaquecas -não que me falte vontade de sair, pois isso não me falta.


A íntegra deste texto saiu no jornal "El País".

Tradução de Clara Allain.

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Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 23 de junho de 2009

Três Seres na Terceira Margem do Rio





Arnaldo Baptista Dias foi o grande cérebro por trás de Os Mutantes, conjunto que deu régua e compasso ao rock mais sofisticado brasileiro. Com a saída de Rita Lee no início dos anos 70, sua mulher na época, por razões que “Loki-Arnaldo Baptista” (Brasil/2008) de Paulo Henrique Fontenelle insinua aqui e ali de forma não conclusiva, ele continuou com o grupo sem o mesmo prestígio, passou a uma carreira solo mal compreendida (hoje bastante valorizada), criou o grupo Patrulha do Espaço, com um rock mais progressivo, envolveu-se com drogas pesadas, entrou em forte depressão e chegou a cair ou se jogar do quarto andar de um manicômio onde foi internado. Ele já tinha se casado depois com uma atriz com a qual teve um filho e logo se separou. Uma fã, Lucinha Barbosa, o visitou no hospital onde estava em coma e como num filme de ficção, com um truque forte de roteiro, Arnaldo passou a ter nela uma grande companheira que o leva para Juiz de Fora, onde ele de uma forma catártica ao modo dos artistas descobertos pela Dra. Nise da Silveira no Museu do Inconsciente, faz pinturas onde exorciza vários elementos de sua vida com citações até mesmo à sua época de Mutante.

Na organização de uma exposição sobre a Tropicália em Londres, agora com Zélia Duncan fazendo o vocal que Rita Lee não aceitou, Os Mutantes se juntaram novamente para um show lotado no Teatro Barbican de Londres onde foram ovacionados e Arnaldo passou a ter melhor noção do quanto é cultuado também (e principalmente) fora do Brasil, o que o filme já tinha mostrado com o calor humano que Sean Lennon lhe dedicou em entrevistas.

“Loki-Arnaldo Baptista” como documentário, não tem uma postura iconoclasta como a dos Os Mutantes e da carreira solo de Arnaldo, onde se destaca o trabalho Loki?, tido por muitos como uma obra premonitória da crise existencial que o artista viveria com sua melancolia intrínseca mas que não deixaria de ser um dos trabalhos incontornáveis da história da MPB, deixando patente que tudo que se fez no rock nos anos 80 para cá tem de certa forma o dedo profético genial de Arnaldo. Apoiado em belas entrevistas com Antônio Peticov, Gilberto Gil, Rogério Duprat, Tárik de Souza, Lobão, Nelson Motta, Liminha e depoimentos de sua incansável e anjo da guarda atual companheira Lucinha, dentre outras, “Loki-Arnaldo Baptista” nos conta sem nenhum pieguismo uma maravilhosa história de amor especial e redenção e de volta por cima existencial.

Arnaldo vive hoje num mundo à parte com grande consciência disto e neste ponto todos os nossos conceitos do que é ou não normalidade, sanidade ou loucura vão para o espaço. Conforme evidencia o irmão Sérgio Dias que humildemente pede desculpas pelas próprias incompreensões que teve, “quem é louco, Van Gogh ou nós?” Seu irmão estava vinte anos a frente de seu tempo. “Mais louco é quem me diz que não é feliz”. E no estágio atual de sua vida, depois de tantas agruras e sofrimentos, com uma fenomenal recuperação depois de um estado lamentável, sentindo agora que lhe dão grande valor, conforme salienta Zélia Duncan num depoimento, Arnaldo se mostra bem integrado à sua vida mais calma em seu retiro em Minas Gerais onde privilegia mais o gozo cotidiano da vida do que ambições por ter uma carreira artística, compondo devagar, sem pressa, como Caymmi. A arte dele deitou raízes, mas ele ao fim e ao cabo não se deixou consumir por ela. Hoje com seus quadros, com os quais não mostra ter interesse comercial, faz um trabalho que pode soar um pouco psicodelicamente naif, mas que para ele tem grande valor terapêutico, revelando construções do seu inconsciente que o filme não desenvolve. Isto é o que importa. O guerreiro fez mais do que merecer por seu repouso. Este filme emocionante e precioso, com suas duas horas mágicas nos faz compreender bem todas estas contradições de vida e entender melhor este estágio atual onde o grande artista está feliz na sua terceira margem do rio conquistada. Por que de realmente louco ele não tem mais nada. Loucos são os que estão numa vida competitiva desenfreada sem tempo nem para ouvir suas vozes interiores.

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“Hamlet” na direção de Aderbal Freire Filho com Wagner Moura é um equívoco total. Tem piadas excessivas para cativar platéias desvirtuando o sentido de tragédia; um surrado esquema em que atores ficam na lateral do palco entrando e saindo de cena, desnudando o jogo teatral como se isto representasse em 2008 depois de tantas montagens assim alguma grande novidade; figurinos e cenários franciscanos e empobrecedores; um jogo em que cenas filmadas por vídeo são expostas num telão de uma forma inexpressiva; Gillray Coutinho como Polônio parecendo que ainda não saiu de “O Púcaro Búlgaro”( onde estava excelente) com cacoetes e trejeitos insuportáveis; Tonico Pereira over como rei usurpador e ainda o que é pior: Wagner Moura bastante histérico não encontrando o tom para compor um personagem que ciente de que a mãe e o tio são cúmplices na morte do pai de certa forma passa a delirar e/ou fingir que delira para melhor extrair verdades dos fatos, com a ajuda de uma trupe teatral que encena um crime análogo para denunciar nas atitudes dos assassinos os seus atos.

Um pena que no afã de não exercer nenhuma concessão mais canônica o espetáculo tenha resultado tão pouco envolvente e sutil. Pouco compreendemos Hamlet, um personagem que constrói sua terceira margem do rio para melhor sobreviver a um meio corrompido até a medula e não surge com grande força no palco, o que é imperdoável em se tratando de uma das mais instigantes figuras da dramaturgia universal. Mas é esta é mais uma visão negativa como outras que surgiram, pois a rigor o espetáculo está se comunicando com o grande público e fazendo grande sucesso tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. Enquanto economizava nas palmas protocolares sem me levantar da cadeira, o enorme Teatro da UERJ cheio explodiu em efusivos aplausos. Espero que não tenham sido apenas para o Capitão Nascimento...Um personagem muitíssimo mais bem construído por Wagner Moura do que este Hamlet mal acabado e imaturo cenicamente.

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Um grande desafio que é trazer um clássico da Literatura difícil para os palcos foi vencido com grandes méritos pelos diretores Vera Holtz e Guilherme Leme com “O Estrangeiro” de Albert Camus, onde Guilherme só em cena, num grande desempenho, dá vida a vários personagens e principalmente a Meursault, um argelino que interna a mãe num asilo e quando ela morre não manifesta maiores sentimentos como se espera. Num dia de calor intenso mata gratuitamente um árabe com vários tiros. Preso ele não tem nenhuma reação catalogada. A princípio não quer nenhum advogado, não se mostra arrependido, despreza os consolos cristãos de um padre e tem desconfianças sobre si aguçadas quando tomam conhecimento de que não chorou no enterro da mãe e logo depois foi capaz de se divertir com uma mulher.

O fascinante em “O Estrangeiro” é que o personagem apresenta uma singular altivez na situação absurda que vivencia. Se seu ato gratuito evidencia o absurdo do mundo, as reações do meio circundante que se seguem não deixam de ser menos absurdas. Assim não chega a ser nenhuma heresia o autor Albert Camus afirmar que seu personagem no caminho para uma crucificação particular e especial, onde espera encontrar uma grande platéia, seja o único cristo que mereceríamos ter no nosso mundo.

Meursault também criou uma singular terceira margem do rio para si. Só que não terá nenhum bastão a passar a ninguém que o siga como no conto de Guimarães Rosa. O que o espera é o aniquilamento, mas também a dignidade que pode brotar da indignidade e da ignomínia.

http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/loki/loki-poster01.jpg

http://colunistas.ig.com.br/mauriciostycer/files/2008/11/loki.jpg

http://finissimo.com.br/mariatanamoda/wp-content/uploads/2009/04/hamlet4.jpg

http://www.questaodecritica.com.br/news/301_cover.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

domingo, 21 de junho de 2009

Laços e Desembaraços em Família



Ir assistir a um filme de temática homoerótica na Mostra Mundo Mix organizada por André Fisher ou então na Mostra Mundo Gay do Festival do Rio algumas vezes se revela uma autêntica cilada. Carente de filmes que abordem esta temática (dentre outras) nós homossexuais somos impelidos a prestigiar e muitas vezes saímos decepcionados, pois o que certos filmes tem realmente a oferecer é uma visão mais desabrida da sexualidade humana mas em termos estéticos e profundidade de temas se revelam pífios, muito longe da grandeza de um “O Segredo de Brokeback Mountain” de Ang Lee, clássico precoce da História do Cinema.

Agora temos o bem vindo selo do Mix Brasil, que nos lança “De Repente, Califórnia” (EUA/2007) de John Markowitz, tem realmente algumas cenas clichês de surf, mas que estão longe de representar o que o filme tem de melhor. O título original “Shelter” (Abrigo) é muito mais significativo do que realmente acontece na história simples mas atrativa do filme que vai delineando seus conflitos com paciência e sensibilidade. Decididamente, apesar de não estarmos diante de um grande filme, estamos longe de termos embarcados numa cilada, o que acredito tenha provocado prazer na maioria do pessoal GLBT que vi na sessão do Arteplex de sábado à noite ( que vibrou em parte com atitudes tomadas por um dos protagonistas) que não vejo nos chamados “filmes cabeça” das sessões usuais tanto lá como no circuito Estação, com raras exceções.Isto nos lança a pergunta: o pessoal GLBT ( que as revistas da turma insinuam sempre ter um poder aquisitivo médio mais elevado, o que não concordo) vai prestigiar os filmes artisticamente mais empenhados? Se não vai (algo que constato durante anos), por que não?

Em “De Repente, Califórnia” título que expressa mais uma música de Lulu Santos do que um filme, Zack (Trevor Wright) é um jovem que trabalha numa lanchonete, grafita paredes da cidade onde mora, vive com a irmã Jeanne (Tina Holmes), abandonada pelo pai de seu filho, cuida como pai do sobrinho Cody (Jackson Wurth) e está sendo convidado a encarar de vez este papel postiço quando Jeanne resolve ir para o Oregon trabalhar com o amante Alan ( Matt Bushel) e não pode levar o filho.

Em paralelo Zack desenvolve um romance com o escritor Shaun (Brad Rowe), que está passando férias na região, irmão de um colega de trabalho de Zack, Gabe( Ross Thomas). Shaun está em crise criativa e esta é uma parte pouco convincente do filme, pois as angústias de um escritor nesta condição são esboçadas de uma forma muito pálida.

O sonho de Zack é cursar uma Escola de Arte para a qual foi aceito certa vez a acabou desistindo pelos comprometimentos com a família. Uma segunda chance se apresenta e ele vai ter de decidir entre seus desejos mais íntimos e as obrigações e teias que seu meio social e familiar lhe lança.

O que a princípio se insinuava um filme superficial aos poucos vai adquirindo uma coloração mais forte que se não eleva o filme a patamares elevados, o faz ser assistido com interesse, dado a sensibilidade com que tudo nos é narrado.

De vez em quando é bom assistir um filme como este que embora um tanto previsível não faz da vida homoerótica um “vale de lágrimas” onde os personagens são colhidos por um torvelinho da tragédia. Mas as questões que nos são colocadas no tristíssimo “O Segredo de Brokeback Mountain” são para refletirmos toda uma vida. Depois deste amável, mas limitado “De Repente, Califórnia” pouca coisa levamos para casa, além de um passeio por situações em que a redenção é possível. O assassinato de um gay na última Parada de São Paulo por um grupo de carecas, uma bomba que foi jogada na dispersão ferindo mais de trinta pessoas num autêntico atentado homofóbico como há muito não víamos no Brasil, outras ocorrências policiais como esfaqueamentos, roubos intensos de carteiras e celulares, etc, nos mostram que ainda temos muito chão pela frente para atingirmos certa visão cor de rosa que “De Repente, Califórnia” nos apresenta, de modo geral, com os seus conflitos contemporizados.

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Nelson Rodrigues de Souza

sábado, 20 de junho de 2009

O Alpinista - Um Conto




O Alpinista

“... Ou será que o deus que criou nosso desejo é tão cruel.

Mostra os vales onde jorra o leite e o mel

E esses vales são de Deus.”

Chico Buarque/Edu Lobo – Sobre todas as coisas.


A Victor Gíudice, gigante do conto brasileiro, nos ombros de quem subi para enxergar melhor.


Você diz que a minha beleza, que se esvai, escapa de mim agora como água no torvelinho do ralo, foi um karma na minha vida. Como posso acreditar nisso? Está certo, eu entrei na empresa porque, além de tudo o mais, era atleta, jogava bem futebol e eles estavam interessados em dinamizar o time com uma injeção de talento. A empresa não ganhava há um bom tempo um campeonato amador desses. Você pode argumentar que havia candidatos melhores preteridos, mas eu precisava de uma colocação e a beleza do meu porte físico ajudou... Como seria um karma então? Não! Não é porque estou doente agora, vendo meu corpo acanhar-se, tornar-se franzino que vou deixar-me levar pelos seus apelos. Se nunca acreditei em Deus como é que vou acreditar agora, quando Ele faz isso comigo? Você quer levar-me para um lugar estranho, diz que lá eu terei, verei provas mais concretas de que há algo maior do que esse mundo aqui... Já sei, eu estou exagerando, não são provas concretas (é uma ironia minha),mas são manifestações fortes que são como fumaça que podem entrar pelas minhas narinas adentro, mostrando-me o fogo, ou melhor, insinuando. Você falou que sou grosso, mas eu também tenho as minhas leituras. Não cuidei só do corpo não: “Mens sana in corpore sano”. Eu nunca deixei de prestar atenção a isso. Sempre procurei equilibrar os poderes do corpo e do espírito. Bom senso. Nem de um lado nem do outro. Não pense você que eu fui protegido lá na empresa: só recebi uma ajudazinha no começo. Eu fiz todos os cursos que me ofereceram! Esforcei-me. O que aconteceu comigo foi certo azar fatal. Sempre tomei cuidado com tudo e tive sorte, aprendendo a ver as duas faces da moeda, um lado ou outro das questões. Quem se apega a convicções é porque no fundo não pensa, é bobo! Eu sempre vi longe! Eu fui treinado para isso. Muito bem treinado, aliás. Eu era imbatível em simpósios, seminários, congressos onde nossos interesses eram representados. No que dependesse de mim os nossos produtos não ficariam sem mercado.

Quando fui convidado para participar do Curso de Expressão Oral, a principio estranhei a técnica, causou-me certo mal-estar. Afinal não é fácil ter de defender um ponto de vista no qual a gente não acredita. Mas depois as dificuldades foram sendo desmistificadas: vamos percebendo o charme discreto da outra face. É só ter imaginação e talento! A primeira fase do curso estruturava-se em perguntas propostas pelo Mestre, à queima-roupa, imprevisivelmente, que deveriam ter respostas categóricas: Sim ou Não! Caso sim, teríamos de explicar o porquê. Mas depois teríamos de defender o não! (E vice-versa!) Quando me perguntaram no curso se eu era a favor da legalização do aborto, logo disse que não e expliquei o porquê: eu acho que desde o início da concepção já há uma vida em formação. Quando foi instigado pelo Mestre a defender o aborto, arrepiei-me (Não era religioso, mas essa idéia sempre me repugnou). Não tinha passado pela experiência com nenhuma namorada, mas logo veio, para meu alívio, a lembrança de milhões de abortos clandestinos em péssimas condições que são feitos por aí e que sendo assim, dado que ocorrem, tem de acontecer nas condições melhores possíveis. Essa lembrança ajudou-me a cumprir a missão a mim confiada: colorir o sim com todos os requintes que a argumentação criativa pode amealhar. Arrematei o libelo com a idéia de que o feto em seus primórdios não deve ser encarado como um ser humano.

Quando o mestre perguntou-me se eu era a favor da pena de morte eu disse rápido que não. Expliquei logo que além da questão dos direitos humanos consagrados, há o fato de que violência sempre gera violência seja de que instituição for: os marginais de alta periculosidade, por exemplo, cometeriam atrocidades ainda maiores se tivessem convicção de que se fossem presos, fariam o pior com eles: a morte. O Mestre olhou-me com expressão suavemente irônica e logo atendi ao seu chamado: Defenda o sim! A situação agrediu-me no início, fez-me salivar num tom desconfortavelmente acre, mas ao ouvir minha voz, pronunciando aquelas palavras a favor da pena de morte (... “Porque esses marginais não irão aprender nunca, não serão intimidados e ainda consumirão recursos públicos quando presos.”), eu senti um frêmito de êxtase e dor”. Êxtase por sentir que a platéia (ainda que simulada por alunos) se deixava acalentar pelo meu veemente discurso, encarando-me com expressões de efusivas admirações; dor porque um lado kitsh meu, sentimental, ainda insistia que as coisas não eram bem assim.

Ao dizer em primeira instância que o homossexualismo era uma doença, explicando as razões (para mim óbvias) logo já imaginava como seria difícil dizer, justificar o contrário: “Não, é uma relação como outra qualquer. Essa associação de pênis acoplando-se, como dádiva da natureza, unicamente à vagina, é mecânica, superficial, não é necessariamente a única possibilidade, é uma imposição cultural.” A platéia caiu na gargalhada. O som estrepitoso ecoou pela sala. Ainda bem que todos ali conheciam minhas façanhas no futebol (Nunca tive medo de levar e dar caneladas). As minhas namoradas eram invejadas, senão pensariam que eu era viado, dado a eficácia as minhas ponderações.

Foi só o Alberto ter explicado por que era a favor da universalização do cumprimento russo com beijo na boca, eu fui à forra: ele tingiu-se de vermelho, os olhos pesavam, com vontade de cair no chão em vez de encarar uma platéia de ar maroto que se comprazia com risos ainda mais obscenos. Janaina também teve a sua cota: explicar porque acreditava que Nelson Rodrigues tinha razão ao vaticinar que “toda mulher gosta de apanhar, com exceção das neuróticas”, não foi fácil, principalmente logo depois de ter dito que isso era uma bobagem inventada e divulgada por cabeças estreitas e machistas, para justificar uma opressão milenar. O osso mais duro de roer, entretanto, foi o do Tarcísio: teve de explicar por que a mulher pode também ter amantes como o homem. Ao ponderar inicialmente que o homem tem apetites sexuais mais fortes do que a mulher, que ele trai por necessidade digamos fisiológica e que a mulher quando trai é por sentimento, não imaginava a dificuldade que seria ter de desdizer tudo depois. Estou vendo a cara de bobo dele, envergonhado: “A mulher e o homem devem ter os mesmos direitos em todos os planos. O resto é imposição social”. O Mestre o advertiu com razão que apesar do discurso guardar uma lógica interessante, o rosto e seus matizes de emoções o desmentiam. Como Hamlet ressaltou aos atores que se apresentariam para o rei e a rainha em Hamlet: há que se aliar, adequar falas, ações e gestos. Expressão facial e falas trabalhadas em uníssimo! A convicção tinha de ser passada nos dois planos: seria inócuo (ou até mesmo perigoso) um discurso competente, mas sem arrojo, empáfia.

Sérgio é que não se adaptou mesmo bem ao jogo, como eu esperava. Estava sendo uma surpresa para mim que ele tivesse se desempenhado até aquele certo momento com eficácia. Mas pelos antecedentes (não percebia, por exemplo, que o que o nosso ex-chefe fazia era para o nosso bem: os produtos não podiam perder clientela importante só porque, temporariamente, apresentavam um grau elevado de pequenos defeitos de acabamento) eu já pressentia que seria difícil para ele “pegar o espírito da coisa” num crescendo harmonioso e belo. Justificar que o casamento tanto pode ser indissolúvel como descartável (se for vontade dos cônjuges), que o mercado tanto pode ditar todos os preços como ser ignorado, com o Estado tendo um controle férreo sobre a economia, que as crianças tanto podem receber educação sexual dos pais e na escola básica como devem descobrir “isso” quando “ganharem o mundo”, que deve haver censura às manifestações artísticas ou que toda censura a uma obra artística é injustificável, que todo homem tem seu preço ou nem todos, ... até que ele conseguiu. Mas quando o Mestre perguntou se ele acreditava que Deus existe, ele respondeu nervoso que sim: falou da natureza, da vida como uma obra de arte, que só se explica, se justifica com a ação de um criador e não do acaso. O nervosismo do discurso, feito com uma emoção tímida era fruto do que já o esperava para depois. Um silêncio contagiou a todos quando o Mestre conclamou-lhe a justificar o contrário. Todos esperaram com certo frisson que ele iniciasse o segundo tempo. O ar tornou-se rarefeito para as respirações ofegantes. O silêncio se renovou, opressivo. Podia-se ouvir o bater das asas, se moscas lá houvesse. Sérgio se omitia, recusava-se a defender um ponto de vista ateísta. Que bobo! Era tão fácil! Bastava lembrar as misérias que grassam por aí (há séculos!), a morte de crianças inocentes, para argumentar que não existe nenhuma entidade tão poderosa assim. Ele quebrou o silêncio dizendo que não admitia, era um ultraje, ter de trabalhar, polir essa face da moeda. O Mestre, obviamente, tomou aquilo como uma ofensa e eliminou-o do curso, pedindo-lhe que se retirasse da sala para continuarem os trabalhos, o que Sérgio não fez, sem dirigir antes palavras ásperas, amargas e insolentes ao Mestre. Contra-atacou que o curso era uma pomposa tolice, que se aquilo fosse um curso de teatro poderia ter algum sentido o jogo perverso de simulação ao buscar entender as razões de uns personagens e seus diferentes pontos de vista, suas motivações, uma busca inspirada pela generosidade e não por um insidioso maquiavelismo. Diante de colegas estupefatos ele não se intimidou na sua pregação. Insistiu que, infelizmente, nós não estávamos ali para entender as razões do outro, por mais “torpes” que fossem, que não estava mais interessado em participar daquele mau teatro vestindo um personagem com sacrifício da própria identidade, que deveríamos era aprender a sermos nós mesmos, mais convincentes, mas nós mesmos. Acrescentou ainda que o curso deveria ensinar-nos a reforçar as convicções que tivéssemos e não a nos dividirmos, espatifarmos. O mestre não suportou tamanha cantilena sub-humanista, démodée e expulsou-o da sala. O idiota poderia ter ficado apenas sem mais um curso no currículo como seqüela, mantendo o emprego. Preferiu ainda hostilizar um pouco mais o Mestre, afrontando-nos como agravante. “De tanto espatifados ali no curso, tornar-se-ão todos uns patifes” – gracejou. A aula foi interrompida, o Mestre tratou de pedir seu desligamento da empresa. Sérgio tinha um protetor poderoso, mas o curso do Mestre era muito importante e como este ameaçou não mais dar aulas, o rapaz atrevido teve de sair da empresa e procurar alguma atividade compatível com seu anarquismo porque ali não era talhado para a liderança, o avanço veloz na carreira. A princípio achei estranho o Mestre ganhar “a parada” porque poderia ser substituído apesar de considerarem sua importância pedagógica. Mais tarde descobri, com meus altos contactos, que tinha um protetor mais forte (ele não era nada bobo mesmo, pena que tenha morrido de câncer recentemente).

Na aula seguinte o mestre perguntou-me se acreditava em discos voadores e eu tirei de letra o jogo do sim ou não. Afinal esse nosso mundo não só é tão grande que pode conter milhões de planetas como o nosso ou mais avançados (ou menos atrasados), com seres em estágios bem mais evoluídos como também é meio ridículo acreditar noutro ser que não tenha olhos, boca, ouvidos como nós e que nos visite: só no cinema, televisão e nestes livros desvairados. Quando ele, no entanto, me perguntou se eu era a favor da democracia eu logo senti a malícia, a batata quente que tinha em mãos. Logo agora que isto estava consolidado no país, com presidentes eleitos pelo voto direto depois de uma longa ditadura, como eu poderia dizer que não acreditava em democracia? Suei frio. Se ao dizer que sim lembrei-me da idéia de que democracia é regime político cheio de problemas “mas é melhor que todos os outros” é porque de certa forma já preparava o terreno para o que teria de dizer depois.

No segundo round franzi a testa com mais sentimento e lembrei-me da noção de que “não existe multidão inteligente” e expressei-a. Minhas leituras são insistentes mas tenho de dividi-las com os cuidados com meu preparo físico mas sabia que isto vinha do grande dramaturgo e poderia desvirtuar um pouco a máxima num outro contexto. Acrescentei que a democracia era perigosa porque poderia consagrar a vontade da mediocridade da maioria. Uma idéia cintilou na minha mente e lancei-a em meu auxilio: o nazismo tinha sido um fenômeno democrático! A platéia ficou embasbacada. Eles não esperavam que eu pudesse argumentar com essa força. É obvio que o discurso tinha pontos fracos, mas minha máscara facial, o meu jeito particular de olhar, com firmeza, determinação, os meus esgares, o sorriso sibilino e desafiador, as mãos agitando-se desafiantes, tudo se mesclavam de forma a tornar pertinentes a audácia do meu discurso. Assim naquele momento, diante daquela platéia estupefata, tomada, possuída pela minha inteligência eu senti que poderia defender qualquer idéia, que eu tinha talento inesgotável para apreensão das ambigüidades dessa vida e o que era melhor: lucrar com isso!

No espaço de tempo entre as aulas (que eram nas tardes das terças e quintas) passei a sentir que de certa forma já não precisava do Mestre. Em casa mesmo, diante do espelho inteiriço do banheiro, algumas vezes para ganhar mais auto-estima com o talhe esbelto do corpo, eu ensaiava minhas expressões, propondo-me temas polêmicos (e outros não tão polêmicos assim, mas que eu tornava complicado e virava do avesso, ao fazer o advogado do diabo). Assim parte do meu rosto explicava-me porque os padres devem se casar, parte insistia que deviam ser celibatários. Um lado de mim dizia que o calor é muito mais agradável que o frio, outro lado dizia justamente o contrário. O olho esquerdo vibrava com o significado do Natal, o olho direito argumentava que era puro comércio. A mão esquerda agitava-se criticando golpes militares enquanto a direita, histérica, os defendia. Insisti tanto nestes exercícios solitários que me vi até questionando se mamãe tinha sido boa para mim ou uma autêntica megera. Quando me vi tomado de amor e ódio por ela, expressos ambos de forma impressionantemente convincentes, cansei-me dos exercícios, resolvi parar e conformei-me em esperar pelas novas aulas, mesmo porque a platéia me instigava mais a dar uma forma mais compacta, uniforme às expressões do meu rosto. O espelho mostrava-me um ser dividido (ou era impressão minha?). Impressão ou não acabei por concluir que o trabalho de direção do Mestre era insubstituível, inalienável e que eu não poderia ser um discípulo ingrato.

Na semana seguinte o mestre introduziu um elemento complicador na natureza do processo: teríamos de responder a perguntas da platéia. Dizer que o roubo de um pão por um faminto é um crime porque senão aonde é que o mundo vai parar e logo depois afirmar “primeiro comer, depois a moral”, que a dignidade é um luxo que os famintos não podem se dar, que escandaloso mesmo é morrer de fome, enfim, dar o dito por não dito é fácil; difícil é ter de responder se eu deixaria um filho meu morrer de fome caso estivesse desempregadíssimo, quando eu tinha acabado de dizer que em hipótese alguma o roubo (do que quer que fosse) teria circunstância em que seria perdoável. Disse que sim com rispidez cadavérica e tratei logo de repetir o que já havia dito antes com ligeiras mudanças, caprichando na carranca irredutível, acrescentando de novo apenas que era uma questão de princípios. Os bobos não deram conta dos sinônimos introduzidos e se deixavam impressionar pela minha fascinante máscara facial. Esta segunda etapa do curso foi aguda, mas repleta de prazerosos desafios. Gente que até então tinha se desempenhado com galhardia agora se atrapalhava. Ter de dizer que salário mínimo é adequado (logo depois de tê-lo tachado de criminosos) e depois responder o que compraria com ele, se viveria com aquilo, convenhamos, não é fácil. Ainda bem que não me deparei mais com questões melindrosas como essa. Teve gente que sim e passou vexame. Numa nova fase do processo, depois que muita gente se queimou, o Mestre restringiu-se a me dirigir apenas questões em que o sim e o não, não comprometem, denotando simplesmente um estilo de vida (“O uso excessivo de cartões de crédito é recomendável?”). Depois de várias performances bem resolvidas, exposições bem engendradas, senti que o Mestre já estava bastante satisfeito comigo e não iria mais me desgastar.Havia entendido que de longe eu era o mais apto a sobreviver diante das intempéries imprevisíveis e mutantes, que eu já absorvera com louvor as lições. Iria deixar-me como exemplo, protótipo. Questões mais espinhosas passou a direcionar aos outros. Ele saboreava os desatinos dos desajeitados, olhava-me com olhar sóbrio e cúmplice, sugerindo que eu não me acomodasse, que eu aprendesse com os erros que estavam sendo cometidos aos borbotões. Essa bandeira branca hasteada pelo Mestre encaixou-se com uma divina providência naquele momento em que meu espírito já estava atingindo certo cansaço e enfado de tanto jogar. Se tal não acontecesse, eu já tinha planejado dizer sim de primeira caso achasse não (e vice-versa), porque na segunda vez que se defendia um ponto de vista é que as feras estavam mais atentas, afiadas. Com a abertura a novas questões da platéia, Fernanda como que percebendo esse protecionismo do Mestre na reta final, tratou de complicar questões não muito difíceis que me foram colocadas. Ao dizer com precisão como uma novela de televisão é uma arrematada bobagem, uma perda de tempo, “um coração de mãe em que cabe qualquer coisa”, “um gênero sem nenhum caráter” depois de ter dito que era um produto cultural de maior relevância na sociedade moderna, um folhetim eletrônico, um gênero que Machado de Assis invejaria se fosse vivo pela quantidade de consumidores, tive de explicar para uma indócil Fernanda porque se acabava de dizer que novela é uma coisa chata, desinteressante, como é que já tinha sido flagrado num intervalo entre aulas, curioso em saber o que aconteceu no “capítulo de ontem?” De fato Fernanda tinha razão. Eu realmente tinha perguntado sim o que havia acontecido (afinal castraram ou não castraram o personagem? Se não estava castrado como é que não percebeu?). Gozado, veja você, agora depois de tantos golpes eu entendo melhor a personagem (Não tenho também coragem de olhar para o meu corpo), mas na época não entendia. Mas Fernanda estava agindo de má fé. Estava trazendo elementos da minha realidade para o nosso universo de ficção que estávamos vivendo ali, no nosso lúdico jogo do sim ou não, sem meios termos, sem matizes, sem muros, o preto no branco! Senti vontade de me socorrer com o Mestre e denunciá-la como alguém que estava subvertendo nossas regras, agindo sem ética, apelando. Afinal ela tinha que se comportar como se o mundo exterior não existisse e sim apenas os nossos interesses ali no jogo, que se resumiam no seguinte: vender bem uma idéia. Ela teria que se ater, ser fiel ao meu último discurso, que era contra as novelas: Tudo o que disse antes teria de ser esquecido como dito por mim. (Afinal segundos atrás tinha manifestado apreço às novelas como produto cultural nobre). As idéias poderiam retornar como mísseis, quem lançou não. Achei melhor, entretanto, não incomodar o Mestre. Senti pelo seu olhar inquieto, sinais de reprovação, insatisfação com a travessura de menina, mas apreendi que ele continuava do meu lado. Encarei-o de forma doce, agradecido pela solidariedade e transmiti-lhe a segurança de que saberia lidar com esse contratempo com “savoir-faire” e preferi uma malícia mais refinada: “Estar interessado no que aconteceu com um produto não dá idéia da qualidade, da estima que temos por ele. O ser humano tem as suas fraquezas. Um acidente de trânsito atrai muitos curiosos. Nem por isso é um espetáculo, um bom produto”. O Mestre me ouviu com um dissimulado, tímido encantamento. A platéia estava com um “Bravo!” entalado nas gargantas. Senti então que as habilidades que estava exercitando me seriam muito úteis. Já não me preocupava com tremedeiras, não gaguejava, olhava para os olhos de todos sem o menor vestígio de intimidação. Se papai e mamãe estivessem ali sentados na minha frente na primeira fila, não faria a menor diferença. Diante de mim havia somente uma massa indistinta, disforme, pronta, disponível para receber os raios que de mim emanavam, grata pelo brilho da inteligência transbordante que podiam contemplar.

Na terceira fase do curso aprendemos a lidar com o material a ser apresentado, como distribuí-lo em tópicos especiais dispostos em ítens de um Power Point atraente. Cada tela deve ter as palavras, as frases e os desenhos chaves para que não esqueçamos nada, para servir como balizador, pontuação do discurso que devemos ter ensaiado na ponta da língua. Na realidade elas que estão ali supostamente para elucidar a platéia, estão ali mesmo é como guias imprescindíveis para os expositores. À platéia não convém muito didatismo porque senão serão capazes de fazer perguntas delicadas. Se estas surgirão de qualquer jeito porque provocá-las e tê-las em maior quantidade? Afinal as telas existem, mas não para transmitirem verdades transparentes (Afinal quem as conhece com transparência? Não me venha você dizer que sabe...).

Uma dica essencial nos foi passada. No início de qualquer apresentação de um trabalho deveríamos introduzir um comentário de impacto que faria a platéia se deter na nossa persona (o ser magnético e magnetizante), à espera de que nós surgisse outra manifestação de espirituosidade. Escolhido um tema final para cada um, fizemos nossas apresentações de encerramento do curso. Os tópicos iniciais foram os mais curiosos. Um dos alunos, que discorria sobre a importância dos extintores de incêndio, começou a palestra gritando “Fogo, Fogo”. Nós os alunos, ainda que esperássemos alguma coisa do gênero, nos assustamos, Alguns se levantaram esbaforidos, assustados. O palestrante nos tranqüilizou dizendo que era uma brincadeira, ainda que o que teria a dizer fosse fogo!... O Mestre, entretanto, o advertiu que o bom humor era importante, mas que ele deveria ter o cuidado para trabalhar a adesão e a expectativa da platéia e não inocular-lhe certa raiva, ainda que em dose branda ou temporária, fruto de um espírito bonachão e imprudente.

Tendo de apresentar o tema “A Importância dos Cursos de Expressão Oral” simplesmente comecei dizendo que mostraria a eles que caso não fizesse uma boa palestra ainda assim (e por isso mesmo) estaria, por via-tranversa, enfatizando a importância desses cursos. A platéia riu em uníssimo. Captaram a sutileza da colocação. Temia que não entendessem. Senti-me então como Bob Hope divertindo as tropas americanas na segunda guerra mundial.

O Mestre havia escolhido um tema para cada pupilo. Senti que o tema que ele me deu era uma forma óbvia de enaltecê-lo. Eu preferiria ter falado sobre o tema de Janaína: “A Importância da Embalagem de um Produto” ou então, o tema de Tarcísio: “A Importância das Pesquisas de Mercado”. O tema do Alberto eu não invejei não: “A Importância de ser Prudente” (Era abstrato demais, o Mestre escolheu assim porque não gostava nada ele).

Tudo bem.Aceitei com estoicismo esse jogo final. Sou muito grato a ele pelo aprendizado, pelas lições de arrojo e decisão.

Você não pode me acusar que minha escalada na empresa só tenha vingado por uma questão de aparência: fiz aquele curso e outros mais. Você não imagina as coisas que tive de aprender. Acompanhei o processo de fabricação do nosso produto em todos os estágios. É claro que eu não poderia entender todos esses processos, mas meu gerente me estimulou a ter uma boa idéia geral para passar credibilidade, verossimilhança aos clientes, nem que eu tivesse que inventar uma fase ou outra. Sabendo uma três ou quatro as outras viriam por analogia e quem é saberia se eram reais mesmo ou não? O importante era que eu utilizasse os jargões adequados, apropriados aos processos, de um jeito tal que a profusão de significantes desse a entender que subjazem significados em maior nível ainda, inapreensíveis para os leigos.

Logo que me vi alçado a uma boa chefia de vendas e não só dirigia o trabalho de vários vendedores, organizava cursos e aulas da área como também me apresentava em seminários sobre a nossa empresa, sua política, seus produtos, o mercado interno, o mercado externo (atrair novos capitais para os nossos investimentos e mostrar que nossos produtos “não eram uma carroça” era vital), olhei para trás, lembrando do que já passara, lamentei os que ficaram no meio do caminho ou desceram ribanceira abaixo, afugentei certo sentimento incômodo de culpa inerente à vertigem da solidão do poder e conclui que fiz por merecer. É claro que nesta situação privilegiada eu não poderia continuar com esses namoros sem maiores conseqüências. Fernanda trabalhava comigo (eu era o seu chefe) e apesar de me irritar com seu ar coquete, petulante, desafiador, competitivo, sempre descobrindo minhas falhas, ressaltando-as, fazendo caixa de ressonância dos meus erros para os chefes superiores, eu gostava da danada.

Onde começava e terminava a vontade de seduzir e eliminar uma concorrente em potencial que me ameaçava o cargo, o tesão que sentia por ela, a vontade de dar logo satisfação aos chefes, cansado (senão seria tido como viado enrustido), a vontade de ter uma vida mais calma, dedicada ao lar, aos exercícios na academia e à ascensão funcional , o desejo de ser admirado porque estaria casado com a pessoa mais linda do andar (e quiçá da empresa), a vontade de ter logo um filho para poder dar sentido maior ao império que queria construir, o anseio de poder ser convidado para as festas em família dos superiores com um status maior de homem sério (casado), o desejo, a curiosidade e vontade de ter uma mulher só cuidando de mim todos os dias sem as habituais dissipações, a inveja da felicidade aparente ou não de Tarcísio e Janaína, agora juntos e que apesar de estarem em cargos modestíssimos sempre que me viam, transmitiam-me um ar de superioridade diante da minha óbvia aparência de homem solitário, de certa forma carente... E outros desejos, vontades e curiosidades, eu não sei... E quem saberia distinguir esses planos que se superpõem? Você pode argumentar que eu não falei de amor nestes itens todos; mas para mim amor era a integração, interação desses pontos todos. Se na época eu não me importava com essas indefinições, não me venha com esse olhar induzir-me a crer que a compreensão desses limites tem agora algum significado para mim...

O fato é que Fernanda e eu nos casamos com tudo que tínhamos direito: padrinhos, madrinhas, igreja ornamentada com apuro, palavras sagradas, música sacra eloqüentes, pais e mães comovidos e presença de pessoas convenientemente interessantes. A princípio desejei e planejei a ausência de pessoas indesejáveis, depois mudei de idéia: era importante que participassem desse meu rito de passagem para sentirem a quantas andava o meu prestígio e poder. Nossa lua-de-mel teve que ser curta porque viagens de trabalho inadiáveis e cabais estavam programadas. Era formidável ter uma pessoa esperta como Fernanda ao meu lado para corrigir, polir, lapidar, acrescentar detalhes às imperfeições que obviamente minhas apresentações tinham. Diante de mim não havia apenas clientes já cativos ou potenciais, havia também concorrentes de empresas do ramo, sequiosos de me ver embaraçado com alguma questão delicada. O que me aborrecia às vezes era notar que Fernanda mais do que me ajudar aproveitava essas oportunidades para mostrar que ela apesar de ser uma funcionária subalterna, tinha laivos de originalidade e perspicácia tão admiráveis quanto o chefe. Quando a pressionava no hotel contra os fatos dizia que era impressão minha, que simplesmente não podíamos correr o risco de não passar uma mensagem com segurança e brilhantismo, que estava a serviço do produto. E se de início me via incomodado, depois acreditava no que ela contrapunha (ou fingia acreditar).

Minha relação com Fernanda era complicada como todas as relações, mas com alguns espinhos adicionais, não usuais e não adianta você me olhar com essa cara de quem descobriu meu calcanhar de Aquiles, eu mesmo reconheço: não era uma relação fácil. Mas eu era feliz com ela e mesmo que você continue me olhando assim eu continuarei repetindo isso (Como não éramos felizes se tínhamos tudo que planejávamos?). Não é porque eu descobri depois que ela era amante de Alberto que a experiência que tivemos juntos se esvazia. Fomos felizes sim e se você me desafiar a dizer o que é felicidade eu vou ter mil formas de definí-la que vão rechaçar todas as restrições que você me fizer. Se errei em alguma coisa foi em deixá-la um pouco solta demais, independente. Deveria ter lhe cortado um pouco mais às asas para que voasse só dentro dos meus domínios, da redoma do meu interesse. O apartamento que compramos quem decorou foi ela, não dei palpites e acabei gostando: predominavam os tons brancos e pretos: cores definidas. Está certo que mesmo fazendo os meus exercícios (não os negligenciava), mantendo meu físico atraente, havia épocas em que não tinha muito tesão e outras em que quem estava fria era ela. Mas não tenho dúvida de que na nossa vida estava presente o desejo, a paixão, o carinho, a vontade, a amizade e as coisas práticas da vida: o desfrute das ofertas, a compra calculada dos móveis, mobílias, cortinas, eletrodomésticos, o cuidado com as agendas ( a lembrança mútua dos compromissos de cada um) e até mesmo uma vida social não intensa, mas significativa (não havia nenhuma reunião importante com figuras chaves em que não dávamos um jeito de sermos convidados). Até mesmo recebíamos alguns amigos em casa, a despeito do olho gordo com que pudessem nos envolver. Confesso que neste ponto sou um tanto supersticioso, mas até mesmo os invejosos Tarcísio e Janaína convidamos para mostrar a todos que pairávamos acima das mesquinharias.

Como você vê, todos os ingredientes para uma vida estável e feliz estavam presentes: por que não seríamos felizes? É claro que eu não podia precisar a importância e a força de cada elemento desses na nossa relação. Se o sexo era mais forte que o amor, se os dois se confundiam, se o amor era sobrepujado por uma paixão teimosa, se os cuidados com a casa e a eficiência no trabalho eram excessivos e tomavam um tempo que poderia ter sido nosso, se desejávamos estar juntos mais por razões materiais do que espirituais, se ao casarmos aproveitamos oportunidades boas que nos foram oferecidas ou fomos oportunistas... Quem é que pode destrinchar, entender, aquilatar a relevância desses valores individuais na minha vida modelo? Não há testes estatísticos para isso! É um risco que todos correm e eu sempre quis muito viver, sempre quis ser o primeiro em tudo que fazia, nunca quis ser coadjuvante da vida alheia e não tinha, portanto, tempo a perder com filosofias e psicologias baratas. Em alguns momentos poderia até dar a impressão de que estava conformado, apaziguado com o que já tinha alcançado, mas era só uma parada estratégica para observar os flancos livres por onde atacar e eles sabiam disto na empresa: eles reconhecem quando tem um ser especial, devotado ao trabalho, à perseverança, destinado a vencer, na frente deles.

Ao ser convidado para o jogo de pôquer rotineiro com alguns chefes de departamento da empresa, incluindo também diretores próximos e íntimos da alta cúpula, não pestanejei: ali era um lugar natural meu que tinha de ser a mim oferecido. Não me olhe com essa cara não, esse convite caiu do céu: veio do reconhecimento do meu valor, da minha gana, ainda mais depois da missão delicada que cumpri com todo profissionalismo, sem deixar máculas que pudessem um dia melindrar o nome da empresa. Nosso melhor fornecedor de matérias-primas estava namorando outra empresa disposta a pagar bem mais que a gente e a diminuição da nossa cota, a procura de fornecedores não tão confiáveis, com eficiência bem menor, nos causaria transtornos. Apesar dessa área não ser muito afim, o fato é que fui convidado a realizar um trabalho de embaixador. Recebi algumas instruções do meu chefe imediato que por sua vez recebeu instruções até hoje não sei de quem: o resto seria conseqüência do meu talento, aprendizado, criatividade. Não me pergunte como convenci o gerente de vendas deles a continuar no prestigiando com a preferência, a exclusividade. Só posso lhe contar que discorri sobre o futuro da empresa, sua capacidade de superar as crises, o mercado cada vez mais abrangente que conseqüentemente demandaria cada vez mais matérias-primas para a produção inigualável, inimitável do nosso produto final. O resto são artes do ofício. Coisas de iniciados que gente como você com essa cara de asco não vai nunca entender porque deixam a vida estagnar no limbo, na pasmaceira, na obscuridade, a preferirem acrescentar alguns condimentos não ortodoxos em seu dia a dia de trabalho...

Os meus primeiros jogos de pôquer com os colegas da empresa (atente para o termo colegas: eu não me sentia inferior) confesso a você foi um fiasco. Eu tinha um bom treino na arte do blefe, mas o pôquer exige tato, uma inteligência, um cuidado além, um espírito cavalheiresco, aristocrático que eu demorei um pouco a adquirir. Os jogos eram à noite num simpático “living-room” dentro da empresa para desespero e ciúmes de Fernanda que não se conformava em me ter com menos freqüência em casa nem em saber que eu estava tendo acessos sociais com gente especial, que ela não tinha. Quando lhe expliquei que minha ausência era para o nosso bem ela teve acessos de ódio! Só se sossegou com o tempo, uma calma atingida que me provocou estranheza e contentamento. Desvendar esses sentimentos ambíguos me era difícil e eu precisava dar prioridade ao meu aprendizado de pôquer, essa fina combinação de arte, malícia, inteligência, criatividade, signo poderoso que resume a carreira que abracei: alpinista de cargos. É claro que perdi bastante dinheiro no começo, mas para mim era um investimento a fundo perdido. Quando passei a ganhar algumas boladas, meus bons companheiros se surpreenderam: não é que o pirralho aqui também levava jeito para a coisa?

É claro que nossa camaradagem não se esgotaria nos jogos e teríamos de compartilhar outros indícios de grandeza do status adquirido como a companhia de mulheres belas, disponíveis, não complicadas, que tem objetividade e nos exploram com maior pragmatismo, sem subterfúgios. A minha adesão ao grupo dotou-o de um colorido especial. Estas aventuras eram encaradas com bom humor, como um rito sagrado e profano, em que religiosamente nas noites de quarta e sexta feiras (além de sessões extras de fim de semana) teríamos que conhecer as mais apetitosas deusas e seus prazeres secretos que nos seriam revelados e violaríamos (e eu era um semideus que ali surgia para dar caráter ecumênico mais prodigioso). Durante os jogos de pôquer alternávamos os habituais diagnósticos da situação da empresa, a cotação dos diferentes cargos, a cantilena sobre os tédios conjugais e as esposas chatas com os relatos dos prazeres mais recentes descobertos e as habilidades específicas das meninas. Cada uma tinha um conhecimento carnal especial que nós expúnhamos, checávamos, esmiuçávamos, até chegar a uma cotação mais justa para os produtos: estávamos dispostos a pagar o que valessem, mas éramos consumidores exigentes... Com o meu invejável porte atlético (poderia descuidar das coisas domésticas e deixar Fernanda solta com as suas maquinações, mas do físico não me descuidava com a academia) eu atraia muito as mulheres de que daria conta e sobravam algumas para eles obviamente, que tinham que contrabalançar as calvícies, os cabelos brancos, as barrigas proeminentes, as erupções e dobras da pele, os olhares mortiços, o desalinho dos músculos, os sorrisos mecânicos, com muito mais dinheiro do que eu.

Assim, se eu lhes era tão útil em tantos aspectos não consigo entender porque se combinaram para me arruinar deste jeito! Na época eu acreditava que era apenas uma maré de azar, mas hoje tenho certeza que foi fraude de cúmplices o que me fez perder tanto dinheiro no jogo. Não adianta você me olhar com esse jeito piedoso e sarcástico, pois você também se deixaria enredar pelos miseráveis se você tivesse iniciado escalada como eu (o que pelo seu jeito deduzo que nem teria iniciado, se conformaria com a mediocridade da planície...) E não saberia o porquê....Será o medo da concorrência evidente que a minha juventude representava para aquele séqüito senil? Será raiva, a inveja indócil por me verem elegante, sedutor em contraponto à falta de graça deles? Será porque eu já estava possuidor de vários segredinhos contábeis da empresa, que se avolumassem me tornariam mais poderoso e perigoso? Será porque eu fui atrevido e comentei principalmente que com a razoável aposentadoria por doença do Torres, mudanças significativas seriam feitas? Será uma lição que quiseram me dar para que eu aprendesse o ponto certo para descansar? Você também estaria tão confuso quanto eu! Não saberia distinguir falta de sorte, amizade, camaradagem, “spirit de’corpus”, de mafiosidade!

No resto eu não vou entrar em detalhes porque já estou ficando cansado desta história (nem sei porque insisto em contar tudo isso para você). Mas dado que você teve a paciência de me ouvir até aqui, não vou deixar você com água na boca! Sim... porque se eu aprendi alguma coisa nessa vida é que o prazer tem de vir de onde for nem que seja com a desgraça alheia e eu não vou “cortar o seu barato”!

Em resumo, meu balancete doméstico era periculosamente desfavorável, minhas dívidas de jogo, minha gana de trabalhar estava comprometida (já não tinha o mesmo profissionalismo, a mesma força vital). Fernanda, maldita, separou-se de mim, ficou com o apartamento e suas dívidas, que eu não conseguia mais acompanhar, exigindo ainda pensão polpuda para um filho que hoje tenho certeza não é meu: é do Alberto. Quando na época eu joguei isso na cara dela, desconfiado que ela não se restringira à solidão com que a presenteara, disse-me que eu na minha decadência estava indo longe demais no jogo do sim ou não. Minha cabeça fervilhava:

“Sim, era meu filho. Fernanda sempre me amou, teve cuidados com a nossa vida em todos os níveis e compreendia que tudo o que nos atrapalhava eram ossos do ofício necessários para o nosso aprimoramento, a nossa evolução enquanto casal numa sociedade difícil e competitiva. Eu era quem havia quebrado nosso acordo extrapolando os limites”.

“Não, não era meu filho. Fernanda nunca gostou de mim, só tinha cuidados comigo porque tirava frutos disso e não acreditava nem um pouco que ganharia alguma coisa com os meus progressos, dado que já me enfadava dela e pressentia que eu gostaria de ter outra mulher mais atenciosa, carinhosa e menos arisca, mais resignada com a vida que eu quisesse lhe dar e acompanhasse minha ascensão profissional numa sociedade difícil. Fernanda é que havia quebrado nosso acordo extrapolando os limites.”

Essas idéias azucrinavam-me e por mais que as afastasse possuíam-me com insistência tirânica a se revezarem em moto perpétuo. Foi só quando Fernanda repetiu mais de três vezes a palavra decadência que eu resolvi interromper o jogo e optar pelo sim, esquecendo o não e todas as suas implicações, admitindo a nossa separação no estilo proposto, julgando-a temporária dado que iria me reerguer, cravando a picareta com mais força na pedra.

Ao me olhar de corpo inteiro no espelho generoso do banheiro do apartamento alugado, de um nível mais modesto do que aquele em que Fernanda morava com o filho (e tenho certeza com Alberto em determinadas noites) eu descobri um dado importante que desanuviou-me as angústias: por mais que a minha escalada houvesse sido sabotada e estivesse sofrendo com os abalos, com as pedras que rolavam, meu corpo ainda faria a delícia de muita gente. Quando percebi que havia empregado a palavra gente e que ela poderia significar tanto homem como mulher eu intui uma idéia redentora: porque não me modernizar, diversificando minhas atividades para aumentar meu capital? Eu não estava mesmo acostumado, treinado a enxergar o avesso das coisas, porque não entender esse outro lado da vida também?

Não me olhe com essa cara irônica, sem vergonha. Nunca ninguém me comeu não! Eu sempre fui homem na cama, muito macho se você quer saber, com homens ou mulheres. Fazia o que eles queriam, dentro de certas restrições. Bastava me pagarem bem como você o fez que eu os satisfazia, por que não? Cuidados com essa doença que grassa por aí eu sempre tomei, desde que dela ouvi rumores. Tenho certeza. Sim, eu sempre fui muito escrupuloso, calculava bem o que podia e o que não podia ser feito e como... Você me olha com essa cara assim? Por que?... Não, eu nem sempre fui cuidadoso, principalmente antes quando não ouvia falar desses casos todos... Mas porque eu tenho que me justificar diante de você? Está certo, você me usou, pagou bem, voltou outras vezes, descobriu que estou assim, veio me visitar e agora me diz todas essas coisas de elevação espiritual, karma, etc e tal ... De que me adianta saber disso agora? O que vai resolver? Só vai ajudar você na sua piedade por mim! ... Sim,você está interessado é em você mesmo, sente um vazio por dentro, quer preenchê-lo com meu sacrifício e eu tenho até pena de você por eu poder logo me safar desta e você ainda ficar por aqui nesta zona! Você não me engana, é como todos! Precisa de dinheiro até para os prazeres mais elementares, inventou todas essas histórias de que pode me mostrar a fumaça onde o fogo divino arde, que eu posso sentí-la pelas narinas, que é só eu lhe acompanhar para me sentir inebriado com a neblina ... Que piada!

Você não se altera e continua me olhando com essa cara de yogui? Por que?... Não, me desculpe! Você é um cara legal, se me pagou, comprou-me é porque tem as suas carências, as suas angústias temporárias. Deve saber de coisas que eu não sei que precisaria aprender e que no mínimo poderiam me dar alguma paz de espírito! Seria ótimo sentir essa fumaça sagrada e imaginar, deduzir que onde há fumaça há fogo, que Deus é um fogo...

Ah! Sua cara agora se altera!... Mas não meu chapa, eu apenas quis mostrar a você que ainda sou bom no jogo do sim ou não, que eu posso ainda enxergar as duas faces da moeda!... Mas porque esse silêncio? Não está percebendo que estou agredindo você?... Sim, por que não vai embora e me deixa sozinho...? Você está doido para deitar na cabeceira da minha cama e formar mais uma imagem da Pietá comigo, mas não vou lhe dar essa felicidade!

Ah! Você está indo embora mesmo? ... Não por favor, volte! Você precisa me provocar, me treinar! Faça algumas perguntas pra o sim ou para o não! Eu prometo responder seriamente! Não pense que me agrada enxergar a vida em branco e preto, vendo as coisas cinzentas. Será que você é capaz de me fazer ver as cores que nunca vislumbrei? Vamos, use todo o seu poder de argumentação, eu já não estou em condições de sair daqui: o fogo e a fumaça terão de emanar de você!... Você sorri como se de certa forma já estivesse vitorioso, mas eu não respondi ainda o sim ou o não!... Porque essa cara?

O que você quis dizer com essa história de vales onde jorra o leite e o mel? Saiba que eu nunca gostei de vales. Gosto de cumes, de picos...

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Nelson Rodrigues de Souza